À esquerda, desenho de Moacir Andrade retratando um cascalheiro de Manaus em 1964. À direita, o senhor Justino Horácio, vendedor de cascalho. Foto de 2012.
Vindo
de longe, ainda no começo da rua, já é possível lhe escutar.
Caminhando sob o asfalto ardente da cidade, ele é capaz de causar,
com o tilintar de seu triângulo, a correria das crianças, que vão
em direção aos seus responsáveis para pedir o simbólico valor de
2 reais para comprar um doce simples que já era consumido por seus
pais, avós e bisavós há muito tempo. É o vendedor de cascalho,
cascalheiro se preferirem, personagem popular que marcou inúmeras
gerações. Pretende-se, com esse texto, traçar um panorama das
origens desse vendedor em Manaus, bem como analisar, através de
relatos e fontes escritas, seu cotidiano e relação com a população
da cidade.
Não
é difícil identificar um vendedor de cascalho: Chapéu ou boné
para se proteger do sol, triângulo e baqueta nas mãos. Na costa, um
tubo de flandres, material laminado e estanhado próprio para o
acondicionamento de alimentos, que quando cheio com os cascalhos,
chega a pesar 10 quilos. Os mais antigos usavam uma camisa branca de
tecido leve para melhor enfrentar o calor, calça da mesma forma,
chapéu de palha, chinelos ou andavam descalços. Atualmente podemos
ver vendedores usando camisa regata e bermuda.
Qual
a origem do cascalheiro e desse doce? Esse vendedor é típico da
região Nordeste, onde o doce recebe os nomes de “taboca
(Salvador), […] cavaco chinês (Aracaju, Maceió, Recife, João
Pessoa, Natal), ou ainda cavaquinho, especialmente na capital
pernambucana. […] Em Fortaleza, pode ser chamado também de
chagadinha ou chegadim” (ARAGÃO, 2013, p. 425). O cascalho, como é
chamado em Belém e Manaus, é um doce de origem Ibérica, com
referências na Espanha e em Portugal desde o século XIII, onde é
chamado de barquillo
(Espanha) e barquilho
(Portugal) (ARAGÃO, 2013, p. 426). Popularizado
nos séculos XIX e XX através de atividades ambulantes, seu
vendedor, o Barquillero ou Barquilhero, carregava um tubo de
flandres, a barquillera (as
pranchas onde a massa é assada também recebem esse nome),
produzida geralmente nas cores
vermelha e azul, tendo o nome
do fabricante estampado, que
possuía na tampa uma roleta (ARAGÃO, 2012, p. 86) semelhante à de um cassino, marcada com
diferentes números. Ela era parte de um jogo de sorte: Se
fosse um grupo de amigos, aquele que tirasse o menor número pagaria
todos os doces.
Individualmente, pagava-se
por rodada. Caso a roleta parasse no número zero, todos os doces
adquiridos eram perdidos.
Desenho retratando um barquillero típico de Madrid, na Espanha, no final do século XIX. Notar a roleta na tampa do tubo de flandres, utilizada no jogo com os clientes
A
receita tradicional é uma mistura de farinha de trigo, açúcar,
canela ou mel (atualmente adiciona-se corante), e água, sendo a
massa assada entre duas pranchas de ferro (ARAGÃO, 2013, p. 426). Na
América Latina, em países como México, Uruguai, Venezuela,
Colômbia e Costa Rica vende-se um doce semelhante de nome oblea (ARAGÃO, 2013, p. 439),
biscoito fino de farinha de trigo recheado com doce de leite, leite
condensado e chocolate.
