quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

História da Criminalidade em Manaus: Caso Rebeca (1981)

Carmem Rebeca Miguel Lobo Carvalho. FONTE: Jornal do Comércio, 03/05/1981.

 “Requintes de barbarismo
Foi que a desgraça pintou
Crimes dos mais horrendos
Manaus aqui registrou
Carlos Lobo o desalmado
Sua filha trucidou”.

(SOARES, Claudio. Rebeca, a estudante mártir vítima do próprio pai. Manaus, 05/05/1981)

No dia 30/04/1981, uma quinta-feira, o tradicional bairro Praça 14 de Janeiro ficou tumultuado por conta de um crime que por várias décadas ecoaria na memória de seus moradores: A jovem Carmem Rebeca Miguel Lobo Carvalho, mais conhecida como Rebeca, de 13 anos, foi encontrada morta em sua residência, na rua Emílio Moreira, n° 1248, com várias perfurações de faca pelo corpo. Fazia pouco mais de 5 anos que a cidade tentava se recuperar das lembranças sombrias do ‘Monstro da Colina’, de São Raimundo. Mais uma vez um jovem era trucidado, constatando como esse tipo de crime, desde a década de 1960, estava se tornando mais frequente.

Carmem Rebeca Miguel Lobo Carvalho tinha 13 anos e era aluna do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, na rua Silva Ramos. Nessa instituição gostava de praticar vários esportes, com destaque para o basquete. Apesar de ser jovem, se sobressaía sobre os demais estudantes por sua altura, 1,78 metros. Seus pais eram Carlos Lobo Carvalho, ex-secretário de Comunicação no Acre e comerciante proprietário de um escritório de representações comerciais, e Carmem Miguel Lobo, funcionária pública da SEMIC (Serviço de Medicina, Indústria e Comércio). A família Lobo Carvalho era conhecida no bairro Praça 14 de Janeiro, onde ficava o escritório de Carlos, por sua dedicação ao trabalho e cuidados dispensados aos filhos. Ninguém imaginava que um membro da própria família trucidaria Rebeca…

Carlos Lobo Carvalho. FONTE: Jornal do Comércio, 05/05/1981.

Carlos Lobo Carvalho, o comerciante que era visto como um pai e trabalhador exemplar, matara a filha com cerca de 40 facadas (15 em algumas versões). De acordo com os depoimentos prestados por seu motorista e seu cunhado, todas as ações foram premeditadas. Pela manhã, horas antes de cometer o crime, Carlos encheu uma mala, duas bolsas e uma pasta com roupas e documentos, avisando a esposa que poderia “viajar a qualquer momento”. Feitas as malas, foi ao banco, onde sacou a quantia de 250 mil cruzeiros, deixando apenas 100 cruzeiros para trás. De tarde, por volta das 15:00 horas, quando seu cunhado e o motorista saíram de casa em direção ao Centro da cidade, trancou-se em seu quarto com Rebeca, onde a jovem foi encontrada morta. O depoimento de Carlos Lobo, prestado em uma segunda-feira, 04/05/1981, de pouco mais de uma página, é mais rico em informações, permitindo uma reconstituição precisa das horas que antecederam o assassinato de Rebeca; e confuso em algumas partes.

A mãe de Rebeca segurando a arma do crime, uma faca de caça. FONTE: Jornal do Comércio, 03/05/1981.

