Cariátides no templo de Erecteion, Acrópole de Atenas, século V a.C.
Os
homens, nos tempos mais remotos, tinham como instrumento de
transmissão de conhecimento a oralidade. A grandiosidade do mundo à
sua volta, as imposições sofridas pela natureza indomável, o
cotidiano rudimentar e
outros elementos que poderiam causar fascínio e medo, fizeram surgir
mitos e lendas para ilustrar a origem da vida e do mundo. Deuses,
deusas e heróis surgiram para reger o universo e proteger aldeias,
vilas e cidades. Os gregos, durante vários séculos, viam nesses
relatos seu passado histórico. Não
é difícil, através de uma reconstrução imaginativa, ver que as
personagens de mitos e lendas representam seres humanos que
possivelmente existiram um dia. O
poeta épico Hesíodo
(século VIII a.C.), em suas obras Os
Trabalhos e os Dias e
Teogonia, reúne,
em versos, uma infinidade de histórias transmitidas oralmente, sendo
considerado uma das principais fontes sobre os
mitos
e lendas gregas.
No
século VI a.C., um
grupo de prosadores gregos provenientes
da Jônia e de outras regiões passou
a racionalizar esses mitos e lendas para buscar uma origem histórica
vinculada mais aos homens do que aos deuses. Estes eram os
logógrafos, ainda não propriamente historiadores, por misturarem
mitos aos fatos, mas já apresentando um certo espírito crítico,
estando divididos em escritores de genealogias e relatos de fundação
de cidades; obras geoetnográficas e de relatos de viagens; e
mitográficas. Através
de inúmeros fragmentos, cópias presentes em outras obras ou vagas
citações, é possível conhecer a escrita, o estilo e os métodos
desses 'quase' historiadores que antecederam Heródoto e Tucídides.
O
mais antigo, ainda que envolto de dúvidas sobre sua existência e
temporalidade, foi Cadmos de Mileto, que
escreveu uma crônica sobre a fundação de sua cidade, utilizando
tradições orais de mitos e lendas. Acusilau
de Argos (final do século VI e primeira metade do século V a.C.),
dório de origem mas escritor em dialeto jônico, escreveu uma
Genealogia de
sua cidade natal. Nela
buscava
estabelecer “uma linha sucessória desde a origem do mundo e dos
deuses até o nascimento do primeiro homem, Foroneo, que também
havia sido […] o primeiro rei humano de Argos e progenitor das
estirpes reais do Peloponeso” (LÓPEZ, 2006, p. 39). Miceneo,
herói fundador da cidade de Micenas, seria filho de Espartón e neto
de Foróneo. Argos, fundador da cidade de mesmo nome, é neto de
Foróneo através da união de Níobe, irmã de Espartón, com Zeus.
Três
heróis, sendo o último, fundador de Argos, o primeiro filho de Zeus
com uma mortal. Essa Genealogia
de origem divina engrandece sua cidade. Na
parte dos mitos
“foi
fortemente influenciado por Hesíodo, mas aplica um critério
seletivo sobre a tradição quando elabora a genealogia de Foroneo e
insere nela os heróis fundadores das grandes cidades do Peloponeso,
resolve feitos inverossímeis de alguns mitos, sincroniza feitos e
personagens míticos isolados e apresenta esses feitos e personagens
sem os epítetos que a eles estavam consagrados pela tradição
poética”.1
Quanto
à
escrita, Acusilau utiliza o dialeto jônio mesclado a formas
anteriores de uma língua comum com expressões poéticas. Seu estilo
é o paratático, de frases curtas unidas por partículas
coordenativas e entrelaçadas pela repetição em cada frase de
alguma palavra. Dialeto
jônio e estilo paratático são característicos dos logógrafos.
Ferécides
de Atenas (primeira metade do século V a.C.) também
produziu uma genealogia, intitulada Histórias,
dividida em 10 livros. Ferécides não começa essa obra com uma
cosmogonia nem com uma teogonia, mas com uma genealogia dos heróis
da tradição mítica, com suas ascendências até os deuses, e suas
descendências até os
personagens de sua época e de sua cidade. É
o primeiro a se dedicar às lendas da Ática e ao herói Teseu, de
sua luta contra as Amazonas e as façanhas em Creta. O
estilo é o paratático e o dialeto é o jônico.
Foi
através das viagens marítimas, motivadas principalmente pelo
comércio, que os gregos tomaram ciência da existência de outras
culturas. Os
logógrafos geoetnográficos e de relatos de viagens descreveram as
terras e os povos que conheceram durante suas expedições pelo
Mediterrâneo, Ásia e África.
Hecateu
de Mileto (560 – 480 a.