Em
Manaus, a referência mais antiga encontrada sobre os
vendedores de cascalho data de 1912, em um caso de polícia: No dia
15 de setembro de 1912, Francisco de Almeida, “vendedor duma
guloseima, vulgarmente conhecida pelo nome de chegadinho”, se
dirigiu ao bairro dos Tocos (Aparecida) para vender seus produtos. Lá
chegando, na rua Xavier de Mendonça, foi chamado por um homem,
Manoel Felix de Araújo Filho, interessado nos doces. Francisco
Almeida vendia três chegadinhos por um tostão. Manoel não os quis
comprar diretamente, tentando primeiro a sorte: Na tampa do tubo de
flandres, existia uma espécie de roleta com um marcador que apontava
para diversos números. Dependendo do número em que caísse, o
cliente ganhava o resultado em chegadinhos. Manoel Felix girou a
roleta, que parou no número três. Ele, no entanto, não se
conformou, exigindo que lhe fossem entregues quatro unidades. A
partir daí, os dois passaram a discutir, tendo Manoel atingido
Francisco com uma bengalada na cabeça. Em resposta, Francisco
atirou-lhe seu triângulo, utilizado para atrair os fregueses, em sua
cabeça. Manoel, enfurecido, desferiu uma facada no tórax de
Francisco, que morreu no local, às 11:15 da manhã1.
No tribunal, em 1913, julgado por assassinato por motivo torpe, foi
condenado a 30 anos de prisão2.
Esse, até o momento, é o registro mais antigo sobre a atuação
desses vendedores na cidade, podendo, no entanto, ser este um tipo
urbano ainda mais antigo. Interessante notar que, à maneira dos
vendedores Ibéricos, seu tubo de flandres também possuía uma
roleta na tampa, utilizada para o jogo com os clientes.
Foi
de grande valia para a pesquisa a leitura dos memorialistas. Moacir
Andrade registra a atuação dos vendedores de cascalho ao lado de
outros trabalhadores como o vendedor de puxa-puxa, o vendedor de
pirulitos, o vendedor de garapa, o vendedor de sorvete e o vendedor
de bolo, entre as décadas de 1920 e 1930 (ANDRADE, 1985, 2006).
Ainda de acordo com esse autor, por volta de 1935 o preço desses
doces não ultrapassava um tostão cada (ANDRADE, 1985, p. 116-117),
conservando quase o mesmo valor registrado no caso de 1912. O
historiador Antônio José Loureiro (77) se lembra desses vendedores
em sua infância, entre o final dos anos 1940 e início dos anos
1950, no bairro Praça 14 de Janeiro. André Vidal de Araújo se
questionou se, além dos outros tipos populares, alguém se lembrava
do “homem pobre do chegadinho” (ARAÚJO, 2003, p. 392).
Elza
Souza (65), que passou sua infância e adolescência no bairro de São
Raimundo, relata o seguinte:
Tenho
muita saudade daquele cascalho redondo e cor de pele, diferente dos
de hoje, laranjados por corantes. Isso era na década de 1960…
Lembro do gosto que procuro até hoje nos cascalhos, mas parece que o
bom costume morreu. Aqui no Conjunto Tocantins (bairro Chapada) um
jovem passava toda noite tocando o tlem, tlem, que chama o freguês.
Não o tenho visto muito.
O
relato da senhora Elza Souza nos permite perceber as mudanças
ocorridas no cotidiano da cidade, com a diminuição da atuação
desses trabalhadores, alguns dos quais mudaram de ramo ou deixaram
essa atividade, bem como a composição do doce, alterada, como diz a
depoente, com a adição de corantes. Além dessas mudanças,
percebe-se como o som do triângulo fica marcado na memória das
pessoas. Sobre essa associação entre o som do triângulo, a venda
do cascalho e as lembranças de infância, diz Gilberto Freyre:
Interessante
de observar é que certos doces, vendidos por ambulantes, estão
associados, no Nordeste, sons que, como o da campainha de Pavlov, em
cachorros, despertam em meninos e adultos predisposições
específicas de paladar: o som do triângulo dos chamados
cavaquinhos, por exemplo (FREYRE, 2007, p. 49 apud ARAGÃO, 2013, p. 425).
Em Salvador, na Bahia, um vendedor de taboca toca o triângulo para atrair os clientes. Foto de 2013.