Carlos passou toda a manhã do dia 30/04/1981 trabalhando em seu escritório, que ficava ao lado de sua casa. 12:00 horas se reuniu com a família para almoçar. Terminada a refeição, levou a filha Raquel Miguel Lobo Carvalho para o Colégio Nossa Senhora Auxiliadora e a esposa para a SEMIC e, posteriormente, retornou ao escritório. Às 15 horas foi para casa fazer um lanche. Encontrou sua filha, Rebeca, assistindo televisão na sala. Disse algumas palavras e foi para a cozinha. Encontrando a empregada no local, deu dinheiro para que ela comprasse pão, café e leite. Depois de comer, foi até o quarto onde pegou uma pasta com documentos que utilizaria para comprar uma passagem para Macapá, seu destino no sábado. Enquanto arrumava os documentos, Rebeca entrou no quarto e sentou-se na cama. Perguntou se o pai viajaria mesmo e, com ele afirmando positivamente, pediu que trouxesse de Macapá um macacão. A partir deste ponto seu depoimento fica um tanto confuso: “Depois fui possuído pelo demônio”, disse ao delegado. “Sabia que empunhava uma faca e atingia alguém. Só parei quando me vi refletido no espelho como uma figura monstruosa. Então me recolhi no chão, com a cabeça entre as pernas e fiquei ali, não sei por quanto tempo, até que ouvi a empregada batendo na porta da frente”. Carlos não lembrava se tentou esconder o corpo, mas antes de abrir a porta para a empregada, trocou a roupa, que estava toda ensanguentada. Ao abrir a porta, pediu que a empregada não abrisse a porta do quarto pois “Rebeca estava dormindo e não poderia ser incomodada”. Quando o motorista Carlos Henrique e seu cunhado Andenor Saraiva de Oliveira voltaram do Centro, Carlos Lobo pediu que o primeiro colocasse a bagagem arrumada pela manhã no carro e o levasse até a casa de seu irmão, Cleber, no bairro Japiim. Enquanto rodavam pelo bairro em busca da casa de Cleber, o motorista notou que Carlos estava estranho, inquieto e falando sozinho que “estava desgraçado”. E continuou: “Não tenho para onde ir. O único lugar seguro seria a casa do meu irmão e não sei mais onde é. Para o sítio eu não vou”. Encontrando a casa do irmão, saiu do carro chorando e foi ao encontro deste, com quem ficou conversando e pediu ajuda. Cleber pediu o carro do motorista, que ficou ao lado de Carlos sem entender aquela situação. O irmão de Carlos voltou acompanhado de uma filha e pediu que o motorista fosse embora. Ele, no entanto, disse que ficaria ao lado de seu patrão que, no entanto, disse que não seria preciso e o liberou dos afazeres naquele dia. Dispensado o motorista, Cleber e Carlos foram para um varadouro na AM-010, onde passaram a noite de quinta-feira e a manhã de sexta-feira. Voltando para Manaus, pararam em um bar à beira da estrada e viram um grupo de jovens jogando bola em um terreno. Perguntando de quem era a propriedade, descobriram que era do advogado Armando Freitas. Carlos decidiu procurá-lo e disse que sabia apenas que tinha matado a filha Rebeca. De alguma forma a polícia foi avisada de que ele procurou um advogado, e esta, prontamente, fechou todas as saídas da cidade.

Carmem Miguel Lobo. FONTE: Jornal do Comércio, 05/05/1981.

No dia em que prestava o depoimento, cerca de 1000 pessoas se dirigiram para o distrito de polícia em que ele estava, aos gritos de “lincha o monstro que matou a filha”. Pedras foram arremessadas na janela do distrito, sendo necessária a transferência de Carlos para outro local. Um policial, para dispersar as pessoas, fez disparos para o alto, sendo necessário reforços da Companhia de Choque da Polícia Militar para controlar a situação.

Mas o que levou Carlos Lobo a assassinar a própria filha, utilizando como arma uma faca de caça? O que teria ocorrido para que um homem de sua posição social, benquisto pela vizinhança e sem antecedentes criminais, cometesse um dos crimes mais conhecidos da cidade? Deve-se interrogar as fontes, os depoimentos, para tentar penetrar no psicológico de Carlos Lobo.

