terça-feira, 6 de fevereiro de 2018

O espanhol que veio para a América

Pintura de Andrés de Islas retratando um casal de Chapetones e seus escravos, no México, no século XVIII.

A América, o novi orbis (novo mundo) de Pedro Mártir de Anglería, era um lugar de oportunidades para os que se aventuravam em terras distantes. O quadro político e econômico da Europa no século XV, principalmente da Península Ibérica, recém-saída de um processo de reconquista, agravada por problemas, faz da América uma terra visada por grupos que procuravam a estabilidade e a ascensão social.

No continente, além de ouro e pedras preciosas, buscou-se o que dificilmente esses homens encontrariam na metrópole: a ascensão social. Como bem escreveu Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil, o nivelamento de classes na Península Ibérica dependia do prestígio social herdado, do peso da ancestralidade. No entanto, feitos notáveis e boas virtudes suprem essa carência hereditária. O homem ibérico dos séculos XV e XVI, principalmente o espanhol, tenta se superar, é competitivo. Uma pequena ou inexistente nobreza, às vezes imaginária, buscava por suas ações na conquista o reconhecimento, um alicerce e a inserção no mundo das cortes. O enobrecimento permitiria uma vida tranquila, pois “uma digna ociosidade sempre pareceu mais excelente, e até mais nobiliante, a um bom português, ou a um espanhol, do que a luta insana pelo pão de cada dia” (HOLANDA, 1996, p. 40).

O conquistador que vem para a América traz consigo o mito da superioridade espanhola, mito esse sustentado pelo pioneirismo e pelos efeitos das guerras de reconquista, ainda frescos na memória desses agentes. Esse espanhol que desembarca no continente carrega valores do antigo mundo medieval, tanto é que a organização da conquista é assentada, em certas proporções, em elementos feudais, na Igreja Católica e nas guerras de reconquista. Na encomienda – sistema mais difundido – os índios são confiados (encomendados) a um espanhol a quem pagam tributos sob a forma de prestação de serviços, predominando o trabalho forçado. As províncias, afastadas da metrópole, o centro do Império, se transformam em unidades autônomas. Nobres ou militares que imaginam-se nobres governam, até certo período, a seu modo e sem medo de intervenções do poder central.

A presença do conquistador atinge o psicológico dos nativos. Frei Bernardino de Sahagun escreveu que as armas bélicas, o canhão em especial, assombraram os índio da Nova Espanha: “[…] Muito espanto lhe causou ao ouvir como dispara um canhão […], como derruba as pessoas; e atordoaram-se os ouvidos. E quando cai o tiro, uma bola de pedra de suas entranhas: vai chovendo fogo […] (SAHAGUN, 1555, Apud AMADO e GARCIA, 1989, p. 50). Elementos do catolicismo espanhol sofrem alterações constantes. Santiago Matamoros, representação iconográfico Santiago Maior, padroeiro da Espanha, ganha uma nova roupagem em terras americanas:

Desde un punto de vista icnográfico el Miles Christi, o también llamado Matamoros, que había acompañado a los españoles en la reconquista de la Península, cuando llega a las tierras americanas se convierte en el emblema de la conquista y la figura del moro pagano se va sustituyendo con la del indio idólatra de modo que el patrono de España se convierte de Matamoros en Mataindios (CAPPONI, 2006, p. 253)

A chegada dos espanhóis é acompanhada de cataclismos, presságios. Tzvetan Todorv, em a Conquista da América: a questão do outro, recupera o seguinte relato de um tarasco nobre transmitido ao padre franciscano Martín Jesus de la Coruão:

Essa gente conta que durante os quatro anos que precederam a chegada dos espanhóis a estas terras, seus templos queimavam de alto a baixo, fecharam-nos, e os templos queimaram de novo e as paredes de pedra desmoronaram (porque os templos eram feitos de pedra). Não sabiam qual a causa desses acontecimentos mas consideraram-nos como presságios. Ao que parece, viram dois grandes cometas no céu (TODOROV, 1983, p. 54).

O espanhol, a contrário do que afirma Sérgio Buarque no capítulo O Semeador e o Ladrilhador, não é plenamente mais planejado que o vizinho português. As cidades da América Espanhola são articuladas, pelo menos até certo ponto. Existem, como se pode ver até hoje nas cidades históricas do México, da Colômbia e do Peru, cidades traçadas, planejadas, mas também existem, em grande número, aquelas que seguem o desenho natural do terreno, acidentado, ondulado, onde as casas estão aglomeradas umas sobre as outras, com ruas tortuosas, erguidas pela necessidade e muitas das vezes aproveitando as práticas de construção dos nativos ou as bases de suas antigas cidades. Mesmo com esse ‘semi planejamento’ o espanhol consegue criar, mesmo que imperfeitamente, uma extensão do Império Espanhol, criando várias instituições, com destaque para as universidades.

Foi citado no início a existência de elementos que lembram o sistema feudal da Idade Média. Essa é uma longa discussão de historiadores que abordam a questão da longa duração desse período e seu avanço sobre a América. Para vários autores a encomienda não é um feudo, visto que ele é um sistema no qual um único fica encarregado de receber os impostos que os índios devem ao soberano. O encomendero é uma espécie de coletor munido de grandes poderes. Esses mesmos autores acrescentam que a diferença fundamental entre o feudo e a encomienda consiste no fato desta não acarretar de forma alguma uma relação de propriedade sobre a terra. No entanto, como salienta Ruggiero Romano, os encomenderos receberam também, além dos índios que lhes eram confiados, terras, obtidas a título de ‘merced’ (concessão de terras, estímulo para o assentamento colonial). Romano compartilha da ideia que se tornou tendência nos estudos sobre América Colonial, de que os valores medievais europeus penetraram na região, tornando-a uma continuidade medieval.

Na ausência de mulheres europeias, os espanhóis casam-se as mulheres indígenas, formando famílias numerosas, com vários agregados. É uma família mestiça, vista de forma negativa tanto pelos europeus quanto pelos indígenas, já que o resultado dessa união, o mestiço, acreditava-se carregar os defeitos de ambas as raças, o que para o historiador italiano Ruggiero Romano faz a família indígena-espanhola não ser um grupo estável suscetível de construir o núcleo de um mundo futuro.

O Estado por eles formado é fraco, dominado por um número incrível de contradições, de interesses divergentes que dificilmente chegam a encontrar um equilíbrio. Nesse ponto é interessante lembrar o embate entre Frei Bartolomé de Las Casas, que defendia os interesses da Coroa Espanhola; e Juan Ginés Sepúlveda, que defendia os interesses dos encomenderos, os particulares. O projeto de conquista em si é conflitante, dada a realidade política e geográfica que se estabeleceu no continente.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AMADO, Janaína; GARCIA, Ledonias Franco. Navegar é preciso: grandes descobrimentos marítimos europeus. São Paulo: Atual, 1989. (História em documentos).
CAPPONI, Anna Sulai. El culto de Santiago entre las comunidades indígenas de Hispanoamérica: símbolo de comprensión, reinterpretación y compenetración de una nuevarealidad espiritual. Imaginário - USP, 2006, vol. 12, no 13, 249-277.
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.
ROMANO, Ruggiero. Os Mecanismos da Conquista Colonial. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
TODOROV, Tzvetan. A Conquista da América: a questão do outro. São Paulo: Martins Fontes, 1983.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://www.estherlederberg.com



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