O
som do triângulo atrai, faz emergir memórias de outras épocas que
ativam a vontade de comprar o doce. O cascalheiro carrega em sua
figura diferentes aspectos de diferentes culturas. O triângulo que
ele toca é um instrumento musical originário da Idade Média,
também da Península Ibérica, vindo de Portugal, onde era utilizado
em celebrações religiosas, se expandindo posteriormente no restante
da Europa a partir do século XIV, passando a ser empregado em
orquestras no século XVIII. No Brasil, com raízes no Nordeste, a
musicalidade do forró, do xote e do baião lhe deram um aspecto
singular (ARAGÃO, 2012, p. 16 ; ARAGÃO, 2013, p. 432-434). O nome chegadinho, como o doce é chamado em Fortaleza, e
aqui citado no caso de 1912 e por André Vidal de Araújo (1956,
2003), pode ser uma pista de que para o Norte eles possivelmente
vieram nas sucessivas ondas de imigração nordestina, principalmente
vindas do Ceará, verificadas em diferentes momentos de nossa
História.
O
cascalho é produzido em algumas fábricas espalhadas por diferentes
zonas da cidade. Os cascalheiros o compram por 0,50 a unidade,
revendendo-o por 2,00 reais ou na conhecida promoção de três
unidades por 5,00 reais (PRATA, 2012, p. C4-C5). O antigo era empilhado, pego pelo vendedor
com um guardanapo de papel e entregue na mão do cliente. Hoje, no
entanto, já é possível encontrá-lo de forma padronizada em
embalagens de plástico individuais, sendo vendido ao lado da broa e de outros doces.
Justino Horácio de Souza, vendedor de cascalho. Foto de 2012. Justino se veste à maneira dos vendedores antigos, com chapéu de palha, camisa branca de tecido leve, calça e chinelos.
Aguinaldo
Nascimento Figueiredo (59), professor e historiador, lembra de sua
infância e adolescência dos vendedores Zé do Cascalho, já
bastante idoso na época, que atuava na área do Cajual, no Morro da
Liberdade; e do Mané Periquito, que atuava nos bairros de Santa
Luzia e Educandos. Justino Horácio de Souza (64) trabalha como
vendedor ambulante há 33 anos, vendendo cascalho desde 2010. Vindo
de Coari em 1982, criou nove filhos com a venda picolé, leite e
cocada, mas para ele o melhor de todos os produtos é o cascalho, o
qual chega a vender cerca de 150 a 200 unidades nos finais de semana (PRATA, 2012, p. C4-C5).
Hamilton Leão (49), escritor, lembra-se com detalhes do cotidiano de
um vendedor que atuava na zona Sul entre as décadas de 1970 e 1980,
além de outro que perpetuou o trabalho desse profissional:
O
cascalheiro
já com seus 70 anos de idade era uma figura conhecida nas ruas dos
bairros pelos badalos insistentes de seu triângulo
para anunciar a venda de cascalhos. Sua peregrinação diária era
como um sacerdócio e a criançada já o esperava ansiosamente ao
ouvir o singelo tocar do instrumento de trabalho daquela figura
simpática que carregava os esperados amarelos cones doces num tambor
de alumínio. Casas onde tinham bastantes crianças era a certeza da
venda de seu produto, pois ficava insistentemente tocando o triângulo
com seu som inconfundível de telengotengo, telengotengo,
telengotengo, até a criança aparecer e comprar o esperado doce
crocante da tarde. Os pais as vezes ficavam em situação de vergonha
quando os filhos caindo em choro queriam deliciar do diário
cascalho, mas não tinham como pagar. Mas isso não era problema para
o querido cascalheiro, que sempre negociava com os pais e fiava para
ser pago outro dia.
Bons
momentos aqueles vividos na infância, ao deliciar aquele petisco
doce e crocante feito de farinha de trigo e baunilha, que fazia um
gostoso barulhinho ao ser mastigado e derretido na boca. A vontade de
comer mais um ficava, mas era preciso se preparar para outro dia e
com uma moedinha separada, porque,
com certeza, ele
estaria lá com seu insistente telengotengo, telengotengo,
chamando-nos para provar mais uma vez o cascalho amarelo. O tempo se
foi e com ele a lembrança do
antigo cascalheiro,
morador do bairro Mauazinho e hoje falecido, que percorria a ruas dos
bairros da zona Sul para levar alegria com o toque de seu triângulo
anunciando seus bons cascalhos. Hoje, para recordar aqueles momentos,
a figura do saudoso cascalheiro foi continuada pelo Sr. Delson
Carvalho que diariamente, vindo do bairro Jorge Teixeira peregrina a
tarde pelas ruas dos bairros da zona Sul para anunciar o velho e
gostoso cascalho, tocando seus instrumentos de sons audíveis a longa
distância, fazendo lembrar os bons momentos de infância.
