terça-feira, 1 de outubro de 2019

A Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro

Prospecto da Fortaleza de São José da Barra. Desenho de 1756 do Capitão Engenheiro alemão Johann Andreas Schwebel. FONTE: Biblioteca Nacional (RJ).

A Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro foi uma das construções mais emblemáticas de Manaus, sendo considerada o núcleo que deu origem à cidade na segunda metade do século XVII. Assim como diversos fortes construídos na região naquele período, surgiu como mecanismo de defesa contra ameaças estrangeiras nessa parte distante da América Portuguesa.

Os relatos mais antigos sobre a Fortaleza surgem entre o final do século XVII e o século XVIII. O Pe. Samuel Fritz (1654-1728), em seu Diário, registra que chegou ao Rio Negro na noite de 7 de Setembro de 1690, lugar “[…] onde o rei de Portugal, há anos, mandou fazer uma fortaleza” (PINTO, 2006, p. 106). Entre 1774 e 1775, o Ouvidor e Intendente Geral Francisco Xavier Ribeiro Sampaio percorreu a Capitania de São José do Rio Negro em viagem de correição de suas povoações. Sampaio relata que “O general do estado Antonio de Albuquerque Coelho mandou edificar a fortaleza da barra deste rio por Francisco da Motta Falcão, e foi o seu primeiro commandante Angelico de Barros” (SAMPAIO, 1825, p. 89).

Alexandre Rodrigues, de passagem pelo Lugar da Barra no final do século XVIII, durante sua Viagem Filosófica pelas capitanias do Grão-Pará, Rio Negro, Mato Grosso e Cuiabá (1783-1792), fez uma breve relação dos comandantes da Fortaleza entre 1754 e 1787:

“Desde o dito ano de 1754 até o de 1787, em que estamos, sucederam-se, pela ordem que para aqui transcrevo, o alferes Alexandre Tomás, o cabo de esquadra José Ferreira Tordolho, o tenente Teodoro da Frota, o capitão de granadeiros José da Silva Delgado, o alferes Crispim Lobo de Souza, dito Luís da Cunha de Diarios pp209-350.pmd 355 22/10/05, 12:28 356 Eça, dito Francisco Alves Caeiro, o tenente Bernardo Toscano de Vasconcelos, segunda vez o alferes Crispim Lobo de Souza, o tenente Francisco Vitorino José da Silveira, terceira vez Crispim Lobo de Souza, já então promovido a tenente, dito Manoel Lobo de Almeida, o alferes Manoel Alves Romeiro Belo, o ajudante auxiliar Custódio de Matos Pimpim, segunda vez o tenente Francisco Vitorino José da Silveira, o soldado Francisco Serrão de Oliveira e o cadete, promovido a alferes, Antônio José da Costa Souto Maior” (FERREIRA, 2005, p. 355-356).

Registrou que

“No estado, porém, em que se acha, de já estarem rachadas as cortinas, demolida uma representação de baluarte e arruinado o seu pequeno parapeito, aonde estavam montadas peças, enquanto não arrebentou uma delas, é um fantasma que já hoje ilude tão pouco que nem uma só peça conserva” (FERREIRA, 2005, P. 356).

Em 1852, no Relatório do Presidente da Província do Amazonas, João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, a Fortaleza é descrita como uma construção arruinada, sem maiores usos:

“O Forte desta Capital tem apenas as arruinadas muralhas. O local he o mais improprio; e, ainda que se despendessem consideraveis sommas para a sua reedificação, de utilidade alguma poderia servir, a não ser para signaes de regosijo em Dias de Festa Nacional”. (AMAZONAS, RELATÓRIO DA PROVÍNCIA DO. 30/04/1852, p. 76).

No Dicionário topográfico, histórico, descritivo da comarca do Alto-Amazonas, Lourenço da Silva Araújo Amazonas, no verbete ‘Manáos’, afirma que “principiou esta Cidade pelo estabelecimento de algumas famílias de Barés, Banibas, e Passés á sombra da Fortaleza de S. José do Rio Negro” (AMAZONAS, 1852, p. 188). Araújo Amazonas continua, afirmando que

“As informações da importância do Rio Negro, ministradas por Favella ao dito Governador do Estado, determinárão-no a commetter em 1669 a Francisco da Motta Falcão a fundação da Fortaleza de S. José do Rio Negro, que se effectuou em sua margem septentrional, tres legoas acima de sua confluencia; da qual foi primeiro Commandante Angelico de Barros, e a cujo abrigo promptamente se reunirão algumas famílias de Baníbas, Barés e Passés, as quaes, missionadas pelos Carmelitas, explicão o principio da actual Cidade de Manáos”. (AMAZONAS, 1852, p. 233).

