segunda-feira, 29 de janeiro de 2018

A Odisseia de um seringueiro

José Moraes, o seringueiro que, em poucos dias, teve a vida transformada em um verdadeiro Inferno. Foto de 1914.

 De todos os animais, o homem é o único que é cruel. É o único que inflige dor pelo prazer de fazê-lo”. - Mark Twain

José Moraes, natural do Piauí, trabalhava com seis fregueses seus no seringal ‘São Gonçalo’, da firma Asensi & Cia (Mato Grosso), “proprietária de grandes seringais no rio Ji-Paraná, no limite entre Mato Grosso e Amazonas”1. No dia 29 de agosto de 1913, José Moraes e seus fregueses partiram do seringal em direção ao barracão, com o objetivo de pedir mantimentos que já faltavam há uma semana. Chegando lá, Moraes deixou seus fregueses esperando enquanto subia o estabelecimento. José Gomes Coelho, o gerente2, recebeu o seringueiro aos gritos, dizendo que este tinha planos para eliminá-lo.

O seringueiro protestou, negando qualquer acusação. Queria urgentemente mantimentos, pois há uma semana sobrevivia apenas à base de mingau. Lembrou, no entanto, que se tinha alguma reclamação, ela se referia ao fato de que a pesagem da borracha que produzia não correspondia às suas expectativas. Novamente aos gritos, José Gomes Coelho perguntou ao seringueiro se ele achava que estava sendo roubado, no que também foi respondido no mesmo tom. O gerente refletiu, se acalmou. Pediu de Moraes a relação de mantimentos, que consistia de carne, feijão, banha e tabaco, coisas de primeira necessidade. O caixeiro Moura Ferro atendeu o seringueiro, lhe entregando os pedidos em quantidades reduzidas.

Pegos os mantimentos, era hora de esperar até o dia seguinte para voltar. Na manhã de 01 de setembro, quando se preparava para partir, foi impedido pelo gerente, que lhe informara que a ponte que ligava a região tinha desabado, tornando o retorno do grupo impossível.

José Moraes disse que dava seu jeito, pois em sua casa não havia mais comida e, além disso, sua mulher já estava em estado avançado de gravidez. O grupo, agora chefiado pelo empregado João Barbosa, teve que partir. Chegaram ao lugar onde ficava a ponte. Depois de muita dificuldade, Moraes conseguiu atravessar o rio pelos lugares menos profundos. Percebendo que demoraria para chegar em casa, mandou um de seus homens na frente com um pedaço de carne para ser entregue à família.

Às 17 horas o seringueiro Moraes chegou em casa. Um de seus filhos que estava enfermo morreu na sua ausência. Enterrou-o no dia seguinte, uma segunda-feira. Abatido física e psicologicamente, não trabalhou. Na terça-feira distribuiu os mantimentos e, acompanhado de sua mulher, partiu para o trabalho. Foi um dia calmo, aparentemente. No dia 04 de setembro o seringueiro se dirigiu a uma nova estrada para extrair o látex. Talhava uma seringueira, como era costume, quando às 10 horas foi surpreendido com um grito: - Não se mexa, cabra.

Olhando para trás, deparou-se com José Gomes Coelho, o gerente, acompanhado de 25 homens armados com rifles. Com um gesto de Gomes Coelho, dispararam contra José Moraes, que caiu rolando por uma depressão do terreno. Novos disparos foram feitos. O seringueiro, atordoado, tentou se levantar duas vezes, mas não conseguiu, ficando caído no local.

José Gomes Coelho partiu com seus capangas para a casa de José Moraes. Dispararam várias vezes contra o humilde casebre de palha. De dentro da residência ouviam-se choros. Surgiram, apavoradas, tremendo de medo, três crianças, uma de nove anos, uma de oito e outra de um ano. Elas jogaram-se de joelhos no chão, de mãos postas, pedindo desculpas e implorando por suas vidas.

A mãe ouviu os tiros e correu em socorro das filhas. Ela acabou sendo presa, junto de um freguês de seu marido, de nome Amâncio, que também tentou ajudar as crianças. Depois de um grande cerco na área, o restante dos fregueses foi preso, com exceção de um que estava em uma estrada desconhecida pelos homens de Gomes Coelho. Estes saquearam a casa de Moraes, levando o pouco que havia. Saíram dali com seus prisioneiros: a mulher e filhas de Moraes, os fregueses e suas famílias.

José Moraes não morreu, mas estava ferido. Auxiliado pelo seringueiro que não foi encontrado pelo grupo do gerente, se dirigiu até a casa de um caucheiro3 que também era freguês da firma Asensi & Cia. Ele pediu que fosse até sua casa pegar duas mudas de roupa, no que foi avisado pelo caucheiro que José Gomes Coelho o tinha proibido de prestar qualquer ajuda. No entanto, no dia seguinte, este ajudou o seringueiro.

Moraes e seu companheiro se embrenharam na mata com o intuito de alcançar o seringal em que estava o dono da firma, Carlos Miguel Asensi4. Quando atravessavam o seringal ‘Santo Antônio’, foram denunciados e presos. Nesse seringal, cujo gerente se chamava Zeca, e onde já se encontravam a mulher e as filhas de Moraes, bem como os demais presos, foram todos entregues a José Alves de Sant’Anna, que os levaria para o seringal ‘São Paulo’. Chegaram ao destino em 10 de setembro. Ali deviam aguardar a chegada de Antônio dos Reis Cavalcante, um dos sócios de Asensi & Cia, que cuidaria do destino dos prisioneiros.

