Pintura de Andrés de Islas retratando um casal de Chapetones e seus escravos, no México, no século XVIII.
A
América, o novi orbis (novo
mundo) de Pedro Mártir de
Anglería, era um lugar de
oportunidades para os que se aventuravam em terras distantes. O
quadro político e econômico da Europa no século XV, principalmente
da Península Ibérica, recém-saída de um processo de reconquista,
agravada por problemas, faz da América uma terra visada por grupos
que procuravam
a estabilidade e a ascensão social.
No
continente, além de ouro e pedras preciosas, buscou-se
o que dificilmente esses homens encontrariam na metrópole: a
ascensão social. Como bem escreveu Sérgio Buarque de Holanda em
Raízes do Brasil, o
nivelamento de classes na Península Ibérica dependia do prestígio
social herdado, do peso da ancestralidade. No entanto, feitos
notáveis e boas virtudes suprem essa carência hereditária. O homem
ibérico dos séculos XV e XVI, principalmente o espanhol, tenta se
superar, é competitivo. Uma pequena ou inexistente nobreza, às
vezes imaginária, buscava por suas ações na conquista o
reconhecimento, um alicerce e a inserção no mundo das cortes. O
enobrecimento permitiria uma vida tranquila, pois “uma digna
ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobiliante, a
um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão
de cada dia” (HOLANDA, 1996,
p. 40).
O
conquistador que vem para a América traz consigo o mito da
superioridade espanhola, mito esse sustentado pelo pioneirismo e
pelos efeitos das guerras de reconquista, ainda frescos na memória
desses agentes. Esse espanhol que desembarca no continente carrega
valores do antigo mundo medieval, tanto é que a organização da
conquista é assentada, em certas proporções, em
elementos feudais, na
Igreja Católica e nas
guerras de reconquista. Na encomienda
– sistema mais difundido – os índios são confiados
(encomendados) a um espanhol a quem pagam tributos sob a forma de
prestação de serviços, predominando o trabalho forçado. As
províncias, afastadas da metrópole, o centro do Império, se
transformam em unidades autônomas. Nobres
ou militares que imaginam-se nobres governam, até certo período, a
seu modo e sem medo de intervenções do poder central.
A
presença do conquistador atinge o psicológico dos nativos. Frei
Bernardino de Sahagun escreveu que as armas bélicas, o canhão em
especial, assombraram os índio
da Nova Espanha: “[…] Muito espanto lhe causou ao ouvir como
dispara um canhão […], como derruba as pessoas; e atordoaram-se os
ouvidos. E quando cai o tiro, uma bola de pedra de suas entranhas:
vai chovendo fogo […] (SAHAGUN, 1555, Apud AMADO e GARCIA, 1989, p.
50). Elementos
do catolicismo espanhol sofrem alterações constantes. Santiago
Matamoros, representação iconográfico Santiago Maior,
padroeiro da Espanha, ganha uma nova roupagem em terras americanas:
Desde
un punto de vista icnográfico el Miles
Christi,
o también llamado Matamoros,
que había acompañado a los españoles en la reconquista de la
Península, cuando llega a las tierras americanas se convierte en el
emblema de la conquista y la figura del moro pagano se va
sustituyendo con la del indio idólatra de modo que el patrono de
España se convierte de Matamoros
en Mataindios
(CAPPONI, 2006, p. 253)
A
chegada dos espanhóis é acompanhada de cataclismos, presságios.
Tzvetan Todorv, em a Conquista
da América:
a
questão do outro, recupera
o seguinte relato de um tarasco nobre transmitido ao padre
franciscano Martín Jesus de la Coruão:
Essa
gente conta que durante os quatro anos que precederam a chegada dos
espanhóis a estas terras, seus templos queimavam de alto a baixo,
fecharam-nos, e os templos queimaram de novo e as paredes de pedra
desmoronaram (porque os templos eram feitos de pedra). Não sabiam
qual a causa desses acontecimentos mas consideraram-nos como
presságios. Ao que parece, viram dois grandes cometas no céu
(TODOROV, 1983,
p. 54).
