Entrudo familiar no Rio de Janeiro. Pintura de 1822 de Augusto Earle.
“O
carnaval com o seo cortejo de folias,
NOTAS:
caretas
e momices, nos bate á porta; mesmo já nos parece ouvir
um
desconchavado você me conhece, d’algum ratão coberto de
trapos
e burundangas, cujo espirito o barometro gradua zero”.
Chronica.
Esperança: Periodico litterario e critico do Amazonas
21/01/1877.
“Pedimos
a polícia providências”, escreveu o redator do jornal A Voz
do Amazonas sobre os mascarados que saíam nas ruas das vilas da
província durante a realização do entrudo, folguedo popular de
raízes ibéricas coloniais marcado por brincadeiras informais em que
valia tudo, desde o arremesso de limas com água perfumada até ovos
podres, trigo e tinta. Ele salienta também que na Europa e na corte
do Rio de Janeiro haviam bailes mascarados, os “bailes
masqueés”1,
mas que estes eram vigiados pela polícia, e que só se poderia
utilizar máscaras no recinto em que estava sendo realizada a festa.
O
entrudo, do latim introitu, uma introdução à
Quaresma, começava pela madrugada. As limas, laranjas e limões de
cheiro, feitas com cera derretida em formas e onde eram colocados
diferentes tipos de líquidos (água, água aromatizada, urina, tinta
etc), eram previamente preparadas pelas donas de casa, escravas e
agregados. Se a residência tivesse dois pisos, seus moradores
dirigiam-se para o segundo e, quem passasse pela rua, era atingido
por esses objetos. Esse era o entrudo familiar, privado. Nas ruas
ocorria o entrudo mais popular, uma verdadeira guerra em que
participavam tapuios, brancos e escravos, arremessando uns nos outros
pó de arroz, trigo, tinta, água, ovos podres e o que tivessem em
alcance.
Na
Lei N° 101 de 08 de julho de 1859, em que foi aprovado o Regulamento
n° 10 de maio daquele ano, para o Colégio de Nossa Senhora dos
Remédios, os dias de realização do entrudo são considerados
feriados, ao lado dos “dias santos de guarda, os de festa
nacional, ou provincial marcados por Lei, os de lucto nacional
declarados pelo Governo […] os de quarta feira Santa até o domingo
da Paschoa, e os que decorrem desde 20 de dezembro até 6 de
janeiro”2.
A festa, ou jogo, como também era chamado, era realizada
costumeiramente de segunda até quarta-feira, mas também poderia
ocorrer em dias variados.
Até
determinado período do século XIX existia a separação entre o
‘entrudo’ e o ‘carnaval’. O Entrudo era mais popular,
desorganizado, enquanto o carnaval era sinônimo de festa mais
organizada, destinada às elites. Os termos entrudo e carnaval, na
segunda metade do XIX, passaram a confundir-se. Talvez tivessem o
mesmo sentido. As ‘providências’ pedidas pelo redator parecem
que ainda não tinham sido tomadas. Em 1867, no jornal Amazonas,
comemorava-se que o Carnaval daquele ano “esteve como sempre,
alegre, e folgasão: alem dos mascarados que na tarde de domingo e
terça-feira percorreram as ruas, tivemos alguns bailes dados por uma
sociedade; bem como no salão do sr. Pingarilho, que sempre
proporciona aos diletantes estes bellos passatempos”3.
Se
até aquele momento essa prática festiva era tolerada, a introdução
de novas práticas culturais consideradas mais refinadas, como os
bailes mascarados, privados, realizados em estilo francês ou
veneziano, fizeram os dirigentes da província tomar medidas que
combatessem o que passava a ser considerado impróprio e nocivo para
os novos padrões. Em 1870, na Vila de Serpa, o entrudo é proibido,
como ficou estabelecido no Art.20 do Código de Posturas: “Á
ninguém é permittido andar pelas ruas e lugares publicos jogando o
entrudo, nem das casas lançar cousa alguma sobre os viandantes, sob
pena de incorrer cada um dos infractores na multa de cinco mil réis,
ou dous dias de prizão”4.
Os escravos que fossem encontrados na rua a partir das 21 horas até
o amanhecer, se não estivessem com as autorizações escritas de
seus senhores, com a declaração do nome do escravo, seriam presos.
