A Morte. Bruno Latour, Pasteur, une science, un style, un siècle. Paris: Librarie académique Perrin, 1994, p. 30. In: SANTOS, Ricardo Augusto dos. O Carnaval, a peste e a 'espanhola'. Hist. cienc. saúde-Manguinhos vol.13, n° 1, Rio de Janeiro, Jan./Mar. 2006.
Doenças
assolam a humanidade desde tempos imemoriais. Um
sem número de povos sucumbiu a vírus e bactérias. Há
registros da Hanseníase desde a Antiguidade. Na
Idade Média, com
maior incidência na segunda metade do século XIV,
em que eram poucos os conhecimentos e tratamentos médicos, o
Ocidente foi sacudido pela Peste Negra. Mais
de
seis
séculos depois, na década de 1980, em que o homem já tinha
“domado” boa parte das doenças que em outras épocas faziam
enormes estragos, surge o vírus HIV (Human
Immunodeficiency Virus),
causador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, que prestes a
completar 40 anos, já causou a morte de mais de 35 milhões de
pessoas ao redor do mundo 1.
Em
meio a mortandade, surgiram vacinas ou formas de retardar o avanço
dessas moléstias. Homens
e mulheres, cientistas,
mostraram
o melhor da capacidade humana de superar as adversidades.
Essa
capacidade humana, a ciência como um todo, no entanto, sempre foi
contestada. Essa contestação produziu efeitos devastadores ao longo
da história. Temos visto, nos últimos anos, o surgimento de grupos
antivacinas em várias partes do mundo. São
pais e políticos que, não acreditando na eficácia da imunização
ou em possíveis danos que ela pode causar, além
de alegarem motivos religiosos,
se recusam a vacinar seus filhos.
Mais que uma questão de liberdade de escolha, trata-se de bom senso.
No
presente texto serão apresentadas as formas como foi se
desenvolvendo o medo e a resistência às vacinas.
As
primeiras reações e respostas contra as doenças infectocontagiosas
surgiram em fins do século
XVIII, na Europa.
Em 1789, o
médico e naturalista britânico Edward Jenner (1749-1823), ao
observar que a varíola bovina atingia de forma branda as pessoas que
entravam em contato com esses animais, decidiu
inocular substâncias bovinas em humanos. Essas pessoas, além de
ficarem imunes a varíola bovina, também ficavam livres da varíola
humana. Surgia, dessa forma, a primeira vacina e a imunização 2.
Apesar
das epidemias serem uma constante, surgindo
periodicamente há milhares
de anos,
a partir do momento em que uma vacina era desenvolvida, o número de
mortos caia drasticamente. Na Província do Amazonas, por
exemplo, que em
1856 acabara de passar por
duas epidemias, uma de cólera morbo e outra de febre amarela, o
comissário vacinador informava sobre a importância da vacina contra
a varíola (bexiga),
além de esclarecer as
dúvidas de pessoas que não
viam essa forma de prevenção com bons olhos:
“E’
incontestavelmente a vaccina uma das principaes descobertas da
Medicina e Jenner com ella immortalisou-se. Há porém certa
repugnancia da parte do povo rude em acceitar tão benefica offerta,
uns crendo que não preserva e outros que sua inoculação produz um
mal igual ao da própria bexiga; aos primeiros cumpre dizer que a
vaccina ou preserva ou dispoem de tal modo o sangue que rara vez é
grave a bexiga no vaccinado, o que se prova até á evidencia com as
estatisticas de paizes mais adiantados que o nosso em Hygiene
Publica, onde as relações de obitos, depois desta miraculosa
descoberta, apresentão um numero muitissimo inferior de mortes por
bexigas”.
Para
superar o medo da população e tornar a vacinação efetiva, o
comissário pediu ajuda dos párocos da Província, para que estes
guiassem seus fiéis:
“Apello pois para vós,
Snr. es. Parochos, para vós, aquem cumpre em primeiro logar
encaminhar os espiritos de vossos freguezes; peço-vos que empregueis
vossos esforços para os chamardes á vaccina” 3.
Quase meio século mais
tarde, a obrigatoriedade da
vacinação, já na
República, causaria, no Rio
de Janeiro, uma revolta
popular, denominada Revolta
da Vacina 4.
Está
na base da resistência à vacina, à proteção, o medo,
esse sentimento coletivo e
individual que
acompanha a humanidade.
De
acordo com o historiador francês Jean Delumeau, autor do
clássico
História do Medo
no Ocidente,
em tempos de peste as populações expressam seus medos de diferentes
formas, que vão da negação da
doença, o distanciamento dos doentes e mortos à
eliminação dos
que
acreditam serem
os agentes propagadores
das infecções
(animais e grupos marginalizados)5.
Esses
aspectos ficaram bastante evidentes durante a epidemia de Gripe
Espanhola entre 1918 e 1919, em que evitavam-se afetos e, por medo do
contagio, os cadáveres dos que sucumbiam ficavam espalhados pelas
ruas das cidades 6.