O poeta e historiador Aprígio Martins de Menezes (1844-1891), em sua História da Província do Amazonas, de 1884, diz o seguinte sobre a Fortaleza:

“em 1669 fundou Francisco da Motta Falcão a Fortaleza de S. José do Rio Negro, da qual foi primeiro commandante Angelico de Barros. Esta fundação e os domicílios que em redor d’ella foram estabelecendo algumas famílias Banibas, Barés e Passés dão origem a cidade de Manáos”. (MENEZES, 1884, p. 89).

Bertino de Miranda, jornalista paraense autor de A cidade de Manaus: sua história e seus motins políticos, de 1908, dá importância à construção como sendo o núcleo que deu origem à Manaus: “A história de Manáos data de dous seculos. A Fortaleza precede ao povoado. Já em 1700 vêmol-a em attitude belicosa. Foi construída por Manuel da Motta Falcão, cuja família parece ter sido especialista em obras desta natureza” (MIRANDA, 1908, p. 02). Na tentativa de estabelecer as bases de uma História oficial do Amazonas, Miranda afirma que o Capitão Guilherme Valente “[…] funda a Cidade ahi pelo principio do seculo XVIII”. (MIRANDA, 1908, p. 02).

Por volta de 1942, o historiador Arthur Cézar Ferreira Reis (1906-1993), no trabalho Roteiro das fortificações no Amazonas, publicado na Revista do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), ao abordar a Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro, afirmou que

“Não é página definitiva ainda a origem do forte de São José do Rio Negro. Os cronistas, como Alexandre Rodrigues Ferreira, Baena, Araujo Amazonas, Ribeiro de Sampaio, André Fernandes de Sousa, Bertino Miranda, que riscaram o primeiro noticiário acêrca da história antiga do Amazonas, não esclareceram o assunto. Quem escreve estas linhas, procurando fixar a data exata da fundação e o nome do fundador, apesar das pesquisas que realizou para a monografia “Manaus e outras vilas”, editada em 1934, também não conseguiu elementos suficientes para o informe definitivo”. (REIS, 1942, p. 125).

Arthur Reis, recuperando o relatório de José Miguel Aires, Capitão-Mor das Ordenanças, feito em 1749, nos informa que o material da mesma consistia naquele período (segunda metade do século XVIII) em:

“Dez peças de artilharia ambas no chão sem carretas huma de cinco e outra de coatro. 4 cuxarras de cobre. 1 sacatrapo. 1 soquete. 17 ballas de artilharia. 12 pallanquetas. 6 dardos com xapas e recontros de ferro. 2 baionetaz. 2 sachos muito velhos. 4 ferros de cova muito velhos. 1 enxó de carpinteiro. 1 grissa. 2 escouperos. 1 martelo grande. 1 culher de pedreiro. 2 verrumas muito velhas. 1 serra de mão. 1 grilhão. 1 alabarda. 200 ballas de mosquete. 1 gonilha. 1 tronco”. (REIS, 1942, p. 132-133).

Quanto à guarnição, “[…] havia apenas um tenente, um sargento e quatro praças. A serviço dessa guarnição, mas localizados no povoado nascente à sombra do forte, viviam o principal Mandú Assú e 13 indigenas” (REIS, 1942, p. 133).

Em 1969, ano do Tricentenário de fundação da cidade, o geógrafo e historiador Agnello Bittencourt (1876-1975) escreveu em sua obra comemorativa Fundação de Manaus: Pródromos e Sequências, que

“[…] pela necessidade de garantir os portuguêses na bôca do Rio Negro contra os jesuítas espanhóis e os indígenas hostis, aliados aos holandeses da Guiana, foi construída em 1669, pelo Capitão Francisco da Motta Falcão, a Fortaleza de São José do Rio Negro, origem da cidade de Manaus” (BITTENCOURT, 1969, p. 29).

Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004), autor do clássico Fundação de Manaus, nos informa que a Fortaleza, erguida em 1669, tinha um formato quadrangular, sendo construída com pedra e barro, não possuindo fosso. Sua artilharia ficou a cargo de Francisco da Mota Falcão e Manuel da Mota Siqueira. Ela era composta por “duas peças de bronze e duas de ferro, respectivamente de calibres um e três”, que “guarneciam as cortinas, numa ameaça surda e perfeitamente inútil ao invasor suspeitado” (MONTEIRO, 1994, p. 25). Para o autor a Fortaleza seria incapaz de impedir incursões de inimigos, pois estes poderiam penetrar a região pelo furo de Guariúba, que ligava o Rio Negro ao Solimões.

