quinta-feira, 24 de outubro de 2019

A Manaus que se foi e deixou saudades

O passado, com o passar dos anos, torna-se um lugar cada vez mais distante e menos acessível, sendo sobre ele construídas diferentes representações, em sua maioria saudosistas. São inegáveis as transformações atuais possibilitadas pelos avanços tecnológicos, encurtando caminhos e garantindo longevidade aos seres humanos. Também é inegável que muito se perdeu com essas mudanças. 

Manaus, que hoje supõe-se completar 350 anos, é um exemplo. São três séculos e meio de ganhos e perdas. Talvez mais de perdas do que de ganhos, se fizermos um breve balanço. Perda das relações sociais mais diretas, sadias. Perda do contato com o meio, com a natureza. Sobrevivência, não vivência. Desaparecimento de espaços e pessoas ao longo do tempo. Enfim, um cotidiano mais empobrecido.

Igarapé do Tarumã. Cartão Postal de 1975. FONTE: Acervo Pessoal.

Os primeiros a ruírem foram os espaços que faziam parte do dia a dia dos nossos antepassados. Igarapés e balneários, lugares de descanso e lazer, com águas límpidas e refrescantes. Igarapé do Tarumã, Igarapé da Cachoeira Grande, Igarapé do Espírito Santo, Balneário do Parque 10 de Novembro, Balneário da Ponte da Bolívia. Todos poluídos ou aterrados. As gerações mais recentes deles ficaram privadas.

Cine Guarany, 1971. FONTE: Acervo do Coronel Roberto Mendonça.

Ir aos cinemas era mais fácil. Eles eram pequenos, médios e grandes, sendo encontrados em bairros e na região central. Os mais famosos estavam nessa última parte da cidade. Cine Guarany, Cine Polytheama, Cine Avenida, Cinema Odeon, Cine Chaplin. Nomes que remetem às sessões lotadas nas matinês durante a exibição de filmes de "bang bang", religiosos, de romances, de drama e de terror. Não podendo resistir à degradação do Centro e nem competir com as salas de cinema dos shoppings que começavam a ser inauguradas, foram encerradas ou demolidos. Outra forma de se divertir era frequentando os clubes e boates como o Ideal Club, Atlético Rio Negro Club, Cheik Club, a Spectron Disco e o Caribe Show Dance.

Praça dos Remédios, 2013. FONTE: A Crítica, 27/08/2013.

As praças não eram apenas locais de passagem como ocorre nos dias de hoje. Era possível frequentá-las com a família. Praça da Matriz, Praça Dom Pedro II, Praça da Saudade, Praça dos Remédios, Largo de São Sebastião, Bola da Suframa, faziam jus à função desses espaços: recreação, convivência e lazer.

Demolição do Palácio das Lágrimas, entre a rua Quintino Bocaiuva e a Avenida Joaquim Nabuco. Foto de 1987. FONTE: Jornal do Comércio, 07/08/1987.

Entre as décadas de 1960 e 1990, durante o auge da Zona Franca de Manaus, somando-se a isso uma política ineficiente de proteção do patrimônio histórico, inúmeros prédios históricos e monumentos  erguidos entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX foram demolidos para dar lugar a lojas, depósitos, edifícios, agências bancárias e estacionamentos.

O meleiro Manoel Alves da Silva (1916-1995). FOTO: Marcelo Peres. FONTE: Jornal do Comércio, 14/11/1993.

Personagens marcantes e suas profissões também desapareceram. O menino que vendia pirulitos de caramelo embrulhados em cones de papel, o leiteiro, o catraieiro dos igarapés, o vendedor de garapa e, jamais esquecido, o meleiro, cujo maior representante foi o pernambucano Manoel Alves da Silva (1916-1995), que desde a década de 1960 percorria as ruas da cidade vendendo mel.

A segurança também deixou de existir. Os crimes sempre existiram, mas raramente eram violentos. Preocupava-se mais com o ventanista, o arrombador de janelas; e com o batedor de carteiras. Sentar com parentes e vizinhos na porta de casa por horas, colocando os assuntos em dia, era possível sem maiores preocupações. As brincadeiras  de rua atingiram seu auge antes de desaparecerem por completo. Como consequência, as relações sociais esfriaram, tornando-se cada vez mais indiretas.

Manaus fez aniversário. Não é um momento apenas de comemoração, mas também de reflexão sobre a sociedade que estamos construindo a cada dia, marcada por ganhos e perdas, cada uma nos atingindo de forma específica.


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