quarta-feira, 24 de janeiro de 2018

A condição do negro após a Abolição: cenário político-social e mecanismos de exclusão

Família de negros no Morro da Babilônia, no Rio de Janeiro. Foto do início do século XX.

A recente produção acadêmica na área das Ciências Humanas sobre o Brasil no período do Segundo Reinado abriu novos horizontes de possibilidades de pesquisa e de questionamentos. A partir de indagações, críticas e a inserção de novos elementos na investigação, passou-se a desmistificar antigas concepções até então enraizadas na historiografia. A escravidão, o processo de abolição e a condição do negro após sua concretização foram alguns dos temas que passaram a ser analisados a partir de novas perspectivas. A figura de "redentores" de certos agentes do Império e a "bondade" dos proprietários de escravos são exemplos do que foi repensado.

A historiador Wlamyra Albuquerque, em O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil, afirma que, mesmo com a dissolução das relações jurídicas entre senhores e escravos, do fim de uma legislação que sustentava a relação de domínio sobre o outro por sua condição, surgiram, paralelamente às "mudanças", novos mecanismos que impediam o acesso dos homens de cor ao cenário político-social que se firmava com a nova conjuntura política.

Dentro de uma linha da História social e cultural, também compartilhada do campo das representações, a socióloga Angela Alonso e a historiadora Lilia Moritz Schwarcz analisam o período, o processo de abolição e os projetos que foram pensados para a posteridade. 

Angela Alonso e Lilia Moritz compartilham de um recorte cronológico que, à exceção de alguns momentos, vai da década de 1870 até 1880, podendo, em alguns casos, ser perpassado. Verifica-se nesse período o aumento das discussões e dos embates entre setores da Monarquia e dos Republicanos abolicionistas, entre conservadores e progressistas.

Aliás, falando em embates, o título do livro de Angela Alonso, Flores, Votos e Balas: O movimento abolicionista brasileiro (1868-88), é bastante sugestivo, sendo uma exemplificação das principais etapas desse período. As 'flores' se referem aos debates, no seio de alguns setores políticos da Monarquia, sobre as possibilidades de se abolir a escravidão, que já era vista como uma forma de trabalho que não se adequava mais às nações que tinham o anseio de se modernizar. No caso dos 'votos', o que está em jogo é o enfraquecimento dos saquaremas, os políticos conservadores, e a ascensão dos liberais e progressistas, o que acabou por abrir o caminho para o fim da escravidão. As 'balas' são a fase mais turbulenta, marcada por ações armadas, pela repressão, pelo uso de força e pela violência de contrários e favoráveis.

Angela, de uma perspectiva sociológica, identifica como fator íntimo das discussões sobre a abolição a introdução de ideias positivistas no Império e a urbanização e desenvolvimento do capitalismo industrial. Monarquia, Catolicismo e Escravidão formavam um tripé rudimentar e um obstáculo para a introdução de um novo modo de produção econômica.

Lilia Moritz Schwarcz, em Dos males da dádiva: sobre as ambiguidades no processo da abolição brasileira, analisa, em um primeiro momento, as formas como a abolição foi apropriada pela Monarquia, que criou para si a imagem de sistema popular redentor das pessoas de cor, acreditando que tal ação traria a recuperação de um modelo político já bastante desgastado. Com o fim da escravidão e a não indenização dos proprietários, a Monarquia ruiu, sendo extinguido o Império de Dom Pedro II. As apropriações e projeções não partiram apenas do Estado Imperial. Schwarcz identifica proprietários, homens brancos da elite, se apresentando ou sendo apresentados em jornais da época como "bons samaritanos" ao alforriar seus escravos. As libertações, destaca, tornavam-se motivo de festas onde imperava a passividade do escravo e a suposta bondade de seu dono.

Diferente de outras partes da América, o Império e as elites passaram a imagem de que a emancipação dos escravos foi pacífica, sem maiores tumultos que perturbassem a ordem. As supostas relações de apadrinhamento, de proximidade e cordialidade eram utilizadas para manter os libertos nas propriedades de seus antigos senhores. Paga-se, agora, um salário, um baixo salário, prendendo assim o negro à terra, o que, de certa forma, compensava o antigo dono de suas perdas com o fim do sistema escravista.

Nos anos finais do Império e com o advento da República, ganharam terreno ideias de determinismo racial e de paternalismo. As pessoas de cor, mesmo libertas, continuavam em um plano inferiorizado. Como inserir tão grande contingente na sociedade? O ex-escravo precisava ser civilizado, se libertando de seus costumes, em um processo lento mas necessário para os dirigentes e agentes econômicos do capital. O Estado e os novos proprietários assumem a posição de paternalistas nesse processo. Para endossar os novos mecanismos de diferenciação social, surgem distinções linguísticas: Preto e Negro. O preto é o tipo ideal, submisso, indiferente, fácil de controlar, dócil e disposto ao trabalho. O negro é rebelde, violento, o fugitivo que forma quilombos na mata. Uma matéria publicada no Correio Paulistano, em 13/05/1895, mostra a visão que se tinha dos ex-escravos:

"O que eles dizem e o que eles fazem

(...) e a boa raça africana, tão dócil, tão afetiva, tão amiga, fator de riqueza nacional, a velha raça de Caim, em cujas tetas submissas bebemos, grande parte de nossa vida nacional está aí a nosso lado, humilde e sempre boa, honesta, moderada, serviçal, proliferando em paz, entregue a si mesma, sem incomodar os brancos. Que simpatia por essa velha pária da existência! Que beleza no seu fetichismo, na sua aflição primitiva, no amor que tem aos filhos dos brancos! Incorporada ao povo brasileiro, ela que não nos incomoda vive conosco à parte, sentindo conosco as coisas que sentimos...." (CUNHA E GOMES, 2007, p. 31)

Juridicamente o negro não era mais escravo, mas, por outros meios, continuava em uma posição que lembrava os tempos não tão antigos do Império. Ele não era mais um incômodo, a lembrar do medo das elites de uma rebelião nos moldes da que ocorreu no Haiti, mas vivia à parte da sociedade. Portanto, mesmo após o fim da escravidão, surgiram novos mecanismos que dificultaram a inserção dos ex-escravos, dos negros, na sociedade. Pode-se pensar, como afirma Angela Alonso, que a Abolição foi um movimento plenamente arquitetado pelas elites que buscavam espaço, agora, em um novo sistema político, econômico e social.


BIBLIOGRAFIA:

ALONSO, Angela. Flores, Votos e Balas: O movimento abolicionista brasileiro (1868-88). São Paulo: Companhia das Letras, 2015.

ALBUQUERQUE, Wlamyra R. de. O jogo da dissimulação: abolição e cidadania negra no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. Dos males da dádiva: sobre as ambiguidades no processo da abolição brasileira. In: GOMES, Flávio dos S; CUNHA, Olívia Maria da. (organizadores). Quase cidadão. Histórias e antropologias da pós-emancipação. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2007.



CRÉDITO DA IMAGEM:

http://guiajosecarlosmelo.blogspot.com.br





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