terça-feira, 19 de agosto de 2014

Manaus, uma cidade pra ser amada


Por Otoni Moreira de Mesquita


Chegar a Manaus é sempre um impacto. Depois de horas de voo ou dias navegando por densas áreas verdes, recortadas por curvas ocres e negras, depara-se com uma grande clareira que ruge animadamente. Surge clara e nua, banhada pelas águas escuras de um belo rio que lhe embeleza. De noite ou de dia, é sempre um espetáculo, mesmo para aqueles que estão sempre a retornar. Mas parte do encanto se desfaz, ao constatar que a ânsia de modernizar se desfaz de suas belezas naturais. 

Quarenta anos após a implantação da Zona Franca de Manaus não há como duvidar do crescimento manifesto em vários setores da sociedade. A arrojada expansão da cidade é sem dúvida conseqüência de suas atividades econômicas que vem atraindo grande contingente de trabalhadores de outros estados. O crescimento populacional, assim como o nível de desigualdade social pode ser medido pela ampliação exagerada das periferias suburbanas e dos arrojados empreendimentos verticais que se multiplicam, em algumas áreas da cidade. Contudo, a falta de infraestrutura necessária, não somente material, mas, sobretudo, sociocultural, faz deste crescimento uma coisa ameaçadora para todos os segmentos sociais.

Tal como ocorreu no final do século XIX, um novo surto de prosperidade econômica direciona mudanças radicais na cidade, visando atender as novas necessidades de circulação, segurança e garantir as demandas de crescimento, sobretudo dos setores industriais e comerciais. Contudo, populações sem qualquer qualificação sobrevivem com grande dificuldade nas áreas urbanas e sem condições de penetrarem no mercado de trabalho, portanto, sem instrumentos que permitam exercitar pleno direito de cidadania, permanecem excluídos. O desafio é estabelecer políticas públicas capazes de promover a integração, valorização e a inclusão deste contingente no viver social da cidade.

Compreende-se que uma sociedade democrática, deva ser regida por interesses dos mais variados segmentos, não somente pelas políticas econômicas. Certamente, as decisões seriam representativas, contemplando múltipla participação e promovendo diferentes necessidades e interesses. Assim, gerando uma sociedade mais humana, justa e sensível.

Quanto aos aspectos ambientais, históricos e patrimoniais, nota-se que mesmo, parcialmente protegido pela Lei Orgânica do Município, e ensaiadas algumas tentativas no sentido de recuperar, sobretudo, alguns exemplares do patrimônio arquitetônico. No entanto, grande parte das belas edificações do Centro histórico de Manaus se encontra completamente abandonada, outras sem qualquer conservação, e muitas definitivamente agredidas: descaracterizadas ou demolidas. Patrimônio arquitetônico e o natural permanecem em risco, agredidos e degradados em uma velocidade acelerada. Igarapés continuam poluídos, mesmo que parte de suas margens tenham sido embelezadas. O verde da arborização e das praças, com raríssima exceção, foi subtraído ou substituído por magrelas palmeiras importadas de outras regiões. Para o cidadão não há caminhos com sombra, transporte digno ou calçadas contínuas e regulares.

Infelizmente, o patrimônio material e imaterial não está amparado por uma política pública autônoma e contundente, capaz de se confrontar com interesses econômicos. Com amplos poderes de atuação, não somente em sua extensão geográfica, mas, sobretudo, no âmbito cultural. Para tanto, suas ações devem encontrar respaldo nos currículos escolares, cujos conteúdos e metodologias inculquem idéias e valores que fortaleçam as noções de cidadania e pertencimento da cidade.

Grandes empreendimentos na área da construção civil e das obras públicas vêem produzindo construções arrojadas, denotando uma clara situação de prosperidade. No entanto, esta aparência não parece de acordo com as condições enfrentadas pela maior parte da população. Ou seja, a convivência com deficiências de serviços públicos básicos, como a educação, saúde e transporte. Além de uma rotina marcada por outros setores que necessitam ser continuamente acompanhados, ou seja, a melhoria e ampliação do serviço de distribuição de água, iluminação pública, pavimentação de ruas, calçamento para pedestres, ciclovias, instalação de rede de esgotos, engenharia e sociologia do trânsito. Que pensem no homem como usuário da cidade.

A sociedade tem pressa em demasia, violência em excesso e solidariedade e fraternidade de menos. Por este ângulo, a cidade humanizada, embelezada, e tranquila só faz sentido e só será economicamente rentável, para usuários sensibilizados com estes aspectos. Não se deve esperar uma mudança radical no modelo de cidade, se não houver mudanças nas relações sociais, econômicas e, sobretudo, culturais que se processam em seu interior. Novas práticas exigem o apoio de uma população sensibilizada e predisposta a adotá-la. Assim, a aceitação e a eficácia de sua implantação, em geral, exigem um trabalho de médio e longo prazo, vinculado a uma mudança substancial no processo educativo. Não há como preservar a mais bela das cidades, ou as práticas mais tradicionais se não tiverem sentido para os seus usuários. Não se trata de decorar um discurso ou obedecer a leis, mas de uma relação afetiva que envolve sensibilidade e pertencimento.

Não é suficiente recuperar, conservar, limpar e embelezar espaços públicos, nem estabelecer leis de conservação e fiscalizar sua aplicação. É necessário inculcar idéias que sensibilizem aqueles que usufruem desses espaços; planejar estratégias para as gerações futuras. Que as manifestações culturais não sejam transformadas apenas em espetáculos, nem que os espaços públicos sejam embelezados somente para o lazer de alguns. Mesmo que os espaços ganhem novos significados, que se busque preservar as referências e a memória que possam proporcionar um relacionamento afetuoso com a cidade.

Acreditamos que recuperando monumentos e seus entornos, é possível propiciar uma valorização da auto-estima da população, fazendo com que esta se reconheça, não somente como usuária, mas como a protetora que ama, preserva e se orgulha de sua cidade. De fora para dentro, a recuperação destes espaços poderá auxiliar na construção e difusão de uma imagem da cidade mais bela e humana.

Sem dúvida é necessário que as idéias circulem na esfera da administração pública, dos empresários e da população, mas a ideia não é suficiente, se faz necessário animá-las a partir do pronunciamento de nossos representantes, na Câmara, na Prefeitura, na Assembléia, no Senado, sobretudo, no governo do Estado: administradores competentes, políticos sensíveis e sabedor das necessidades e processos, que trabalhem pelo bem comum e sejam capazes de convencer seus pares e mantenham a continuidade dos projetos. Sem dúvida, é um filão político e que poderá trazer grandes dividendos econômicos para a cidade, mas que ainda exigirá algum tempo.






Otoni Moreira Mesquita nasceu em Autazes-AM, em 27 de junho de 1953. É artista plástico e professor da Universidade Federal do Amazonas. Formado em jornalismo (1979 - UFAM) e em Gravura (1983 - Escola de Belas Artes - UFRJ). É mestre em Artes Visuais e História e Crítica da Arte (1992 - UFRJ). De março de 1997 a dezembro de 1998, atuou como coordenador do Patrimônio Histórico, da Secretaria de Cultura e Estudos Amazônicos. É doutorado em História Social pela UFF, concluído em 2005 com o trabalho O Mito de progresso na refundação da cidade de Manaus: 1890/ 1900. Livros publicados: La Belle Vitrine: Manaus entre dois tempos - 1890/1900 (2009) e Manaus: História e arquitetura - 1852/1910 (3 edições. 1997, 1999 e 2006).








CRÉDITO DA IMAGEM: http://turismo.culturamix.com/

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