Em 1872, no Código de Posturas Municipais de Silves, ocorre o
mesmo5.
No mesmo ano, no Código de Posturas Municipais de Manaus, no Art.
82, ficou determinado que:
Art.
82 - E’ prohibido andar-se pelas ruas e logares publicos á jogar
entrudo ou lançar alguma cousa sobre os transeuntes.
Pena
de dez mil réis de multa ou tres dias de prisão.
§
1. - Permitte-se as mascaradas e danças carnavalescas, de modo que
não se offenda a moral tranquilidade publica e não contenhão
allusão as autoridades ou a religião.
§
2.
- Pelas ruas, praças e estradas da cidade não transitarão pessoas
mascaradas depois do toque de – Ave Maria – salvo os que tiverem
para isso licença da autoridade policial. Os infratores incorrerão
na multa de cinco mil réis ou dous dias de prisão6.
No
Código de Posturas de 1875 o texto permanece quase que inalterado,
com exceção de algumas mudanças:
Art.
91 – E’ prohibido andar-se pelas ruas e lugares publicos a jogar
entrudo, ou lançar sobre os transeuntes alguma cousa que possa
prejudical-os, sob pena da multa de dez mil réis ou três dias de
prisão.
§
1.
- Permitte-se as mascaradas, dansas carnavalescas de modo que não
offendam a moral, a tranquillidade publica e não contenham aluzões
á religião, ás autoridades ou a pessoas gradas, sob pena da multa
de dez mil réis ou três dias de prisão.
§
2.
- Pelas ruas, praças e estradas da cidade não transitarão pessoas
mascaradas depois do toque de – Ave Maria – salvo tendo
para isso licença por escripto da autoridade policial.
O
infractor será multado em cinco mil réis ou vinte e quatro horas de
prisão7.
Interessante
notar as proibições sobre a religião, as autoridades e as pessoas
da elite. Nas pequenas vilas da Província, onde a vida social estava
centrada nas modestas paróquias, no acanhado comércio e por onde
corriam facilmente os boatos, era difícil que algo passasse
despercebido por seus habitantes. A época do entrudo era a
oportunidade para se fazer zombarias com escândalos envolvendo
religiosos, autoridades políticas e militares, e membros da alta
sociedade. Ferreira
Penna & Companhia tinha um grande e variado sortimento de
máscaras em sua loja, das mais requintadas até as “nunca
esquecidas caricatas”8.
Locais
“apropriados” foram construídos para a realização do carnaval.
Em 1872 Demetrio Antonio Peixoto apresentava a sua ‘Nova Sociedade
Carnaval Amazonense’, instalada em seu hotel de nome Amazonas, na
rua do Imperador, onde
passaria a receber as famílias da sociedade “[…]
em lugares decentemente decorados e independentes n’ uma extensa
galeria no primeiro grande salão collocada, aonde os Srs. Elegantes
phantasiados formaráõ o primeiro divertimento”.
Em um segundo salão os participantes poderiam encontrar um toilete
e, em outras câmaras iluminadas, “[…]
reffrescos,
fiambres, salames,
chá, chocolate, café, cerveja, tortas, queijos de diversas
qualidades, tudo pelos preços estabelecidos, e equidade”9.
A
tabela de preços para os participantes estava dividida da seguinte
forma:
“Senhoras
– Grátis
Cavalheiros
– 2$000
Phantasiados
(par) – 3$000
Ditos
(singularmente) - 2$000”10
Essas
proibições já vinham ocorrendo há tempos em outras províncias,
tendo iniciado no Rio de Janeiro. O caráter privado e elitista
ganhou cada vez mais espaço. Os jogos ficaram restritos ao ambiente
familiar, impondo dessa forma a separação entre os grupos que antes
festejavam entre si. Os que tivessem maior poder aquisitivo podiam
recorrer às lojas especializadas na venda de artigos para a festa. O
senhor Santos, no canto da rua Brasileira, oferecia roupas à
fantasia, tendo “23
costumes, tanto para homens como para senhoras
[…]
feitas na França, algumas novas, outras com pouco uso”11.
Theresa
Pereira Tavares, a Teté, em sua loja na rua da Instalação, tinha
por volta de 1879 um rico e variado sortimento de máscaras,
“fantasias
de pierrôs, vivandeiras e chicard de cetim bordado”12.