A literatura mais antiga têm como ponto de partida da fundação da Fortaleza e da cidade de Manaus o ano de 1669. No entanto, não apresenta documentos que comprovem tal data como sendo a da fundação do forte e da cidade, apenas referências que também não fazem o mesmo. Sobre isso, Mário Ypiranga Monteiro, no artigo A César o que é de César, publicado em 02/09/1969 no Jornal do Comércio, afirma que a História da cidade deve partir da construção da Fortaleza, seguindo a regra geral de sua construção tendo sido em 1669. Todavia, não deixa de observar que

“Seria de maior interesse para a História se o construtor do forte da Barra viesse incumbido de fundar a cidade, mas isto jamais aconteceu. Por singular que pareça, Manaus não teve fundação oficial. Nem decretais, nem fórmulas simples, nem chantação do pelourinho, nem bandos, houve por onde se possa admitir um curso rigorosamente cronológico dessa fundação. Manaus evoluiu por si mesma até que recebesse sucessivamente as predicações de lugar, de vila e de cidade, quando outro lugares mais longe no tempo e no espaço já haviam passado por essas faces político-administrativas, documentadamente, inclusos autos de implantação do pelourinho, que eram o símbolo maior da justiça do rei. E a verdade é que outras localidades fortificadas nunca passaram de simples redutos, sem desenvolvimento social e cujos fortes acabaram em ruínas”. (MONTEIRO, 1969).

Para o professor e historiador Francisco Jorge dos Santos, o aniversário da cidade tendo como ponto de partida a suposta construção da Fortaleza em 1669 faz parte da invenção de uma tradição histórica. Ele explica que não existe, até agora, documentação comprobatória sobre a data de 1669, e que atos como esse “[…] são solenemente registrados por autoridades do poder público” (SANTOS, 2005). O Forte do Presépio, em Belém, possui documentação sobre sua fundação em 12 de janeiro de 1616. Mesmo com dúvidas pairando, em 1969 a Prefeitura de Manaus comemorou os 300 anos da fundação do Forte de São José da Barra e da cidade de Manaus. Em 1998, por sua vez, a mesma comemorou os 150 anos da Elevação da Vila da Barra à categoria de cidade, com o nome de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro. Qual a solução para tal problema? De acordo com Francisco Jorge,

“Para pôr fim a essa situação desconfortável, alguns poucos preocupados com as festas solenes do evento patrocinadas pelas verbas públicas resolveram "franksteinear" a data do aniversário natalício da cidade, passando a ser contado, a partir de 24 de outubro de 1669. O dia e mês de um evento e o ano de outro. Eis o imbróglio”. (SANTOS, 2005).

Não restam dúvidas de que a Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro existiu, existindo registros escritos e visuais. Para transformá-la em núcleo de origem da cidade, utiliza-se o ano em que se está mais ou menos em consenso como sendo o de sua construção, 1669; e o dia e mês de um ato comprovado por documentação, no caso o da elevação da Vila da Barra à categoria de Cidade, 24 de outubro, criando-se o dia 24 de outubro de 1669 como sendo o da fundação da cidade de Manaus.


FONTES:


AMAZONAS, Relatório da Província do. 30/04/1852.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


AMAZONAS, Lourenço da Silva Araújo. Dicionário Topográfico, Histórico, Descritivo da Comarca do Alto Amazonas. Recife: Typographia Commercial de Meira Henriques, 1852. (Biblioteca Arthur Reis).

BITTENCOURT, Agnello. Fundação de Manaus: Pródromos e Sequências. Manaus: Editora Sérgio Cardoso, 1969.

FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Diário da Viagem Filosófica pela Capitania de São José do Rio Negro com a Informação do Estado Presente. CiFEFil, Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos. Diários, p. 209-350, 22/10/2005.

MENEZES, Aprígio Martins de. História da Província do Amazonas. In: Almanach Administrativo, Histórico, Estatístico e Mercantil da Província do Amazonas para o anno de 1884. Manáos: Imp. na Typ. Do Amazonas de José Carneiro dos Santos, 1884, p. 87-115.

MIRANDA, Bertino de. A Cidade de Manaus: Sua História e seus Motins Políticos. Manaus: Typ. De J. Renaud & Cia, 1908.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fundação de Manaus. 4° Ed. Manaus: Editora Metro Cúbico, 1994.

________________________. A César o que é de César. Jornal do Comércio (Manaus), 02/09/1969.

PINTO, Renan Freitas (Org.). O Diário do Padre Samuel Fritz. Manaus: Editora da Universidade Federal do Amazonas/Faculdade Salesiana Dom Bosco, 2006.

REIS, Arthur Cézar Ferreira. Roteiro das fortificações no Amazonas. In: Revista do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. N° 06. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1942, p. 119-168.

SAMPAIO, Francisco Xavier Ribeiro de. Diário da viagem que em visita, e correição, das povações da Capitania de S. Joze do Rio Negro fez o ouvidor, e intendente geral da mesma, no anno de 1774 e 1775. Lisboa: Typographia da Academia, 1825. (Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin).

SANTOS, Francisco Jorge dos. Imbróglio do aniversário de Manaus. Artigo publicado em CD-ROM no Jornal do Commercio nos dias 22, 23 e 24. 10. 2005, em Manaus.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Biblioteca Nacional, RJ.

Nenhum comentário:

Postar um comentário