quinta-feira, 4 de abril de 2019

Sobre vacina, antivacina e medo

A Morte. Bruno Latour, Pasteur, une science, un style, un siècle. Paris: Librarie académique Perrin, 1994, p. 30. In: SANTOS, Ricardo Augusto dos. O Carnaval, a peste e a 'espanhola'. Hist. cienc. saúde-Manguinhos vol.13, n° 1, Rio de Janeiro, Jan./Mar. 2006.

Doenças assolam a humanidade desde tempos imemoriais. Um sem número de povos sucumbiu a vírus e bactérias. Há registros da Hanseníase desde a Antiguidade. Na Idade Média, com maior incidência na segunda metade do século XIV, em que eram poucos os conhecimentos e tratamentos médicos, o Ocidente foi sacudido pela Peste Negra. Mais de seis séculos depois, na década de 1980, em que o homem já tinha “domado” boa parte das doenças que em outras épocas faziam enormes estragos, surge o vírus HIV (Human Immunodeficiency Virus), causador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, que prestes a completar 40 anos, já causou a morte de mais de 35 milhões de pessoas ao redor do mundo 1. Em meio a mortandade, surgiram vacinas ou formas de retardar o avanço dessas moléstias. Homens e mulheres, cientistas, mostraram o melhor da capacidade humana de superar as adversidades.

Essa capacidade humana, a ciência como um todo, no entanto, sempre foi contestada. Essa contestação produziu efeitos devastadores ao longo da história. Temos visto, nos últimos anos, o surgimento de grupos antivacinas em várias partes do mundo. São pais e políticos que, não acreditando na eficácia da imunização ou em possíveis danos que ela pode causar, além de alegarem motivos religiosos, se recusam a vacinar seus filhos. Mais que uma questão de liberdade de escolha, trata-se de bom senso. No presente texto serão apresentadas as formas como foi se desenvolvendo o medo e a resistência às vacinas.

As primeiras reações e respostas contra as doenças infectocontagiosas surgiram em fins do século XVIII, na Europa. Em 1789, o médico e naturalista britânico Edward Jenner (1749-1823), ao observar que a varíola bovina atingia de forma branda as pessoas que entravam em contato com esses animais, decidiu inocular substâncias bovinas em humanos. Essas pessoas, além de ficarem imunes a varíola bovina, também ficavam livres da varíola humana. Surgia, dessa forma, a primeira vacina e a imunização 2.

Apesar das epidemias serem uma constante, surgindo periodicamente há milhares de anos, a partir do momento em que uma vacina era desenvolvida, o número de mortos caia drasticamente. Na Província do Amazonas, por exemplo, que em 1856 acabara de passar por duas epidemias, uma de cólera morbo e outra de febre amarela, o comissário vacinador informava sobre a importância da vacina contra a varíola (bexiga), além de esclarecer as dúvidas de pessoas que não viam essa forma de prevenção com bons olhos:

E’ incontestavelmente a vaccina uma das principaes descobertas da Medicina e Jenner com ella immortalisou-se. Há porém certa repugnancia da parte do povo rude em acceitar tão benefica offerta, uns crendo que não preserva e outros que sua inoculação produz um mal igual ao da própria bexiga; aos primeiros cumpre dizer que a vaccina ou preserva ou dispoem de tal modo o sangue que rara vez é grave a bexiga no vaccinado, o que se prova até á evidencia com as estatisticas de paizes mais adiantados que o nosso em Hygiene Publica, onde as relações de obitos, depois desta miraculosa descoberta, apresentão um numero muitissimo inferior de mortes por bexigas”.

Para superar o medo da população e tornar a vacinação efetiva, o comissário pediu ajuda dos párocos da Província, para que estes guiassem seus fiéis: “Apello pois para vós, Snr. es. Parochos, para vós, aquem cumpre em primeiro logar encaminhar os espiritos de vossos freguezes; peço-vos que empregueis vossos esforços para os chamardes á vaccina3. Quase meio século mais tarde, a obrigatoriedade da vacinação, já na República, causaria, no Rio de Janeiro, uma revolta popular, denominada Revolta da Vacina 4.

Está na base da resistência à vacina, à proteção, o medo, esse sentimento coletivo e individual que acompanha a humanidade. De acordo com o historiador francês Jean Delumeau, autor do clássico História do Medo no Ocidente, em tempos de peste as populações expressam seus medos de diferentes formas, que vão da negação da doença, o distanciamento dos doentes e mortos à eliminação dos que acreditam serem os agentes propagadores das infecções (animais e grupos marginalizados)5. Esses aspectos ficaram bastante evidentes durante a epidemia de Gripe Espanhola entre 1918 e 1919, em que evitavam-se afetos e, por medo do contagio, os cadáveres dos que sucumbiam ficavam espalhados pelas ruas das cidades 6.

