domingo, 26 de fevereiro de 2017

Predecessores da Historiografia grega: Os logógrafos

Cariátides no templo de Erecteion, Acrópole de Atenas, século V a.C.

Os homens, nos tempos mais remotos, tinham como instrumento de transmissão de conhecimento a oralidade. A grandiosidade do mundo à sua volta, as imposições sofridas pela natureza indomável, o cotidiano rudimentar e outros elementos que poderiam causar fascínio e medo, fizeram surgir mitos e lendas para ilustrar a origem da vida e do mundo. Deuses, deusas e heróis surgiram para reger o universo e proteger aldeias, vilas e cidades. Os gregos, durante vários séculos, viam nesses relatos seu passado histórico. Não é difícil, através de uma reconstrução imaginativa, ver que as personagens de mitos e lendas representam seres humanos que possivelmente existiram um dia. O poeta épico Hesíodo (século VIII a.C.), em suas obras Os Trabalhos e os Dias e Teogonia, reúne, em versos, uma infinidade de histórias transmitidas oralmente, sendo considerado uma das principais fontes sobre os mitos e lendas gregas.

No século VI a.C., um grupo de prosadores gregos provenientes da Jônia e de outras regiões passou a racionalizar esses mitos e lendas para buscar uma origem histórica vinculada mais aos homens do que aos deuses. Estes eram os logógrafos, ainda não propriamente historiadores, por misturarem mitos aos fatos, mas já apresentando um certo espírito crítico, estando divididos em escritores de genealogias e relatos de fundação de cidades; obras geoetnográficas e de relatos de viagens; e mitográficas. Através de inúmeros fragmentos, cópias presentes em outras obras ou vagas citações, é possível conhecer a escrita, o estilo e os métodos desses 'quase' historiadores que antecederam Heródoto e Tucídides.

O mais antigo, ainda que envolto de dúvidas sobre sua existência e temporalidade, foi Cadmos de Mileto, que escreveu uma crônica sobre a fundação de sua cidade, utilizando tradições orais de mitos e lendas. Acusilau de Argos (final do século VI e primeira metade do século V a.C.), dório de origem mas escritor em dialeto jônico, escreveu uma Genealogia de sua cidade natal. Nela buscava estabelecer “uma linha sucessória desde a origem do mundo e dos deuses até o nascimento do primeiro homem, Foroneo, que também havia sido […] o primeiro rei humano de Argos e progenitor das estirpes reais do Peloponeso” (LÓPEZ, 2006, p. 39). Miceneo, herói fundador da cidade de Micenas, seria filho de Espartón e neto de Foróneo. Argos, fundador da cidade de mesmo nome, é neto de Foróneo através da união de Níobe, irmã de Espartón, com Zeus. Três heróis, sendo o último, fundador de Argos, o primeiro filho de Zeus com uma mortal. Essa Genealogia de origem divina engrandece sua cidade. Na parte dos mitos

“foi fortemente influenciado por Hesíodo, mas aplica um critério seletivo sobre a tradição quando elabora a genealogia de Foroneo e insere nela os heróis fundadores das grandes cidades do Peloponeso, resolve feitos inverossímeis de alguns mitos, sincroniza feitos e personagens míticos isolados e apresenta esses feitos e personagens sem os epítetos que a eles estavam consagrados pela tradição poética”.1

Quanto à escrita, Acusilau utiliza o dialeto jônio mesclado a formas anteriores de uma língua comum com expressões poéticas. Seu estilo é o paratático, de frases curtas unidas por partículas coordenativas e entrelaçadas pela repetição em cada frase de alguma palavra. Dialeto jônio e estilo paratático são característicos dos logógrafos. Ferécides de Atenas (primeira metade do século V a.C.) também produziu uma genealogia, intitulada Histórias, dividida em 10 livros. Ferécides não começa essa obra com uma cosmogonia nem com uma teogonia, mas com uma genealogia dos heróis da tradição mítica, com suas ascendências até os deuses, e suas descendências até os personagens de sua época e de sua cidade. É o primeiro a se dedicar às lendas da Ática e ao herói Teseu, de sua luta contra as Amazonas e as façanhas em Creta. O estilo é o paratático e o dialeto é o jônico.

Foi através das viagens marítimas, motivadas principalmente pelo comércio, que os gregos tomaram ciência da existência de outras culturas. Os logógrafos geoetnográficos e de relatos de viagens descreveram as terras e os povos que conheceram durante suas expedições pelo Mediterrâneo, Ásia e África.

