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domingo, 18 de março de 2018

Francesco Guicciardini: Pensamento Histórico e Prática Historiográfica

Francesco Guicciardini (1483-1540).

O historiador e estadista florentino Francesco Guicciardini (1483-1540), contemporâneo de Nicolau Maquiavel (1469-1527), dedicou-se aos escritos políticos, produzindo História da Itália, obra de publicação póstuma que versa sobre a história contemporânea e recente das cidades-Estado italianas. Na introdução, o autor deixa claro quais foram as suas motivações e o ponto de partida para escrevê-la:

Eu decidi escrever sobre os eventos que ocorreram na Itália dentro de nossa memória, desde as tropas francesas, convocadas por nossos próprios príncipes, começaram a suscitar aqui grandes dissensões: um assunto mais memorável, tendo em vista seu alcance e variedade, e cheio dos acontecimentos mais terríveis; já que, durante anos, a Itália sofreu todas aquelas calamidades com as quais os miseráveis mortais costumam ser afligidos, às vezes por causa da justa ira de Deus e às vezes por causa da impiedade e maldade de outros homens. A partir de um conhecimento de tais ocorrências, tão variadas e tão graves, todos podem tirar muitos precedentes saudáveis tanto para si quanto para o bem público (1984, p. 3).

O livro de Guicciardini, que cobre um período que vai de 1490 a 1534, surge em um contexto de ebulição política marcada por conflitos militares entre os principais Estados da Europa e as cidades-Estado italianas, gestados pelas disputas de soberanos franceses interessados em garantir seus direitos hereditários sobre o Reino de Nápoles e o Ducado de Milão. Essa é a essência do trabalho de Guicciardini: a política, a relação entre os Estados europeus. De acordo com John Burrow, “ele entendia que a política era formada por configurações e circunstâncias únicas, e a história era o instrumento ideal para avaliá-las” (2007, p. 322).

Ainda conforme Burrow, Guicciardini era comprometido com o esmiuçamento dos fatos históricos, buscando explicações múltiplas para os acontecimentos. “Ele raramente oferece um único motivo para uma ação se puder pensar e três os mais” (2007, p. 322). Analisando a Itália e seu bom aspecto político e social no final do século XV, o autor escreveu:

Muitos fatores a mantiveram nesse estado de felicidade, que foi a consequência de várias causas. Mas foi mais comum concordar que, entre estes, nenhum pequeno louvor deve ser atribuído à indústria e habilidade de Lorenzo de Medici, tão eminente entre as classes ordinárias de cidadãos na cidade de Florença, que os assuntos dessa República foram governados de acordo com seus conselhos (1984, p. 4).

Esse interesse pelos detalhes, pelo íntimo das causas, segundo John Burrow, tem duas consequências importantes. “A primeira, da qual ele tem total consciência, é a advertência contra o excesso de confiança de comentadores e, mais importante, de estadistas: arrogância é insensatez. A segunda, que permeia toda a sua obra, é o comprometimento com a explicação através da narrativa, contando a densa particularidade de cada momento histórico relevante” (2007, p. 328).

No contexto cultural e historiográfico desse período de transição do mundo medieval para o moderno, Guicciardini, embora menos conhecido que outros humanistas italianos, possui um lugar de destaque. Com sua História da Itália, rompe com a tradição do estudo localizado, da escrita individual sobre as diferentes cidades-Estado, abordando a Itália de uma forma geral, além de fazer digressões sobre as outras nações beligerantes. Vale lembrar que Guicciardini, entre 1508 e 1509, publicou História de Florença, obra de estudo local sobre sua terra natal, que vai de 1378, com a Revolta dos Ciompi, até 1509, com a Batalha de Agnadello, uma das maiores das Guerras Italianas.

O professor Maurício Parada, autor de Os historiadores clássicos da História, em um capítulo dedicado a Guicciardini, recupera alguns estudos historiográficos que servem de norte para compreender o pensamento histórico e a prática historiográfica desse historiador italiano. Eduard Fueter (1876-1928) afirma que Guicciardini não se interessava pela filosofia da história, prendendo-se à realidade, mas era extremamente preciso em suas análises empíricas, penetrando-as psicologicamente. Soma-se a isso a sua independência quase absoluta do juízo e o “egoísmo político”, que serve para apresentar as personagens como elas são, não de forma idealizada. Para Fueter História da Itália tem duas importantes inovações, a já citada abordagem geral (a Itália não é vista como uma unidade, mas um conjunto de diferentes povos que possuem certos elementos que garantem um certo grau de “união”) e o pessimismo político; e a pesquisa em arquivos públicos e familiares.