O
espanhol, a contrário do que afirma
Sérgio Buarque no capítulo O Semeador e o Ladrilhador,
não é plenamente mais planejado que o vizinho português. As
cidades da América Espanhola são articuladas,
pelo menos até certo ponto. Existem, como se pode ver até hoje nas
cidades históricas do México,
da Colômbia e do Peru, cidades traçadas, planejadas, mas também
existem, em grande número, aquelas que seguem o desenho natural do
terreno, acidentado, ondulado, onde as casas estão aglomeradas umas
sobre as outras, com ruas tortuosas, erguidas pela necessidade e
muitas das vezes aproveitando as práticas de construção dos
nativos ou as bases de suas antigas cidades. Mesmo
com esse ‘semi planejamento’ o espanhol consegue criar, mesmo que
imperfeitamente, uma extensão do Império Espanhol, criando várias
instituições, com destaque para as universidades.
Foi
citado no início a existência de elementos que lembram o sistema
feudal da Idade Média. Essa é uma longa discussão de historiadores
que abordam a questão da longa duração desse período e seu avanço
sobre a América. Para vários
autores a encomienda não
é um feudo, visto que ele é um sistema no qual um único fica
encarregado de receber os impostos que os índios devem ao soberano.
O encomendero é uma
espécie de coletor munido de grandes poderes. Esses mesmos autores
acrescentam que a diferença fundamental entre o feudo e a encomienda
consiste no fato desta não acarretar de forma alguma uma relação
de propriedade sobre a terra. No entanto, como salienta Ruggiero
Romano, os encomenderos
receberam também, além dos índios que lhes eram confiados, terras,
obtidas a título de ‘merced’ (concessão
de terras, estímulo para o assentamento colonial).
Romano compartilha da ideia que se tornou tendência nos estudos
sobre América Colonial, de que os valores medievais europeus
penetraram na região, tornando-a uma continuidade medieval.
Na
ausência de mulheres europeias, os espanhóis casam-se as mulheres
indígenas, formando famílias numerosas, com vários agregados. É
uma família mestiça, vista de forma negativa tanto pelos europeus
quanto pelos indígenas, já que o resultado dessa união, o mestiço,
acreditava-se carregar os defeitos de ambas as raças, o que para o
historiador italiano Ruggiero Romano faz a família
indígena-espanhola não ser um grupo estável suscetível de
construir o núcleo de um mundo futuro.
O
Estado por eles formado
é fraco, dominado por um número incrível de contradições, de
interesses divergentes que dificilmente chegam a encontrar um
equilíbrio. Nesse ponto é interessante lembrar o embate entre Frei
Bartolomé de Las Casas, que defendia os interesses da Coroa
Espanhola; e Juan Ginés
Sepúlveda, que defendia os interesses dos encomenderos,
os particulares. O projeto de conquista em si é conflitante, dada a
realidade política e geográfica que se estabeleceu no continente.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
AMADO,
Janaína; GARCIA, Ledonias Franco. Navegar
é preciso: grandes descobrimentos marítimos europeus.
São Paulo: Atual, 1989. (História em documentos).
CAPPONI,
Anna Sulai. El culto de
Santiago entre las comunidades indígenas de Hispanoamérica: símbolo
de comprensión, reinterpretación y compenetración de una
nuevarealidad espiritual.
Imaginário - USP, 2006, vol.
12, no 13, 249-277.
HOLANDA,
Sérgio Buarque de. Raízes
do Brasil.
São
Paulo: Companhia das Letras, 1996.
ROMANO,
Ruggiero. Os
Mecanismos da Conquista Colonial.
São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
TODOROV,
Tzvetan. A
Conquista da América: a questão do outro.
São Paulo: Martins Fontes, 1983.
CRÉDITO DA IMAGEM:
http://www.estherlederberg.com
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