As charges, desenhos humorísticos publicados em jornais e revistas, foram criadas no século XIX, período marcado por profundas transformações políticas e culturais. Nesse contexto, surgiram como poderosos mecanismos de crítica político-social, que através de traços caricatos, exprimiam tanto elogios quanto descontentamentos, ambos com irreverência e acidez. Recolhi algumas charges publicadas no Jornal do Commercio (Manaus) entre 1911 e 1912. Elas são críticas à situações do cotidiano, à empresas e questões políticas.
- Ah! seu doutor, estou emmagrecendo de dia para dia e sinto-me cada vez mais fraco.
- Não se assuste. Isso tudo desapparece em poucos dias...
- Como, seu doutor?
- Não bebendo mais a agua da Manáos Improvements.
(JORNAL DO COMMERCIO, 28/09/1911)
Trata-se de uma crítica à concessionária inglesa Manáos Improvements, que explorava os serviços de abastecimento de água e esgotos da cidade (na verdade, de apenas algumas vias públicas privilegiadas).
- Antigamente a agua não fazia mal. Veio a Improvements, esburacou as ruas, fez depressões no calçamento e... toda a gente anda com colicas... por causa da agua... filtrada...
(JORNAL DO COMMERCIO, 27/10/1911)
Assim como o primeiro desenho, essa charge também é direcionada à empresa de abastecimento de água. Vários foram os casos de doenças relacionadas ao consumo da água distribuída pela Manáos Improvements.
Onde vae com esse material todo?
- Eu lhe digo: vou ao reservatorio da Improvements. Levo um espanador para correr com os carapanans, uma vassoura para affastar o lixo e um balde para apanhar uma amostra de agua suja e hydrometrica...
(JORNAL DO COMMERCIO, 06/01/1912)
Um ano depois, em 1913, a população, revoltada, invadiu os escritórios da Manáos Improvements, em um levante que fez jornais, repartições públicas e empresas fecharem suas portas.
Effeito da agua pôdre que a Improvements está mettendo no bucho do povo.
(JORNAL DO COMMERCIO, 17/11/1911)
- Apesar de todos os problemas, a precariedade do abastecimento e a qualidade da água, a concessionária inglesa ainda exploraria esse serviço na capital por mais de 3 décadas.
- Ahi está uma combinação que não será má: - um bond sujo da Light transformado em wagon de lama da Improvements!
(JORNAL DO COMMERCIO, 07/01/1912)
Além da Manáos Improvements, a charge critica a Manaos Tramways and Light Company, concessionária dos serviços de iluminação e transporte público (bondes elétricos). Em diferentes periódicos que circularam na cidade é possível encontrar inúmeras reclamações sobre a qualidade dos bondes, principalmente a velocidade com que seus condutores os dirigiam, muitas das vezes causando acidentes.
Inaugurou-se hontem a luz electrica na Villa Municipal.
(coisa sabida).
- Chi! Que sujeito atrazado! Ainda usa lampeão de kerosene!...
- Pudera! Eu moro no bairro de Flores e você reside na flôr dos bairros...
(JORNAL DO COMMERCIO, 14/10/1911)
Aqui fica evidente o tratamento dispensado a um bairro de elite (Vila Municipal, depois Adrianópolis) e a um arrabalde distante (bairro de Flores), tendo o primeiro recebido a iluminação elétrica, enquanto que, para uma boa parte da população, restava o uso dos lampeões a querosene.
- Em consequencia de estarem entupidos os boeiros, a cidade parecia um mar, hontem, por occasião do temporal.
(JORNAL DO COMMERCIO, 16/09/1912)
Cenas de um cotidiano passado que se confunde com o atual.
- Quando me lembro que hoje é o dia sete de outubro, tenho arrepios...
- E eu... tenho vergonha de ser brasileira...
(JORNAL DO COMMERCIO, 07/10/1911)
As duas senhoras, na charge, lembram-se do dia 7 de outubro de 1911 de diferentes formas (uma com medo e outra com vergonha), pois ele antecedia o dia 8 de outubro, quando o Bombardeio de Manaus completaria um ano.
- Que Deus te não desempare, cynico dos cynicos!
(JORNAL DO COMMERCIO, 17/01/1912)
Essa charge está relacionada à chegada, em Manaus, de Antônio Gonçalves Pereira de Sá Peixoto (1869-1948), vice-governador do Estado do Amazonas e um dos idealizadores (ao lado do Senador Pinheiro Machado, opositor do governador) do famoso Bombardeio de Manaus, ocorrido em 08/10/1910, que teve como objetivo a derrubada do governador Antônio Clemente Ribeiro Bittencourt (1853-1926).
- Aqui está um quadro de hontem...
(JORNAL DO COMMERCIO, 18/01/1912)
Charge publicada um dia depois da visita de Antônio Gonçalves Pereira de Sá Peixoto.
A cidade, ainda hontem, esteve ás escuras.
(queixas do povo)
- Procure você por lá o fiscal da Light, que eu vou por cá procurando a luz...
(JORNAL DO COMMERCIO, 17/04/1912)
Apesar de ter sido uma das primeiras cidades a contar com um moderno sistema de luz elétrica, o serviço era precário. Frequentes eram as queixas sobre postes apagados, quebrados, solicitações do serviço esquecidas e, como na charge acima, de dias em que a cidade ficava em completa escuridão.
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