Felix Gilbert (1905-1991) segue a mesma trilha de Fueter, destacando o exame psicológico da história e a metodologia da pesquisa em arquivos públicos e familiares. Para ele essa é a última produção histórica escrita segundos os padrões clássicos e a primeira da historiografia moderna. Peter Bondanella (1943-2017) destaca a pesquisa documental feita por Guicciardini, chegando a afirmar que História da Itália foi precursora das histórias filosóficas de Voltaire, Gibbon, Montesquieu e Heggel. Para Mark Salber Phillips (1946) o diferencial de Guicciardini estaria na psicologia e no auto-interesse que guiavam os eventos de sua História. Eric Cochrane (1928-1985) considera que Guicciardini não era um anti-humanista, mas um herdeiro da escola historiográfica surgida no século XIV. A novidade de seu livro estaria na passagem da história das cidades para a história da nação, na conexão entre as narrativas das histórias das diferentes entidades políticas italianas.

Em síntese, ainda que com leves diferenças entre as análises de Fueter, Bondanella, Mark Salber e Eric Cochrane, Francesco Guicciardini realizou pesquisas empíricas em arquivos públicos e familiares, buscando nas fontes elementos das ações humanas que desencadearam os processos políticos da história recente das cidades-Estado italianas no período em que vivia. Guicciardini pode não ter rompido totalmente com a tradição humanista dos séculos XIII, XIV e XV, mas procurou inovar no que tange a abrangência temporal, ainda que em um intervalo curto de tempo se comparado, por exemplo, com a Nuova Crônica de Giovanni Villani, que vai da fundação da cidade de Florença até a segunda metade do século XIV.

O elemento que permeia a sua obra é a Fortuna (a boa ou má sorte). A Fortuna, para ele, é de grande importância na vida dos homens, no caso, dos políticos italianos e de outras nações, pois por mais que estes façam diferentes tipos de planos, projetos, são sempre atingidos por eventos favoráveis ou catastróficos que escapam de suas idealizações, restando a Fortuna, que lembra os homens de estes não podem controlar o destino. Como escreve em um período marcado por conflitos, também faz descrições das batalhas, das táticas de combate e dos materiais bélicos empregados; além de análises diplomáticas.

Em uma última análise, John Burrow afirma que a história de Guicciardini não foi uma imitação dos modelos humanistas. Ela, em parte, traz elementos que os lembram, como a produção de discursos para análises políticas, mas é original nas descrições das “complexas redes de relações diplomáticas”, e a “mudança de um centro de poder para outro é excepcionalmente rápida e por vezes, há de se admitir, confusa” (2007, p. 330). Os humanistas, em contrapartida, prezavam por modelos bem estruturados. Francesco Guicciardini, estadista, foi um historiador político, interessado nos eventos que sacudiam a Península Itálica desde fins do século XV e, mais ainda, no comportamento humano, guiado por interesses pessoais, com a Fortuna sempre a modificá-los.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BURROW, John. Uma história das histórias: de Heródoto e Tucídides ao século XX. Rio de Janeiro: Record, 2013. Tradução Nana Vaz de Castro.

GUICCIARDINI, Francesco. The History of Italy. Princeton University Press; New Edition, 1984. Translated by Sidney Alexander.

PARADA, Maurício. Os historiadores clássicos da História, Vol. I - de Heródoto a Humboldt. Rio de Janeiro: Vozes, 2012.


CRÉDITO DA IMAGEM:

http://omneslitterae.it


terça-feira, 27 de setembro de 2016

Império Carolíngio: Renascimento e ascensão da Igreja (II)

Segunda e última parte do texto Império Carolíngio: Renascimento e ascensão da Igreja.

Iluminura representando a construção do Palácio Imperial de Carlos Magno. Grande Crônica da França (1455), Jean de Fouquet.

O renascimento carolíngio está pautado em três elementos: o pensamento, o livro e a liturgia. A corte de Carlos Magno e depois a de seu filho Luís, o Piedoso, cerca-se de homens letrados de vários cantos da Europa. Esses letrados carolíngios tem o objetivo de difundir os principais textos do Cristianismo: em primeiro lugar, as Sagradas Escrituras; depois, os textos litúrgicos utilizados para a celebração do culto e, por último, clássicos da literatura cristã. Carlos Magno desejava criar "uma nova Atenas enriquecida pela plenitude sétupla do Espírito Santo" (1). Para realizar essa missão, no entanto, foi necessária uma mudança nas técnicas literárias utilizadas até então.