Mas
se a doença e a ideia eminente da morte causavam medo, por qual
motivo voltar-se contra medidas que visavam evitar o contagio dessas
mazelas? Seria a “ignorância
do povo rude”,
aspecto inúmeras
vezes recuperado
nos documentos oficiais de época e mesmo pela historiografia? Essa
ideia é bastante simplificadora, impedindo que se veja além
daquelas realidades distintas. Era
mais um confronto de discursos, de saberes, do
que pura ignorância. De um lado, o popular, tínhamos práticas de
cura seculares que incorporavam saberes indígenas, africanos e
cristão católicos. Do outro, de tom mais oficializante, medidas
higienizantes baseadas em valores estrangeiros. A
historiadora Claudia Rodrigues recupera um episódio que exemplifica
esse embate em saberes populares e saberes institucionalizados. Em
1849, durante a epidemia de febre amarela que atingiu o Rio de
Janeiro, a população acreditava
ser ela um flagelo divino que teve origem
“[…]
quando o andor de São Benedito deixara de figurar na procissão das
cinzas que, anualmente, percorria a cidade. Durante dois séculos o
santo devoto dos negros tivera seu lugar na procissão, após o de
santa Isabel de Hungria. Naquele ano, no entanto, segundo
o memorialista Vivaldo Coaracy, “alguns terceiros, mais suscetíveis
às distinções de pigmento cismaram que “branco não carrega
negro nas costas, mesmo que seja santo””, e São Benedito não
encontrou quem lhe levasse o andor, ficando “depositado” na
sacristia. “Não tardaram, naturalmente, logo as beatas a propalar
nas massas crédulas a afirmativa de que tão tremendo castigo era
indubitável efeito da cólera vingativa do santo ofendido” 7.
Enquanto
a população defendida essa ideia, os médicos da Corte apresentavam
teses que estavam em consonância com o que circulava desde o século
XVIII na Europa, principalmente a defesa da teoria miasmática,
segundo a qual as doenças se propagavam através dos ares que eram
expelidos de matérias putrefatas.
Deve-se
salientar que também ocorria a incorporação, pela população, de
discursos médicos que
posteriormente mostravam-se inconsistentes. Ela
também via a vacinação obrigatória como uma forma do Estado
aumentar o controle sobre sua vida. O
historiador Eliézer Cardoso de Oliveira, que estudou a epidemia de
varíola e o medo da vacina em Goiás entre o século XIX e a década
de 1930 do século XX, citando o historiador Sidney Chalhoub, afirma
que
“[…]
o principal argumento dos médicos adversários da vacina era, além
da sua ineficiência em alguns casos, a transmissão de doenças
humanas (como a sífilis) e animais para o vacinado. Esses médicos
eram minoria, mas, para desespero dos administradores públicos,
faziam grandes estragos nas campanhas de vacinação. A população
se apropriava desses argumentos, o que reforçava o medo da vacina”8.
O
atual movimento antivacina teve início na década de 1990 e
com
um “embasamento científico”.
Em 1998 o médico
gastroenterologista inglês Andrew Wakefield publicou no periódico
científico Lancet
um artigo em que defendia que as vacinas contra o sarampo, a
rubéola e
a caxumba causavam
autismo em
crianças.
Descobriu-se, no entanto, que esse estudo foi fraudado. O médico
teve a licença cassada. Apesar de ter suas teses refutadas,
Wakefield, até hoje, as divulga ao grande público 9.
Existem
grupos de pais na Europa e nos Estados Unidos que se recusam a
vacinar seus filhos. Mais
recentemente, um político italiano antivacina, que afirmava que a obrigatoriedade das vacinações era um mecanismo de controle social, foi internado com
catapora 10.
Esse discurso vindo de um líder político mostra a dimensão que o
movimento vem tomando. O
mesmo começa a ocorrer no Brasil.
Em um período marcado pela rápida produção e disseminação de
informações por não especialistas, as ciências são diariamente
contestadas, vide as ondas de revisionismo histórico. O mesmo vem
ocorrendo na área da saúde, onde doenças que haviam sido
erradicadas há décadas começam a surgir novamente e cada vez mais
fortes.
NOTAS:
1
Mensagem do Secretário-Geral da ONU para o Dia Mundial contra a
AIDS 2018. UNAIDS. Disponível em:
https://unaids.org.br/2018/12/mensagem-do-secretario-geral-da-onu-para-o-dia-mundial-contra-a-aids-2018/.
Acesso em 04/04/2019.
2
UJVARI, Stefan Cunha. A História
da Humanidade contada pelos Vírus. Bactérias, Parasitas e Outros
Microrganismos. São Paulo: Contexto, 2012.
3
Estrella do Amazonas,
11/06/1856.
4
Para uma análise crítica dessa revolta, ver SEVCENKO, Nicolau. A
revolta da vacina – mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo:
Brasiliense, 1984.
5
DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade
sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.
6
Mensagem do Governador a Assembleia Legislativa, 1919, p. 25. e
Jornal Imparcial, 18 de novembro de 1918. In: GAMA, Rosineide de
Melo. Dias Mefistofélicos: A Gripe Espanhola nos Jornais de Manaus
(1918-1919). Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2013.
Dissertação de Mestrado em História.
7
COARACY, Vivaldo. Apud RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na
cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de
Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura,
Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural,
Divisão de Editoração, 1997, p. 43.
8
OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. A Epidemia de Varíola e o medo da
vacina em Goiás. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio
de Janeiro, v.20, n.3, jul.-set. 2003, p. 954.
9
Como os movimentos antivacina se tornaram um perigo para o planeta.
Revista Galileu, 26/10/2018.
10
Político antivacinas da extrema direita italiana é internado com
catapora. G1, Globo, 19/03/2019.
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