sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Os enterros em Manaus antes dos cemitérios públicos

Vista da cidade tomada do bairro dos Remédios, onde ficava o cemitério de mesmo nome. Do lado direito o antigo cruzeiro de madeira que ficava na rua Leovigildo Coelho, à época conhecida como rua da Cruz. Gravura de Humbert. FONTE: NERY, Frederico José de Sant'Anna. Le pays des Amazones. Paris, França: L. Frinzine et Cie, 1885, p. 293.

Antes da construção de cemitérios públicos em Manaus, os enterros, assim como no restante do Brasil nos períodos colonial e imperial, eram realizados no interior das Igrejas Católicas e nos terrenos ao redor destas. Era uma prática secular no país, trazida pelos portugueses, e milenar na Europa e no Oriente.

Essa antiga prática funerária tem origem na Antiguidade Tardia, nos cemitérios localizados fora das cidades, nos subúrbios, onde foram enterrados os primeiros mártires cristãos. Os cemitérios ficavam distantes da área urbana por determinação legal. A Lei das Doze Tábuas, instituída na República Romana, determinava no 1° artigo de sua 10° tábua, que versava sobre direito sacro, a proibição do enterro ou cremação de alguém falecido na cidade (LASSARD, 2014, p. 07). O Código Teodosiano, publicado no Império Romano do Oriente e posteriormente introduzido na parte Ocidental do Império, determinava o mesmo, de forma a preservar a sanctitas (santidade) das casas dos vivos (DUARTE, 2016, p. 75). Igrejas passaram a ser construídas onde os mártires eram sepultados. A população cristã, no desejo de estar em contato com esses mortos, símbolos do Sagrado, do contato com Deus, passou a querer ser enterrada junto a eles no interior desses templos. De acordo com o historiador francês Philippe Ariès, "chegou um momento em que a distinção entre os subúrbios onde se enterrava ad sanctos, porque se estava extra urbem, e a cidade, sempre interdita às sepulturas, desapareceu" (ARIÈS, 1989, p. 26-27).


Praça IX de Novembro. Abandonada, sem uso recreativo, é utilizada como estacionamento. Foto de 27 de abril de 2012. FONTE: Blog do Karinha.

As posturas municipais, as falas e relatórios dos Presidentes da Província do Amazonas, os periódicos e pesquisadores indicam que desde tempos remotos, quando a cidade ainda era o Lugar da Barra, eram utilizados como locais de enterro a parte de trás da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, o largo da antiga Igreja Matriz, na Praça IX de Novembro, e as duas igrejas católicas da cidade, a dos Remédios e a antiga Matriz (destruída em um incêndio em 1850). No 1° capítulo do Código de Posturas Municipais de Manaus de 1848, sobre os cemitérios, ficou estabelecido em seus quatro artigos que as Câmaras Municipais que não construíssem cemitérios públicos com capelas, como disposto na Lei Imperial de 1° de Outubro de 1828, seriam multadas pela Província, e que logo que estes fossem erguidos seriam proibidos os enterros dentro dos templos ou em seus átrios, sob pena de multa ou prisão (SAMPAIO, 2016, p. 18). A lei não surtiu efeito imediato. Os enterros tradicionais continuariam por mais alguns anos.

O geógrafo, historiador e professor Agnello Bittencourt (1876-1975) afirma que, nos primórdios da Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro, entre os séculos XVII e XVIII, enquanto os brancos enterravam seus mortos ao redor da antiga Igreja Matriz, "os índios, para tal fim, usavam a área que ia do Forte à rua Bernardo Ramos", registrando que, quando o Governador Eduardo Gonçalves Ribeiro realizou obras na Praça Dom Pedro II, "grande número de igaçabas (urnas funerárias) foi encontrado, levando à conclusão de que o núcleo principal do cemitério ficava sob a praça e onde hoje se acham o Palácio Rio Branco e o grande edifício ao seu lado.  Centenas de urnas ali estavam, naquele miracangüera dos aborígenes" (BITTENCOURT, 1969, p. 32-33).

O jornal Estrella do Amazonas, em edição de 13 de maio de 1854, define os enterros nesses locais como uma "prática repugnante", e que

"[...] todos os dias observamos enterrarem-se os cadaveres no largo da extincta Matriz (um dos lugares mais frequentados da Cidade e que nunca servio de Cemiterio) e nas immediações da Igreja dos Remedios, onde se tem visto restos mortaes dos nossos semelhantes espalhados sobre a terra, e expostos sem o menor resguardo a voracidade dos cães e outros animais" (ESTRELLA DO AMAZONAS, 13/05/1854, p. 07).