Os clérigos carolíngios passaram a utilizar a 'minúscula carolíngia', uma letra menor e mais elegante, que tornava os livros mais manuseáveis e legíveis. Além disso, os escritores carolíngios começam a separar, graças a um sistema de pontuação, as palavras umas das outras, assim como as frases. A partir dessas mudanças, a produção de livros aumenta de forma considerável, pois os monges copistas passam a trabalhar, em seus escritórios, de forma mais organizada. A maior parte dessas cópias era destinada ao culto cristão, outras, menos numerosas, eram sobre literatura latina. Preservar a literatura dos antigos permitia o conhecimento do paganismo, uma forma de conhecer o inimigo, e o aprendizado de regras de latim.

Aliás, o domínio das regras do latim é essencial para difusão dos textos antigos. O latim evoluía e variava de região para região. Para tentar garantir uma unidade, os clérigos restauram o latim, não da forma clássica, mas simplificado, para garantir uma transmissão correta do texto bíblico e dos fundamentos do pensamento cristão. Porém, eles reconhecem que as línguas faladas em outras regiões se distanciam cada vez mais do latim, e recomendam que os sermões sejam proferidos em línguas distintas. Instala-se um dualidade linguística na Europa: De um lado, o latim, uma língua erudita voltada para a leitura dos textos sagrados e da liturgia da Igreja; do outro, línguas vernáculas faladas por populações diversas.

O Império Carolíngio fez grande esforço para reformar a liturgia. Na Europa do século VIII existiam diferentes tradições litúrgicas, com características particulares para celebrar as festas e ritos cristãos. Além das liturgias romana, galicana e visigótica, existia uma infinidade dessas práticas em regiões menores do continente. Para o Império, que possui um projeto unificador, essa diversidade litúrgica é um empecilho para suas pretensões. Os monarcas carolíngios, então, voltam-se para Roma, com o objetivo de estender a liturgia que já era praticada nessa cidade. 

A base dessa reforma litúrgica é o sacramentário, livro essencial para a celebração da missa, que contém todas as fórmulas e regras que devem ser pronunciadas pelo sacerdote. O sacramentário enviado a Carlos Magno pelo papa, e revisado por Bento de Aniana, se torna o principal pilar do Ocidente cristão e garante a unificação desejada pelo imperador. A reforma litúrgica expressa bem a aliança entre esses dois poderes, Aix (capital imperial) e Roma (cidade papal).

Iniciado pela corte de Carlos Magno e continuado por seu filho, o renascimento artístico é inseparável do poder eclesiástico e imperial, e se espalha todos os domínios do imperador. São construídas igrejas imponentes, com um maciço voltado para a adoração aos santos e outro dedicado a Jesus Cristo; palácios e monastérios. 

O Monastério foi o embrião da universidade Ocidental. Localizados fora da malha urbana, esses locais tinham seu ensino dividido entre as Artes Mecânicas e as Artes Liberais. Em síntese, trabalho manual e trabalho intelectual. As primeiras artes eram dedicadas às camadas mais baixas da população, sendo as Artes Liberais destinadas para um pequeno número de aristocratas. As disciplinas Liberais eram divididas em: Quadrivium (aritmética, música, geometria e astronomia) e Trivium (lógica, gramática e retórica). O culto dos santos se tornou um sucesso no século VIII, fazendo com que as igrejas de peregrinação fossem ampliadas e que se realizassem reformas para facilitar o acesso dos fiéis às relíquias. 

A experiência de renascimento e restauração carolíngia foi de curta duração. Ela dura, em certos aspectos, até o reinado de Luís, o Piedoso (814-840). No entanto, com sua morte, o Império é repartido em 843 entre seus três filhos. Uma das características marcantes dos carolíngios e que contribuiu para a ruína do projeto imperial, foi o costume de repartir as posses imperiais entre os descendentes, o que cada vez mais fragmentava a Europa, dando origem ao atual mapa geopolítico do continente. Soma-se a esses fatores internos as incursões normandas e a pressão sobre a fronteira oriental. Os condes e outros aristocratas, que controlam as províncias, se mostram cada vez mais infiéis ao monarca, criando poderes autônomos.


NOTAS:

(1) A face cambiante da Europa. In: História em Revista 600 - 800: A Marcha do Islã. Time-Life, Rio de Janeiro: Editora Cidade Cultural. p. 82.

FONTES:

O Renascimento Carolíngio (séculos VIII e IX). In: BASCHET, Jérôme. A civilização feudal: Do ano mil à colonização da América. Tradução de Marcelo Rede. São Paulo: Editora Globo, 2006.

CRÉDITO DA IMAGEM:

commons.wikimedia.org