Hecateu de Mileto (560 – 480 a. C.), proveniente da aristocracia de Mileto e contemporâneo das revoltas das cidades jônias contra o domínio persa, escreveu Genealogias, uma obra em prosa em que ordenava as linhagens das tradições míticas sobre as sagas heroicas. Hecateu não faz uma simples compilação, mostrando, em sua produção, uma busca pela verdade ou, pelo menos, pela verossimilhança. No proêmio diz o seguinte: “Assim fala Hecateu de Mileto: vou escrever o que é verdade, segundo se parece para mim, pois as histórias contadas pelos gregos são, me parece, contraditórias e ridículas”(LÓPEZ, 2006, p. 44). A verossimilhança é fundamentada na autoridade do autor, que indaga sobre suas fontes. O que ele pretende nessa obra é a organização e a racionalização dos mitos, numa tentativa de torná-los mais críveis. Hecateu é mais conhecido por suas obras de viagens, Descrição da terra (Periegeses) e Viagem ao redor da Terra (Periodos Ges). A Descrição da terra, dividida em dois livros, “Europa” e “Ásia”, foi produzida com informações obtidas durante as viagens e com informações de terceiros. A rota de viagens começa na Península Ibérica, passa pela costa da Europa até o Bósforo e contorna o Mar Negro; no segundo livro são abordadas a Ásia Menor, o Egito e a Líbia e termina nas Colunas de Hércules. Foram descritas formações geológicas, hidrográficas, cidades, portos e diversos povos e suas origens históricas ou lendárias. Viagem ao redor da Terra, um mapa do mundo à época, compreende a Ásia, a Europa e a África. Os continentes estão agrupados em partes iguais, em formato circular, agrupados em torno do Mar Egeu e rodeados pelo Oceano.

Helânico de Lesbos (480 - 395 a.C.) não foi um grande viajante como Hecateu, produzindo suas obras não a partir da observação pessoal, mas da obtenção de fontes orais e escritas. No campo mitográfico, Helânico revisa e sistematiza o passado mítico, ordenado de acordo com as sagas heroicas. Cada saga recebe um trabalho individual do autor. “Ele calcula por gerações a partir da tomada de Troia; elimina versões contraditórias, duplica ou amplia de forma arbitrária os membros de algumas linhagens e cria novas ramificações” (LÓPEZ, 2006, p. 48). Assim como seu predecessor, busca a racionalização do mito, suprimindo o que parecia excessivamente fantasioso e valendo-se do julgamento por verossimilhança. Helânico escreveu sobre a geografia, a história e os costumes da Pérsia, Egito, Lídia, Cítia e territórios mais relacionados com os gregos. Na própria Grécia, produziu monografias sobre costumes, construções, lendas de fundação e genealogias sobre a Eólia, Lesbos, Argos, Arcádia, Beocia, Tessália e Atenas. Em Ática, uma de suas principais obras, são abordadas a geografia, a história e os costumes da Ática. Atenas, principal cidade dessa região, recebe uma revisão de seu passado mítico de forma a torná-lo politicamente favorável; as origens míticas das principais famílias; e, pela primeira vez, se dá atenção para Teseu, herói fundador de Atenas e contraponto de Hércules, antepassado dos espartanos. Fundações de povos e cidades, Os vencedores das Carneas e As sacerdotisas de Hera em Argos são obras de caráter cronológico. Helânico buscou nas listas oficiais de instituições, templos, anotações antigas para estabelecer datas a cada nome importante para relacioná-los com feitos do passado e do presente. Em Os vencedores das Carneas, escrita em prosa e verso, utiliza a lista dos poetas que venceram as festas espartanas das Carneas. As sacerdotisas de Hera em Argos é baseada em listas oficiais que remontam ao período da Guerra de Tróia, sendo a linha cronológica de Helânico fundamentada na lista de reis e arcontes de Atenas. O autor consegue estabelecer um período para a queda de Tróia, entre 1192 e 1183 a.C.

Outros logógrafos que podem ser citados são Xantos de Sardes, lídio criado nos moldes da educação grega, autor de obras sobre sua terra natal, sobre a Ásia Menor e os diferentes povos que a formavam; e Dionísio de Mileto, a quem “deve-se-lhe a transformação de toda a mitologia heroica em novela histórica. Nesta, os antigos heróis tinham o seu lugar tomado por monarcas, generais, sábios e filantropos” (AZEVEDO, 1964, p. 24).

Os logógrafos deram início a um importante trabalho de busca histórica de suas origens, de suas cidades e instituições, vendo na racionalização dos mitos e lendas resquícios do que um dia fora um passado crível. No entanto, esses historiadores dos primeiros tempos ainda estavam longe daquela historiografia inaugurada por Heródoto e rigorosamente aplicada por Tucídides, a dos feitos e fatos memoráveis puramente humanos.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

LÓPEZ, José Antônio Caballero. Inicios y desarrollo de la historiografia griega: mito, política y propaganda. Editorial Sintesis, Madrid, España, 2006.

AZEVEDO, Vítor de. A História antes de Heródoto In: HERÓDOTO, História. W. M. Jackson Inc. São Paulo, Vol. XXIII, 1964.

NOTAS:


1 LÓPEZ, José Antônio Caballero. Inicios y desarrollo de la historiografía griega: mito, política y propaganda. Editorial Sintesis, Madrid, Espana, 2006, p. 39.

CRÉDITO DA IMAGEM:

commons.wikimedia.org

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