domingo, 22 de março de 2020

Dias de Peste: O poema de Álvaro Maia sobre a Gripe Espanhola em Manaus

À esquerda, Álvaro Botelho Maia (1893-1969). À direita, pacientes acometidos pela gripe em Iowa, nos Estados Unidos, em 1918. FONTES: Senado Federal/The Gazette, 2020.


Álvaro Botelho Maia (1893-1969), advogado, professor, escritor e político amazonense, publicou em 1918 no jornal Imparcial, por ocasião da epidemia de Gripe Espanhola em Manaus, o poema Dias de Peste, no qual discorre sobre os impactos da doença no cotidiano da cidade.


DIAS DE PESTE

PARA AFFONSO CUNHA.

I

A risada cortante, o olhar frio, a fronte alta,
marcando a destruição dos destinos humanos,
com o percurso veloz dos grandes aeroplanos,
alada Proserpina, aos volteios resalta...

Decepa, num segundo, o esforço de cem annos...
Cerca-se de anjos máos, o morticinio exalta,
e entorna sobre o mundo a purulenta malta
de venenos subtis, de pestiferos damnos...

Quem, porventura, a enfrenta á alegria não volta...
Segue-lhe o passo errante uma funebre escolta
de microbios lethaes e de invisiveis dardos...

E vae, como quem vae por um bosque em tormenta,
vendo atravez da sombra a alcateia sanguenta
de serpentes e leões, de tigres e leopardos...

II

Os mil deuses da Peste, horrendos semeadores,
exhibindo com furia o agigantado porte,
deslisam pela terra em barbara cohorte
e atiram rudemente as miserias e as dores...

A scena inspira á tela uma pintura forte...
Vê-se ao fundo, ao luzir de fulvos reflectores,
a ferrea picareta á mão dos cavadores,
que abrem vallas triumphaes nos canteiros da morte...

Vão os defunctos, como os bois para os mercados,
em tardos caminhões, ás duzias carregados,
- homens negros de pó, virgens de seios rentes...

E, vendo-os caminhar para o eterno horisonte,
- dantesca procissão nas aguas do Acheronte - 
Todos sentem no corpo o furor dos tridentes...


III

A luz rola em tumulto. O brando luar parece
feito para cobrir um campo de batalha...
O sol, que se despenha em redoirada messe,
jorra no ouro em fusão violencias de metralha...

Neste cyclo de dor, que os nervos atassalha,
quanta belleza extrema os olhos enardece...
Vêde! A renda do luar é uma tenue mortalha;
o sol é um cirio ardente, é a cor ardendo em prece...

Que importa á natureza o nosso amargor triste?
e sossobre a ventura? e corações enviuvem?
e enfraqueça o que vibra? e morra tudo o que ama?

Ah! regresse ao silencio o ideal que ainda existe!
Lua, occulta o esplendor nas dobras de uma nuvem!
Sol, teu deslumbramento é uma ironia em chamma!


IV

Está morta a energia. A ansiedade está morta.
As longas ruas são rios por onde passa,
gemendo em vagalhões, toda a immensa desgraça
de um colosso asphyxiado em fulminea retorta...

Rompendo o isolamento, entreabre-se uma porta...
O quadro é impressionante: á luz tremula e baça, surge a putrefacção nojosa de uma raça,
que em sua formidanda angustia se conforta.

Rondam germens no espaço... Esplendem, céus em fóra,
fogueiras de alcatrão... Buscando um desafogo,
tomba a fronte em vigilia até o alvor da aurora...

E á noite, vista de ao longe, a febrenta cidade
resuscita á lembrança, aos livores do fogo,
a historica visão de uma longinqua idade...


V

Nessas ruas, que são para a embriaguez e o orgulho,
vultos magros se vêm em graves roupas pretas...
- São vencidos e heróes, mendigos e calcetas, 
manas que attingiu o virulento esbulho...

Erguem vozes de dor, como um fundo marulho
de golfos em resáca e enseadas em maretas,
misturando ao rolar fanhoso das carretas
um clamor de penuria, um pungente barulho...

Chegam, ferindo o ouvido, uns rumores soturnos...
Será a alma de Chopin compondo outros nocturnos?
Serão phrases da Biblia ecoando pelo vento?

Não! São os varios sons de soluços e escarros,
o rouquento ranger dos funerarios carros
e as patas dos corceis batendo o calçamento...


VI

Vós, que vistes um dia entregues ao abysmo,
victimas do flagello, almas que foram de ouro,
deixai-as descançar no encanto immorredouro,
ou viver na piedosa uncção do transformismo...

Parai dentro do peito as blasphemias do egoismo,
as torrentes da queixa, as cachoeiras do agouro...
Mudai o soffrimento em radioso thesouro,
em sonhos de trabalho, em hosannas de altruismo...

Fugí, de enxada ao hombro, aos desertos e ás brumas.
Espalhai pelo solo as sementes e as hastes
de orchideas e jasmins, de cedros e sumaúmas...

Que os mortos pagarão, entre bençans celestes, 
pelos brancos pendões o luto que ostentastes,
pelos galhos cantando as dores que tivestes...

Alvaro Maia



FONTE:

Imparcial, 28/11/1918.




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