Quando Carmem Miguel Lobo, a mãe de Rebeca, encontrou o corpo da jovem enrolado em um lençol na noite de 30/04/1981, ela, de acordo com as informações colhidas nos depoimentos e nas matérias de jornal, afirmava não ter dúvidas de que o assassino era seu marido. Mas por que Carmen tinha tanta certeza, mesmo antes das primeiras investigações que confirmariam tal assertiva? Carmen, por várias vezes, afirmou que Carlos sempre foi um marido e pai exemplar, não fumava e não bebia, sendo desconhecidos quaisquer vícios. Era bastante protetor em relação aos filhos, mas com Rebeca era diferente. Com a jovem ele era protetor ao extremo, beirando a possessão. Os outros filhos sentiam ciúmes dessa atenção especial dispensada a Rebeca, pois todas as vezes que saia, Carlos a levava junto. Um ano antes do crime, em 1980, Rebeca começou a namorar um jovem chamado Valber José Santana Feitosa, morador da rua Nhamundá, no mesmo bairro. Carlos descobriu o namoro e ficou extremamente irritado, chegando mesmo a procurar o padrasto de Valber para proibir o namoro. Em depoimento, o padrasto de Valber, Francisco Augusto da Cruz, sub-tenente reformado da Polícia Militar, confirmou que foi procurado por Carlos, que pediu que ele tomasse providências pois Rebeca era muito jovem para se relacionar amorosamente. Meses depois, Carlos foi novamente a residência de Francisco Augusto, ameaçando “aplicar um corretivo em Valber” caso os dois não rompessem relações, quando lhe foi mostrada uma carta de Rebeca insistindo no namoro.

Acreditava-se que, além das facadas, Carlos tinha deflorado a filha. Correram boatos pela cidade e pela imprensa. Carmem Lobo também acreditava que isso tinha ocorrido. No entanto, o legista do Instituto Médico Legal não encontrou nenhum indício de violência sexual contra Rebeca no exame de necrópsia. Em seu próprio depoimento Carlos afirmava que em nenhum momento passou por sua cabeça o desejo de violá-la e, mais de uma vez, que estava possuído por um Demônio ou entidade semelhante. Questionado mais de uma vez por repórteres se Rebeca era sua filha legítima, sempre afirmou que sim. Sem antecedentes criminais, sem ato sexual durante o crime… O que aconteceu com Carlos Lobo naquele dia? Será que premeditara o crime algumas horas antes do dia 30/04/1981 ou já o tinha em mente desde 1980, quando Rebeca conheceu Valber? De alguma forma, utilizando aqui um pouco de Psicologia, o filicida Carlos Lobo ao matar a filha, tentava atingir a esposa Carmem? Se sim, por quais motivos? São muitas perguntas cujas respostas ficam no campo das suposições.

Após o tumulto no distrito policial, Carlos foi levado a um cartório para concluir seu depoimento. Sua esposa, a pedido do delegado, disse que queria vê-lo. Ficando frente a frente com o assassino de Rebeca, com quem constituiu família, enfureceu-se. Aos gritos, perguntava: “Carlos, o que é que você fez seu desgraçado? Porque mataste tua filha, rasgando-lhe o ventre? Não pensastes nos planos que fizemos juntos pensando no futuro dela? Minha vontade é matar-te pouco a pouco e engolir todo o teu sangue”. Carmem foi levada do cartório e Carlos Lobo enviado à Penitenciária Central do Estado, sendo condenado em 04/05/1981 a 25 anos de prisão.

A residência da família Miguel Lobo de Carvalho foi transformada na casa de drinks Anacondas, inaugurada seis meses depois do crime. De acordo com frequentadores, o ambiente desse bar era bastante pesado.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SOARES, Claudio. Rebeca, a estudante mártir vítima do próprio pai. Manaus, 05/05/1981 (Cordel).

ZYLBERKAN, Mariana. Mortes em família: quando o assassino está dentro de casa. Revista VEJA, 21/09/2013.


FONTES:

JORNAL DO COMÉRCIO, 03/05/81, 05/05/81, 06/05/1981, 07/05/1981, 17/10/81.






quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Ruas de Manaus: Tabelião Lessa


Travessa Tabelião Lessa, 1985. FONTE: Manaus Sorriso/Acervo da PMM.

Localizada entre as ruas dos Barés e Barão de São Domingos, do lado do Mercado Municipal Adolpho Lisboa, na zona portuária do Centro da cidade, a Travessa Tabelião Lessa passa quase que despercebida pelos milhares de transeuntes que todos os dias frequentam aquela área. Não fosse uma placa com letras brancas e fundo azul, já teriam esquecido por completo que aquela pequena via possui nome.

