José Moraes, o seringueiro que, em poucos dias, teve a vida transformada em um verdadeiro Inferno. Foto de 1914.
“De
todos os animais, o homem é o único que é cruel. É o único que
inflige dor pelo prazer de fazê-lo”. - Mark Twain
José
Moraes, natural do Piauí, trabalhava com seis fregueses seus no
seringal ‘São Gonçalo’, da firma Asensi & Cia (Mato
Grosso), “proprietária de grandes seringais no rio Ji-Paraná, no
limite entre Mato Grosso e Amazonas”1.
No dia 29 de agosto de 1913, José Moraes e seus fregueses partiram
do seringal em direção ao barracão, com o objetivo de pedir
mantimentos que já faltavam há uma semana. Chegando lá, Moraes
deixou seus fregueses esperando enquanto subia o estabelecimento.
José Gomes Coelho, o gerente2,
recebeu o seringueiro aos gritos, dizendo que este tinha planos para
eliminá-lo.
O
seringueiro protestou, negando qualquer acusação. Queria
urgentemente mantimentos, pois há uma semana sobrevivia apenas à
base de mingau. Lembrou, no entanto, que se tinha alguma reclamação,
ela se referia ao fato de que a pesagem da borracha que produzia não
correspondia às suas expectativas. Novamente aos gritos, José Gomes
Coelho perguntou ao seringueiro se ele achava que estava sendo
roubado, no que também foi respondido no mesmo tom. O gerente
refletiu, se acalmou. Pediu de Moraes a relação de mantimentos, que
consistia de carne, feijão, banha e tabaco, coisas de primeira
necessidade. O caixeiro Moura Ferro atendeu o seringueiro, lhe
entregando os pedidos em quantidades reduzidas.
Pegos
os mantimentos, era hora de esperar até o dia seguinte para voltar.
Na manhã de 01 de setembro, quando se preparava para partir, foi
impedido pelo gerente, que lhe informara que a ponte que ligava a
região tinha desabado, tornando o retorno do grupo impossível.
José
Moraes disse que dava seu jeito, pois em sua casa não havia mais
comida e, além disso, sua mulher já estava em estado avançado de
gravidez. O grupo, agora chefiado pelo empregado João Barbosa, teve
que partir. Chegaram ao lugar onde ficava a ponte. Depois de muita
dificuldade, Moraes conseguiu atravessar o rio pelos lugares menos
profundos. Percebendo que demoraria para chegar em casa, mandou um de
seus homens na frente com um pedaço de carne para ser entregue à
família.
Às
17 horas o seringueiro Moraes chegou em casa. Um de seus filhos que
estava enfermo morreu na sua ausência. Enterrou-o no dia seguinte,
uma segunda-feira. Abatido física e psicologicamente, não
trabalhou. Na terça-feira distribuiu os mantimentos e, acompanhado
de sua mulher, partiu para o trabalho. Foi um dia calmo,
aparentemente. No dia 04 de setembro o seringueiro se dirigiu a uma
nova estrada para extrair o látex. Talhava uma seringueira, como era
costume, quando às 10 horas foi surpreendido com um grito: - Não se
mexa, cabra.
Olhando
para trás, deparou-se com José Gomes Coelho, o gerente, acompanhado
de 25 homens armados com rifles. Com um gesto de Gomes Coelho,
dispararam contra José Moraes, que caiu rolando por uma depressão
do terreno. Novos disparos foram feitos. O seringueiro, atordoado,
tentou se levantar duas vezes, mas não conseguiu, ficando caído no
local.
José
Gomes Coelho partiu com seus capangas para a casa de José Moraes.
Dispararam várias vezes contra o humilde casebre de palha. De dentro
da residência ouviam-se choros. Surgiram, apavoradas, tremendo de
medo, três crianças, uma de nove anos, uma de oito e outra de um
ano. Elas jogaram-se de joelhos no chão, de mãos postas, pedindo
desculpas e implorando por suas vidas.
A
mãe ouviu os tiros e correu em socorro das filhas. Ela acabou sendo
presa, junto de um freguês de seu marido, de nome Amâncio, que
também tentou ajudar as crianças. Depois de um grande cerco na
área, o restante dos fregueses foi preso, com exceção de um que
estava em uma estrada desconhecida pelos homens de Gomes Coelho.
Estes saquearam a casa de Moraes, levando o pouco que havia. Saíram
dali com seus prisioneiros: a mulher e filhas de Moraes, os fregueses
e suas famílias.
José
Moraes não morreu, mas estava ferido. Auxiliado pelo seringueiro que
não foi encontrado pelo grupo do gerente, se dirigiu até a casa de
um caucheiro3
que também era freguês da firma Asensi & Cia. Ele
pediu que fosse até sua casa pegar duas mudas de roupa, no que foi
avisado pelo caucheiro que José Gomes Coelho o tinha proibido de
prestar qualquer ajuda. No entanto, no dia seguinte, este ajudou o
seringueiro.
Moraes
e seu companheiro se embrenharam na mata com o intuito de alcançar o
seringal em que estava o dono da firma, Carlos Miguel Asensi4.
Quando atravessavam o seringal ‘Santo Antônio’, foram
denunciados e presos. Nesse seringal, cujo gerente se chamava Zeca, e
onde já se encontravam a mulher e as filhas de Moraes, bem como os
demais presos, foram todos entregues a José Alves de Sant’Anna,
que os levaria para o seringal ‘São Paulo’. Chegaram
ao destino em 10 de setembro. Ali deviam aguardar a chegada de
Antônio dos Reis Cavalcante, um dos sócios de Asensi & Cia, que
cuidaria do destino dos prisioneiros.