Antigo cemitério indígena da Praça Dom Pedro II. Gravura de E. Riou, 1847. FONTE: MARCOY, Paul. Voyage à travers l' Amérique du Sud, de l' Océan Pacifique à l' Océan Atlantique. Tome deuxième. Paris: Librarie de L. Hachette  et Cie, 1869, p. 420.

Nesse mesmo ano, em agosto, o Presidente da Província do Amazonas, Conselheiro Herculano Ferreira Pena, ao falar sobre o cercamento do terreno da Igreja dos Remédios que funcionaria como cemitério provisório até a abertura do de São José, em 1856, informou em sua fala à Assembleia Legislativa que desde a conclusão desse trabalho "[...] cessou o triste e repugnante espetaculo dos enterramentos sem resguardo algum no Largo da antiga Matriz, e em outras paragens da Cidade igualmente frequentadas" (FALLA, 1854, p. 15).

Eram enterradas ad sanctos (dentro das igrejas) as pessoas mais abastadas da sociedade: grandes comerciantes, militares de alta patente, membros do clero e autoridades públicas. Quanto mais perto do altar mais cara era a sepultura. Nos terrenos ao redor dos templos (apud ecclesiam), em covas rasas, visitadas não só por cães, como mencionado pelo jornal Estrella do Amazonas, mas também por porcos e onças, as pessoas pobres, os escravos, os suicidas e não católicos. Era uma assustadora mistura de lama, carne e ossos.

Os enterros nas igrejas e em seus arredores, em Manaus, tiveram fim em 1854, com o cercamento e benção do Cemitério dos Remédios. A Câmara Municipal da então Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, em 29 de maio daquele ano, determinou o seguinte:

"A Camara Municipal da Cidade da Barra do Rio Negro, e seu Termo &.

Faz publico que d' ora em diante serão enterrados os cadaveres no antigo Cemiterio dos Remedios, que se acha cercado e preparado, e não nos templos, e em lugares improprios como até o presente tem sido feito, sob pena de ser multado o infractor em vinte mil réis, ou oito dias de prizão, como determina o artigo 5°. do Codigo de Posturas em vigor. E para que chegue ao conhecimento de todos será este publicado pelas ruas e praças publicas desta Cidade, e pela imprensa, e afixado no lugar de costume.

Paço da Camara Municipal 29 de Maio de 1854 - O Presidente Rafael d' Assumpção e Souza - Francisco Antonio Toscano de Vasconcelos, Secretario interino" (ESTRELLA DO AMAZONAS, 07/06/1854, p. 03).

Em 20 de maio, Manoel Gomes Corrêa de Miranda, Juiz de Direito da Comarca do Amazonas e Chefe de Polícia da Província, reafirmou a proibição dos enterros em outros lugares que não fossem o Cemitério dos Remédios, sob pena de multa de 20 mil réis ou oito dias de prisão (ESTRELLA DO AMAZONAS, 1854, p. 02-03). Em 1856, durante uma grave epidemia de febre amarela, o Presidente da Província, João Pedro Dias Vieira, determinou o fechamento do Cemitério dos Remédios, entrando em atividade o Cemitério de São José (RELATÓRIO, 1856, p. 05), que funcionaria até 1891.


FONTES:


Estrella do Amazonas, 13/05/1854.

Estrella do Amazonas, 07/06/1854.

Estrella do Amazonas, 24/06/1854.

Falla dirigida á Assembléa Legislativa Provincial do Amazonas, no dia 1° de agosto de 1854, em que se abrio a sua 3° sessão ordinaria, pelo presidente da provincia, o conselheiro Herculano Ferreina Penna.

Relatorio apresentado á Assembléa Legislativa Provincial do Amazonas, pelo excellentissimo senhor doutor João Pedro Dias Vieira, dignissimo presidente desta provincia, no dia 8 de julho de 1856 por occasião da primeira sessão ordinaria da terceira legislatura da mesma Assembléa.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


ARIÈS, Philippe. Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média. Tradução de Pedro Jordão. Lisboa (PT): Teorema, 1989.

BITTENCOURT, Agnello. Fundação de Manaus - Pródromos e Sequências. Manaus: Editora Sérgio Cardoso, 1969.

DUARTE, Jôuldes Matos. Práticas mortuárias no cemitério do Polo Pilar do Bairro do Recife - PE. Dissertação (Mestrado em Arqueologia), UFPE, 2016. LASSARD, Yves. Lex duodecim Tabularum (Bruns). The Roman Law Library, 2014.

SAMPAIO, Patrícia Melo (Org.). Posturas municipais, Amazonas (1838-1967). Manaus: EDUA, 2016.


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