C.),
proveniente da aristocracia de Mileto e contemporâneo das revoltas
das cidades jônias contra o domínio persa, escreveu
Genealogias,
uma obra em prosa em que ordenava as linhagens das tradições míticas
sobre as sagas heroicas. Hecateu não faz uma simples compilação,
mostrando, em sua produção, uma busca pela verdade ou, pelo menos,
pela verossimilhança. No
proêmio diz o seguinte: “Assim fala Hecateu de Mileto: vou
escrever o que é verdade, segundo se parece para mim, pois as
histórias contadas pelos gregos são, me parece, contraditórias e
ridículas”(LÓPEZ, 2006, p. 44). A
verossimilhança é fundamentada na autoridade do autor, que indaga
sobre suas fontes. O que ele pretende nessa obra é a organização e
a racionalização dos mitos, numa tentativa de torná-los mais
críveis. Hecateu
é mais conhecido por suas obras de viagens, Descrição
da terra (Periegeses)
e Viagem ao redor
da Terra (Periodos Ges).
A Descrição da
terra,
dividida em dois livros, “Europa” e “Ásia”, foi
produzida com informações obtidas durante as viagens e com
informações de terceiros. A rota de viagens começa na Península
Ibérica, passa pela costa da Europa até o Bósforo e contorna o Mar
Negro; no segundo livro são abordadas a Ásia Menor, o Egito e a
Líbia e termina nas Colunas de Hércules. Foram descritas formações
geológicas, hidrográficas, cidades, portos e diversos povos e suas
origens históricas ou lendárias. Viagem
ao redor da Terra, um
mapa do mundo à época, compreende a Ásia, a Europa e a África.
Os
continentes estão agrupados em partes iguais, em formato circular,
agrupados em torno do Mar Egeu e rodeados pelo Oceano.
Helânico
de Lesbos (480 - 395 a.C.) não
foi um grande viajante como Hecateu, produzindo suas obras não a
partir da observação pessoal, mas da obtenção de fontes orais e
escritas. No
campo mitográfico, Helânico revisa e sistematiza o passado mítico,
ordenado de acordo com as sagas heroicas. Cada saga recebe um
trabalho individual do autor. “Ele calcula por gerações a partir
da tomada de Troia; elimina versões contraditórias, duplica ou
amplia de forma arbitrária os membros de algumas linhagens e cria
novas ramificações” (LÓPEZ, 2006, p. 48). Assim como seu
predecessor, busca a racionalização do mito, suprimindo
o que parecia excessivamente fantasioso e valendo-se do julgamento
por verossimilhança. Helânico
escreveu sobre a geografia, a história e os costumes da Pérsia,
Egito, Lídia, Cítia e territórios mais relacionados com os gregos.
Na própria Grécia, produziu monografias sobre costumes,
construções, lendas de fundação e genealogias sobre a Eólia,
Lesbos, Argos, Arcádia, Beocia, Tessália e Atenas. Em
Ática,
uma de suas principais obras, são abordadas a geografia, a
história e os costumes da Ática. Atenas, principal cidade dessa
região, recebe uma revisão de seu passado mítico de forma a
torná-lo politicamente favorável; as
origens míticas das principais famílias; e, pela primeira vez, se
dá atenção para Teseu, herói fundador de Atenas e contraponto de
Hércules, antepassado dos espartanos. Fundações
de povos e cidades,
Os vencedores das
Carneas
e As sacerdotisas
de Hera em Argos
são obras de caráter cronológico. Helânico
buscou nas listas oficiais de instituições, templos, anotações
antigas para
estabelecer datas a cada nome importante para relacioná-los com
feitos do passado e do presente. Em
Os vencedores das
Carneas, escrita
em prosa e verso, utiliza a lista dos poetas que venceram as festas
espartanas das Carneas. As
sacerdotisas de Hera em Argos
é baseada em listas oficiais que remontam ao período da Guerra de
Tróia, sendo a linha cronológica de Helânico fundamentada na lista
de reis e arcontes de Atenas. O autor consegue estabelecer um período
para a queda de Tróia, entre 1192 e 1183 a.C.
Outros
logógrafos que podem ser citados são Xantos de Sardes, lídio
criado nos moldes da educação grega, autor de obras sobre sua
terra natal, sobre a Ásia Menor e os diferentes povos que a
formavam; e Dionísio de Mileto, a quem “deve-se-lhe a
transformação de toda a mitologia heroica em novela histórica.
Nesta, os antigos heróis tinham o seu lugar tomado por monarcas,
generais, sábios e filantropos” (AZEVEDO, 1964, p. 24).
Os
logógrafos deram início a um importante trabalho de busca histórica
de suas origens, de suas cidades e instituições, vendo na
racionalização dos mitos e lendas resquícios do que um dia fora um
passado crível. No entanto, esses historiadores dos primeiros tempos
ainda estavam
longe daquela historiografia inaugurada por Heródoto e rigorosamente
aplicada por Tucídides, a dos feitos e
fatos memoráveis puramente
humanos.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
LÓPEZ,
José Antônio Caballero. Inicios y desarrollo de la historiografia
griega: mito, política y propaganda. Editorial Sintesis, Madrid,
España, 2006.
AZEVEDO,
Vítor de. A História antes de Heródoto In: HERÓDOTO, História.
W. M. Jackson Inc. São Paulo, Vol. XXIII, 1964.
NOTAS:
1 LÓPEZ,
José Antônio Caballero. Inicios y desarrollo de la historiografía
griega: mito, política y propaganda. Editorial Sintesis, Madrid,
Espana, 2006, p. 39.
CRÉDITO DA IMAGEM:
commons.wikimedia.org
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