Telengotengo, telengontengo, telengotengo.
Além
de outros aspectos vistos em relatos anteriores, Hamilton cita um
bastante importante naquelas décadas: a questão de fiar o doce, de
receber o pagamento no outro dia. Era uma relação de sobrevivência
entre o vendedor e a clientela, baseada na confiança que era
construída diariamente através de diálogos, contatos e pelo desejo
do cascalheiro de vender o seu produto e dos pais de verem os filhos
satisfeitos consumindo o doce. Vale lembrar que um único vendedor
poderia ser conhecido em vários bairros, pois o cascalheiro, em
média, percorre por dia cerca de 10 a 15 quilômetros.
A
caracterização, a receita, os tempos mudaram. A atuação do
cascalheiro, assim como a de outros
personagens urbanos
como o vendedor
de rala-rala,
o pela-porco (cabeleireiro informal) e a rezadeira, vem diminuindo
progressivamente. Essa
é uma consequência da urbanização acelerada, que traz em seu bojo
transformador, raramente planejado, a padronização e a exclusão do
que antes era bem-visto ou recorrente na vida da população. As
mudanças são perceptíveis. O
cascalheiro está
integrado à
memória coletiva, esta
entendida como “o
que fica do passado no vivido dos grupos ou o que os grupos fazem do
passado” (NORA apud LE GOFF, 1996, p. 472). O
registro de sua atuação e relação com o meio em que está
inserido garante a preservação de sua identidade social enquanto
parte de um grupo
reduzido de trabalhadores do meio urbano local.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
ANDRADE,
Moacir. Manaus:
ruas, fachadas e varandas.
Manaus:
Gráfica
de Gracimoema Sampaio, Humberto Calderaro, 1985.
ANDRADE,
Moacir. Acontecimentos de um Amazonas de Ontem. Manaus:
Imprensa Oficial do Amazonas, 2006.
ARAÚJO,
André Vidal de. Introdução à Sociologia da Amazônia. 2°
Ed revista, Manaus: Editora Valer/Governo do Estado do
Amazonas/Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2003. (Coleção
Poranduba).
ARAGÃO, Thaís A. Doce som urbano: O triângulo e as territorializações dos vendedores de chegadinho em Fortaleza. Dissertação (Planejamento Urbano e Regional), PROPUR-UFRGS, 2012.
ARAGÃO,
Thaís A. O
triângulo e o biscoito fino para as massas: reverberações
culturais de uma prática ambulante.
In:
9o Encontro Internacional de Música e Mídia, 2013, São Paulo. O
gosto da música – 9o Encontro Internacional de Música e Mídia.
São Paulo, 2013. p. 424-440.
LE
GOFF, Jacques. História
e Memória.
4° Ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.
PRATA, Lucas. O triângulo anuncia a chegada do 'cascalheiro'. Em Tempo, 25/09/2012, p. C4-C5.
FONTES:
Jornal
do Comércio, 15/09/1912
Jornal
do Comércio, 19/02/1913
ENTREVISTAS:
Antônio
Loureiro, 14/08/2017
Aguinaldo
Nascimento Figueiredo, 14/08/2017
Elza
Souza, 15/08/2017
Hamilton
Leão, 17/08/2017
NOTAS:
1 Jornal
do Comércio, 15/09/1912
2 Jornal
do Comércio, 19/02/1913
CRÉDITO DAS IMAGENS:
ANDRADE, Moacir. Manaus: ruas, fachadas e varandas. Manaus: Gráfica de Gracimoema Sampaio, Humberto Calderaro, 1985.
www.barquillerosdemadrid.es
Jornal Em Tempo, 23/09/2012
blogtina.blogspot.com