José Alves lembrou José Rodrigues, gerente do ‘São Paulo’, de que os presos deveriam ser castigados, sendo preparados feixes de varas de goiabeira. José Rodrigues, em um primeiro momento, relutou, mas no dia seguinte ele mesmo espancou até a morte o jovem Pedro Caboclo, um dos fregueses presos. Antônio dos Reis Cavalcante não apareceu, sendo os prisioneiros levados para outro seringal, o ‘Dois de Novembro’. Antes de partir, Sant’Anna decidiu que os homens presos, a cada pausa no trajeto, tivessem as mãos açoitadas. Aqueles que tentassem reagir ou fugir teriam a cabeça cortada.

José Moraes suplicou para que não lhe batessem. Viu o estado em que ficaram as mãos de seus companheiros. José Alves concordou e, em troca, Moraes lhe venderia abaixo do preço um gramofone que possuía. Talvez esse objeto não existisse, mas foi o que bastou para que não tivesse suas mãos varadas. No dia seguinte chegaram ao ‘Dois de Novembro’, gerido por Fuão Ricardo, estando ali Miguel Leitão, relacionado à firma Asensi.

José Moraes, algemado e abatido, comia e bebia com a ajuda da mulher, assim como os seus companheiros. Leitão decidiu que tal situação, para ele “promíscua”, não deveria continuar: Os homens deveriam ser separados das mulheres, elas para Manaus e eles para Pimenta Bueno. Os prisioneiros imploraram, mas não foram atendidos. Os homens foram enviados na frente, enquanto as mulheres ficariam mais um tempo antes de ir. Durante a viagem, Moraes e um companheiro conseguiram fugir e, com um prego, tiraram as algemas.

José Moraes decidiu voltar ao ‘Dois de Novembro’, onde conseguiu, sorrateiramente, falar com a mulher, pedindo que ela fugisse e o esperasse no ‘Primor’. Sua mulher conseguiu fugir, indo para o local indicado, onde o filho nasceu. Moraes não apareceu, e a mulher partiu para Humaitá, onde deixou o filho com uma família caridosa, e uma mala que possuía, embarcando posteriormente para Manaus. A demora do seringueiro tinha explicação: Ele continuava se esgueirando pela mata, pois continuava sendo procurado por seus algozes. Chegando ao ‘Primor’, negaram a passagem de sua mulher. Voltou ao Mirary e de lá foi para Humaitá.

Conseguindo notícias da esposa, vendeu a mala que ela deixara na casa da família, conseguindo uma soma para vir até Manaus. Chegou a bordo do navio ‘Fortaleza’, em 10 de janeiro de 1914. Foto até a Santa Casa de Misericórdia na esperança de encontrá-la, o que não ocorreu. Nunca mais soube do paradeiro dela ou das filhas. A Odisseia do seringueiro José Moraes não teve um final semelhante à de Odisseu (Ulisses), que conseguiu voltar para Ítaca, para sua esposa e retomar seu lugar de rei. Talvez ele não esperasse que sua vida se tornaria um inferno ao questionar o gerente do seringal. O que ele conseguiu foi nos legar um relato5 que, depois de mais de um século, sai das sombras do esquecimento, ganhando vida e importância histórica, tornando-se registro de um cotidiano de sangue e de bala, das relações desumanas dos seringais. A Amazônia foi e ainda é uma fronteira, palco de conflitos, de punição, de resistência, de articulação de diferentes modos de produção, assentada sobre o sangue e os ossos de vários José Moraes.


NOTAS:

1 MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da “Comissão Rondon”. São Paulo, Educ/Fapesp, 1998, p. 261.

2 O gerente fazia parte do corpo burocrático do seringal, que incluía o encarregado de depósitos e o guarda-livros. Entre os seus deveres estava o de zelar e vigiar a casa que dirigia e fazer com que todos produzissem e vivessem satisfeitos. Cf. TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Servidão Humana na Selva – O aviamento e o barracão nos seringais da Amazônia. Manaus: Editora Valer/Edua, 2009.

3 O caucho (castilloa ulei) é uma planta da região amazônica, de mata de terra firme, de onde também se extrai o látex, mas este é inferior ao da seringueira. Pode ser encontrada no Brasil, no Peru, na Bolívia, na Colômbia e no Equador.

4 Carlos Miguel Asensi tinha como sócio o coronel Leovigildo Machado. MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da “Comissão Rondon”. São Paulo, Educ/Fapesp, 1998, p. 144.

5 José Moraes foi ouvido pelos redatores do Jornal do Comércio em 11/01/1914, que publicaram sua história em 12/01/1914 com o título ‘Odysséa de um seringueiro - José Moraes relata-nos o seu martyrológio – Cortem a cabeça, a casa garante!’.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da “Comissão Rondon”. São Paulo, Educ/Fapesp, 1998.

TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Servidão Humana na Selva – O aviamento e o barracão nos seringais da Amazônia. Manaus: Editora Valer/Edua, 2009.


FONTE:

Jornal do Comércio, 12/01/1914.

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