Mas se a doença e a ideia eminente da morte causavam medo, por qual motivo voltar-se contra medidas que visavam evitar o contagio dessas mazelas? Seria a “ignorância do povo rude”, aspecto inúmeras vezes recuperado nos documentos oficiais de época e mesmo pela historiografia? Essa ideia é bastante simplificadora, impedindo que se veja além daquelas realidades distintas. Era mais um confronto de discursos, de saberes, do que pura ignorância. De um lado, o popular, tínhamos práticas de cura seculares que incorporavam saberes indígenas, africanos e cristão católicos. Do outro, de tom mais oficializante, medidas higienizantes baseadas em valores estrangeiros. A historiadora Claudia Rodrigues recupera um episódio que exemplifica esse embate em saberes populares e saberes institucionalizados. Em 1849, durante a epidemia de febre amarela que atingiu o Rio de Janeiro, a população acreditava ser ela um flagelo divino que teve origem

[…] quando o andor de São Benedito deixara de figurar na procissão das cinzas que, anualmente, percorria a cidade. Durante dois séculos o santo devoto dos negros tivera seu lugar na procissão, após o de santa Isabel de Hungria. Naquele ano, no entanto, segundo o memorialista Vivaldo Coaracy, “alguns terceiros, mais suscetíveis às distinções de pigmento cismaram que “branco não carrega negro nas costas, mesmo que seja santo””, e São Benedito não encontrou quem lhe levasse o andor, ficando “depositado” na sacristia. “Não tardaram, naturalmente, logo as beatas a propalar nas massas crédulas a afirmativa de que tão tremendo castigo era indubitável efeito da cólera vingativa do santo ofendido” 7.

Enquanto a população defendida essa ideia, os médicos da Corte apresentavam teses que estavam em consonância com o que circulava desde o século XVIII na Europa, principalmente a defesa da teoria miasmática, segundo a qual as doenças se propagavam através dos ares que eram expelidos de matérias putrefatas.

Deve-se salientar que também ocorria a incorporação, pela população, de discursos médicos que posteriormente mostravam-se inconsistentes. Ela também via a vacinação obrigatória como uma forma do Estado aumentar o controle sobre sua vida. O historiador Eliézer Cardoso de Oliveira, que estudou a epidemia de varíola e o medo da vacina em Goiás entre o século XIX e a década de 1930 do século XX, citando o historiador Sidney Chalhoub, afirma que

[…] o principal argumento dos médicos adversários da vacina era, além da sua ineficiência em alguns casos, a transmissão de doenças humanas (como a sífilis) e animais para o vacinado. Esses médicos eram minoria, mas, para desespero dos administradores públicos, faziam grandes estragos nas campanhas de vacinação. A população se apropriava desses argumentos, o que reforçava o medo da vacina8.

O atual movimento antivacina teve início na década de 1990 e com um “embasamento científico”. Em 1998 o médico gastroenterologista inglês Andrew Wakefield publicou no periódico científico Lancet um artigo em que defendia que as vacinas contra o sarampo, a rubéola e a caxumba causavam autismo em crianças. Descobriu-se, no entanto, que esse estudo foi fraudado. O médico teve a licença cassada. Apesar de ter suas teses refutadas, Wakefield, até hoje, as divulga ao grande público 9. Existem grupos de pais na Europa e nos Estados Unidos que se recusam a vacinar seus filhos. Mais recentemente, um político italiano antivacina, que afirmava que a obrigatoriedade das vacinações era um mecanismo de controle social, foi internado com catapora 10. Esse discurso vindo de um líder político mostra a dimensão que o movimento vem tomando. O mesmo começa a ocorrer no Brasil. Em um período marcado pela rápida produção e disseminação de informações por não especialistas, as ciências são diariamente contestadas, vide as ondas de revisionismo histórico. O mesmo vem ocorrendo na área da saúde, onde doenças que haviam sido erradicadas há décadas começam a surgir novamente e cada vez mais fortes.


NOTAS:

1 Mensagem do Secretário-Geral da ONU para o Dia Mundial contra a AIDS 2018. UNAIDS. Disponível em: https://unaids.org.br/2018/12/mensagem-do-secretario-geral-da-onu-para-o-dia-mundial-contra-a-aids-2018/. Acesso em 04/04/2019.

2 UJVARI, Stefan Cunha. A História da Humanidade contada pelos Vírus. Bactérias, Parasitas e Outros Microrganismos. São Paulo: Contexto, 2012.

3 Estrella do Amazonas, 11/06/1856.

4 Para uma análise crítica dessa revolta, ver SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina – mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984.

5 DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

6 Mensagem do Governador a Assembleia Legislativa, 1919, p. 25. e Jornal Imparcial, 18 de novembro de 1918. In: GAMA, Rosineide de Melo. Dias Mefistofélicos: A Gripe Espanhola nos Jornais de Manaus (1918-1919). Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2013. Dissertação de Mestrado em História.

7 COARACY, Vivaldo. Apud RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997, p. 43.

8 OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. A Epidemia de Varíola e o medo da vacina em Goiás. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.20, n.3, jul.-set. 2003, p. 954.

9 Como os movimentos antivacina se tornaram um perigo para o planeta. Revista Galileu, 26/10/2018.

10 Político antivacinas da extrema direita italiana é internado com catapora. G1, Globo, 19/03/2019.

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