Em
um anúncio de 1881, a Loja Brinquinho,
na então rua da Matriz, anunciava
a “Alta
novidade para o carnaval”,
pois
acabara de receber “um
grande sortimento de bisnagas com os mais finos extractos e pós de
arroz, próprias para jogar o entrudo em casas de familia”13.
As
festas, agora, tinham início e fim para acabar, como ficou
estabelecido nas
alterações de 1879 no Código de Posturas de
Manaus,
indo “desde
a Dominga de Quinquagesima até as 11 horas da noite de terça-feira,
véspera de quarta-feira de Cinza”14.
Em
1884, prestes
a começar o Carnaval daquele ano,
a
Secretaria
de Polícia, por
ordem do chefe de polícia, publicou as disposições do Código de
Posturas Municipais sobre os festejos. Em parte ele ainda lembrava os
de 1872
e 1875,
mas tinha acrescidas novas proibições e punições:
Art.
81. Todo aquelle que insultar com palavras ou acções á qualquer
pessôa, será multado em 20$000 rs ou 5 dias de prisão. Art. 91. E’
prohibido andar-se pelas ruas e lugares publicos a jogar entrudo, ou
lançar sobre os transeuntes alguma cousa que possa prejudical-os,
sob pena da multa de 10$000 ou 3 dias de prisão. 1° Permitte-se as
mascaradas, danças carnavalescas, de modo que não offendam a moral,
a tranquilidade publica
e não contenham allusão á religião, ás autoridades ou á pessoas
gradas sob pena da multa de 10$000 rs, ou 3 dias de prisão. 2°
Pelas ruas, praças e estradas da cidade não se andará com mascaras
na cara depois das ‘Ave Marias’, salvo tendo para isso licença
por escripto da autoridade policial. O infractor será multado em
5$000 rs ou 24 horas de prisão15.
Nos
bailes, os que perturbassem a ordem ou não se portassem como pedia a
ocasião seriam retirados do recinto, como ficou instituído
em um antigo regulamento dos tempos da Comarca do Alto Amazonas, de
N° 120 de 31 de Janeiro de 1842. A
prática
do entrudo continuaria nas décadas seguintes, assim como as
investidas para a sua proibição e minimização, de forma a tornar
o Carnaval uma festa popular sadia, ou, pelo menos, passar essa
imagem. No grande Carnaval de 1905, retratado
em pinturas, desenhos e fotografias, por
exemplo, um cidadão foi multado em 50$000 réis por estar
praticando, com um grupo de foliões, o entrudo em cima de um
caminhão na Avenida Eduardo Ribeiro; e outro por “consentir
que de sua casa se entrudasse os transeuntes com água suja”16.
No
Amazonas e no restante do Brasil, o
Carnaval realizado desde o início do século XX guardou inúmeras
práticas do antigo entrudo ibérico colonial, prevalecendo a
tomada das ruas por foliões que realizam toda a ordem de
brincadeiras, zombarias, sátiras e danças. Os
Códigos de Posturas já não são mais uma ameaça aos brincantes,
mas, assim como o entrudo foi mal visto no passado por parte dos
dirigentes e das elites, o Carnaval é alvo da reprovação por parte
de alguns paladinos da ‘moral e dos bons costumes’.
NOTAS:
1
A Voz do Amazonas, 03 de Fevereiro de 1867.
2
Lei N° 101 – de 8 de Julho de 1859. Regulamento N° 10 de 7 de
Maio de 1859, para o Collegio de Nossa Senhora dos Remédios.
Estrella do Amazonas, 7 de Setembro de 1859.
3
Amazonas, 07 de Março de 1867.
4 Amazonas,
s.d., 1870.
5 Amazonas,
18 de Maio de 1872.
6 Amazonas,
03 de Julho de 1872.
7 Amazonas,
30 de julho de 1875.
8 Amazonas,
19 de Janeiro de 1879.
9
Amazonas, 17 de Janeiro de 1872.
10
Amazonas, 24 de Janeiro de 1872
11
Amazonas, 01 de Janeiro de 1879.
12
Amazonas, 31 de Janeiro de 1879.
13
Amazonas, 18 de Fevereiro de 1881.
14
Amazonas, 8 de Junho de 1879.
15
Amazonas, 01 de Janeiro de 1884.
16
Jornal do Comércio, 28 de Fevereiro de 1905.
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