Sua história começa em 1918. Em 19 de março daquele ano, em sessão no Conselho Municipal, o Intendente Dr. Fulgêncio Martins Vidal apresentou um projeto de lei que dava o nome de “[…] Tabelião Lessa á rua que fica ao lado leste do Mercado Público, até hoje sem nome” (IMPARCIAL, 19/03/1918). Até aquele momento, o pequeno trecho ao lado do Mercado Público não possuía nome, sendo um mero caminho de acesso à praia que se formava com a vazante do rio. O projeto foi aprovado e transformado em “Lei N° 923 de 20 de março de 1918” (IMPARCIAL, 20/03/1918).

Um mês antes, em fevereiro de 1918, falecera o homenageado, Coronel Manoel Antonio Lessa, popularmente conhecido como Tabelião Lessa. Maiores informações nos são apresentadas em seu necrológio (elogio fúnebre): Manoel Antonio Lessa nasceu em 16 de fevereiro de 1845 na Província do Ceará, sendo seus pais José Antonio Lessa e Lauredana Corrêa Lessa. Veio jovem para a região amazônica, indo primeiramente para a cidade de Óbidos, no Grão-Pará, matriculando-se no Colégio S. Luiz de Gonzaga. Desempenhou, em 1863, então com 18 anos, os cargos de porteiro do Inspetor da Tesouraria da Fazenda e de escrivão da Coletoria de Rendas Federais. Um ano depois foi nomeado auxiliar de expediente do Selo. De 1867 a 1868, atuou naquela cidade como escrivão interino da Mesa de Rendas. Em 1868, mais uma vez através de nomeação, atuou como escriturário. Em 1869 foi nomeado praticante de Tesouraria da Fazenda e auxiliar do 2° escriturário Euphrasio Paes de Azevedo, na Flotilha do Amazonas. Serviu no Correio Geral e, em 7 de julho de 1870, foi nomeado Tabelião de Notas de Manaus, cargo no qual construiu sua carreira. Faleceu em 16 de fevereiro de 1918 aos 73 anos, “[…] na mesma data de seu nascimento, com a diferença de 1 hora e 20 minutos” (A CAPITAL, 17/02/1918).

Antiga mercearia 'Porta Larga'. FOTO: Robson Franco, 2014.

Alguns anos depois da nomeação daquela pequena via, já aparecem estabelecimentos comerciais endereçados com o nome de rua, posteriormente travessa, Tabelião Lessa: “Hotel Popular”, do espanhol José Rodriguez González (EL HISPANO AMAZONENSE, 29/07/1922), “Mercearia Sempre Viva (JORNAL DO COMÉRCIO, 03/02/1923), eTabacaria Nova Estrela”, de M. Pinto (JORNAL DO COMÉRCIO, 07/09/1944). O mais conhecido, sem dúvida, é o prédio da antiga mercearia Porta Larga, que chama a atenção por sua arquitetura. O prédio, pouco largo, possui uma entrada consideravelmente grande se comparada com o resto da obra.

A Travessa Tabelião Lessa recebeu, em 1956, o serviço de “pavimentação com alvenaria poliédrica e revestimento de asfalto” (MENSAGEM À ASSEMBLEIA LEGISLATIVA APRESENTADA PELO GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAZONAS POR OCASIÃO DA ABERTURA DA SESSÃO LEGISLATIVA DE 1956). Mais recentemente, em 2014, a Prefeitura instalou um portão de ferro na travessa para impedir a comercialização irregular de pescados e o trânsito de moradores de ruas e usuários de entorpecentes.


FONTES:

Imparcial, 19/03/1918.
Imparcial, 20/03/1918.
A Capital, 17/02/1918.
Mensagem à Assembleia Legislativa apresentada pelo Governador do Estado do Amazonas, Plínio Ramos Coelho, por ocasião da abertura da Sessão Legislativa de 1956.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Manaus Sorriso/Acervo da PMM.
Robinson Franco.