José
Alves lembrou José Rodrigues, gerente do ‘São Paulo’, de que os
presos deveriam ser castigados, sendo preparados feixes de varas de
goiabeira. José Rodrigues, em um primeiro momento, relutou, mas no
dia seguinte ele mesmo espancou até a morte o jovem Pedro Caboclo,
um dos fregueses presos. Antônio dos Reis Cavalcante não apareceu,
sendo os prisioneiros levados para outro seringal, o ‘Dois de
Novembro’. Antes de partir, Sant’Anna decidiu que os homens
presos, a cada pausa no trajeto, tivessem as mãos açoitadas.
Aqueles que tentassem reagir ou fugir teriam a cabeça cortada.
José
Moraes suplicou para que não lhe batessem. Viu o estado em que
ficaram as mãos de seus companheiros. José Alves concordou e, em
troca, Moraes lhe venderia abaixo do preço um gramofone que possuía.
Talvez esse objeto não existisse, mas foi o que bastou para que não
tivesse suas mãos varadas. No dia seguinte chegaram ao ‘Dois de
Novembro’, gerido por Fuão Ricardo, estando ali Miguel Leitão,
relacionado à firma Asensi.
José
Moraes, algemado e abatido, comia e bebia com a ajuda da mulher,
assim como os seus companheiros. Leitão decidiu que tal situação,
para ele “promíscua”, não deveria continuar: Os homens deveriam
ser separados das mulheres, elas para Manaus e eles para Pimenta
Bueno. Os prisioneiros imploraram, mas não foram atendidos. Os
homens foram enviados na frente, enquanto as mulheres ficariam mais
um tempo antes de ir. Durante a viagem, Moraes e um companheiro
conseguiram fugir e, com um prego, tiraram as algemas.
José
Moraes decidiu voltar ao ‘Dois de Novembro’, onde conseguiu,
sorrateiramente, falar com a mulher, pedindo que ela fugisse e o
esperasse no ‘Primor’. Sua mulher conseguiu fugir, indo para o
local indicado, onde o filho nasceu. Moraes não apareceu, e a mulher
partiu para Humaitá, onde deixou o filho com uma família caridosa,
e uma mala que possuía, embarcando posteriormente para Manaus. A
demora do seringueiro tinha explicação: Ele continuava se
esgueirando pela mata, pois continuava sendo procurado por seus
algozes. Chegando ao ‘Primor’, negaram a passagem de sua mulher.
Voltou ao Mirary e de lá foi
para Humaitá.
Conseguindo
notícias da esposa, vendeu a mala que ela deixara na casa da
família, conseguindo uma soma para vir até Manaus. Chegou a bordo
do navio ‘Fortaleza’, em 10 de janeiro de 1914. Foto até a Santa
Casa de Misericórdia na esperança de encontrá-la, o que não
ocorreu. Nunca mais soube do paradeiro dela ou das filhas. A
Odisseia do
seringueiro
José Moraes
não
teve um final semelhante à de Odisseu (Ulisses), que conseguiu
voltar para Ítaca, para sua esposa e retomar seu lugar de rei.
Talvez
ele não esperasse que sua vida se tornaria um inferno ao questionar
o gerente do seringal. O
que ele conseguiu foi nos legar um relato5
que, depois de mais de um século, sai das sombras do esquecimento,
ganhando vida e importância histórica, tornando-se registro de um
cotidiano de sangue e de bala, das relações desumanas dos
seringais. A
Amazônia foi e ainda é uma fronteira, palco
de conflitos, de punição, de resistência, de articulação de
diferentes modos de produção, assentada
sobre o sangue e os ossos de vários José Moraes.
NOTAS:
1 MACIEL,
Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e
imagens da “Comissão Rondon”.
São Paulo, Educ/Fapesp, 1998, p. 261.
2 O
gerente fazia parte do corpo burocrático do seringal, que incluía
o encarregado de depósitos e o guarda-livros. Entre os seus deveres
estava o de zelar e vigiar a casa que dirigia e fazer com que todos
produzissem e vivessem satisfeitos. Cf. TEIXEIRA, Carlos Corrêa.
Servidão Humana na Selva – O aviamento e o barracão nos
seringais da Amazônia. Manaus: Editora Valer/Edua, 2009.
3 O
caucho (castilloa ulei)
é uma planta da região amazônica, de mata de terra firme, de onde
também se extrai o látex, mas este é inferior ao da seringueira.
Pode ser encontrada no Brasil, no Peru, na Bolívia, na Colômbia e
no Equador.
4 Carlos
Miguel Asensi tinha como sócio o coronel Leovigildo Machado.
MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas
e imagens da “Comissão Rondon”.
São Paulo, Educ/Fapesp, 1998, p.
144.
5 José
Moraes foi ouvido pelos redatores do Jornal do Comércio em
11/01/1914, que publicaram sua história em 12/01/1914 com o título
‘Odysséa de um seringueiro - José Moraes relata-nos o seu
martyrológio – Cortem a cabeça, a casa garante!’.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:
MACIEL, Laura Antunes. A nação por um fio: caminhos, práticas e imagens da “Comissão Rondon”. São Paulo, Educ/Fapesp, 1998.
TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Servidão Humana na Selva – O aviamento e o barracão nos seringais da Amazônia. Manaus: Editora Valer/Edua, 2009.
FONTE:
Jornal do Comércio, 12/01/1914.
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