Ária Paraense Ramos (1896-1915). Data desconhecida. FONTE: Acervo da família Ramos, cedida à escritora Sayonara Melo, autora de 'Bairro de São Geraldo, uma História em duas conjugações: Passado e Presente (2008)'.
No
dia 17 de fevereiro de 1915, na antiga sede do Ideal Club, então
localizado na esquina da Avenida Eduardo Ribeiro com a rua Henrique
Martins, a jovem violinista Ária Paraense Ramos era vítima de um
disparo acidental, vindo a falecer horas depois na Santa Casa de
Misericórdia por conta de uma hemorragia. Sua morte encerrou de
forma trágica o Carnaval daquele ano, até aquele momento divulgado
pela imprensa como um dos mais alegres já realizados.
Quem
foi Ária Paraense Ramos? Como se deu sua morte? No presente texto
tentarei esboçar brevemente sua trajetória até aquele fatídico 17
de fevereiro de 1915.
VIDA
E MORTE DE UMA ÁRIA
Ária
Paraense Ramos nasceu em 12 de agosto de 1896 no Estado do Pará
(Jornal do Commercio, 18/02/1915 e O Paiz, RJ, 15/03/1915). Era filha
de Carlota de Souza Ramos e do Major Lourenço Ramos. Tinha duas
irmãs, Pátria Amazonense Ramos e Celeste Luso Ramos; e dois irmãos, Alyrio Ramos e Horizonte Ramos. Lourenço Ramos era português, tendo se mudado para o Pará no final do século XIX. Lá casou-se com Carlota. Posteriormente a família veio para Manaus, passando a residir na
Avenida Joaquim Nabuco, no lugar conhecido como Canto do Quintela.
Ária costumava apresentar-se em espetáculos e casas de família com
a irmãs Pátria e Celeste, pianistas e professoras. Ária também
fazia parte da orquestra do Cinema Odeon.
Dizer
que Ária Ramos era uma mulher a frente de seu tempo por tocar um
instrumento musical ou afirmar que esta era feminista é algo que não condiz com aquele contexto. Era algo comum que as jovens da classe média
e da elite aprendessem a tocar algum tipo de instrumento, sobretudo o
violino e o piano. Era uma questão de status social, de demonstração
de poder aquisitivo e refinamento cultural. Pátria e Celeste, por exemplo, como
foi dito, eram musicistas, dando aulas particulares, conforme consta
em anúncio de 1913 publicado no Jornal do Commercio:
“PROFESSORAS
– Celeste e Patria Ramos, diplomadas pelos Conservatorios e Lyceu
de Lisbôa, comunicam aos srs. Chefes de família que, desejem tomar
professoras, que acabam de installar na casa á avenida Joaquim
Nabuco 75 (predio dr. Linhares), aulas de harmonia, piano, violino,
bandolim, francez e portuguez, onde suas exmas.filhas poderão
aprender mediante modica remuneração. Ainda por preços muito
rasoaveis, acceitam alumnas que desejem ser leccionadas na própria
residência” (Jornal do Commercio, 07/07/1913).
Também
afirmar que Ária Ramos foi morta por “incomodar” a sociedade da
época não é correto. Os periódicos e os textos
memorialísticos dão nota de uma moça estimada pelo grande talento,
beleza e elegância que possuía. Em 1914 ficou em segundo lugar em
um concurso promovido pelo jornal A Lanceta sobre qual era a “[…]
senhorita mais chic de Manáos” (A Lanceta, 07/10/1914).
Horas
antes de sua morte, no dia 16 de fevereiro, uma terça-feira, Ária
Ramos desfilava na Avenida Eduardo Ribeiro e adjacências em um carro
alegórico dos Paladinos da Galhofa, bloco musical do qual fazia
parte, acompanhada de sua irmã Celeste. Logo depois, já na parte da
noite, o Ideal Club realizava o seu famoso baile de Carnaval, um dos
mais aguardados pela alta sociedade naquela época.
Muitos
jovens da elite manauara, incluindo Ária e os Paladinos,
fantasiados, divertiam-se nos salões do clube. Em um deles estavam
Mario Travassos de Souza, 16 anos incompletos, Ilydio de Carvalho
Barroco, 25 anos, e outras pessoas. Ilydio Barroco, em uma
brincadeira, tomou as luvas da fantasia de Mario Travassos,
retirando-se daquele salão. Depois que terminou de conversar,
Travassos procurou Ilydio para que devolvesse suas luvas. Já passava
da meia-noite. Ilydio, que conversava com Ária, disse que ele
poderia retirá-las da cartucheira de sua fantasia de cow-boy, onde
as havia guardado. Ao colocar a mão na cartucheira, Travassos
encontrou um revólver, o retirando da mesma. Ao tentar abri-lo para
ver se estava carregado e desconhecendo seu mecanismo, acidentalmente
efetuou um disparo. A bala atingiu Ária Ramos na artéria femoral,
ficando alojada em seu baixo-ventre.
Deve-se
destacar que, conforme matéria de 18/02/1915 do Jornal do Commercio,
Ária Ramos não foi atingida enquanto executava a valsa ‘Subindo
aos Céus’, estando conversando, como foi dito no parágrafo
anterior, com Ilydio Barroco. Ela pediu, sim, mas bem antes do
acidente, que a orquestra presente no Ideal executasse a música, lhe
acompanhando. Textos memorialísticos posteriores, em uma tentativa
de mitificar o acontecimento, distorcendo as fontes contemporâneas
ao fato, insistem na afirmação de que ela tocava essa valsa no
violino quando recebeu o disparo.
O
pânico se instalou no Ideal, com pessoas correndo e gritando. A
polícia fechou o clube, proibindo a saída dos foliões e prendendo
Mario Travassos e Ilydio Barroco. Ária Ramos, com uma grave
hemorragia, foi socorrida pelos médicos Turiano Meira e Xavier de
Albuquerque, presentes na festividade. Este último realizou a
compressão da artéria femoral. Uma ligação foi feita para o
médico Jorge de Moraes, que se dirigindo ao local e vendo que o
sangramento havia cessado, recomendou a remoção de Ária para a
Santa Casa de Misericórdia para que fosse feita a ligação da
artéria atingida.
No
hospital, Ária Ramos foi operada pelos médicos Jorge de Moraes,
Theogenes Beltrão, Xavier de Albuquerque e Turiano Meira. Sua
artéria femoral foi ligada a cerca de 2 centímetros do lugar de
origem e a 6 do projétil. No entanto, o sangue que perdera no Ideal
Clube foi suficiente para que viesse a falecer, às 5 da manhã do
dia 17, durante as intervenções médicas. Tinha 18 anos. Estavam
presentes em seu leito seus pais, membros do bloco Paladinos da
Galhofa e outras pessoas que acompanharam sua remoção para a Santa
Casa. Seu corpo foi levado para a residência da família, onde
grande número de pessoas começou a afluir.
Após
o velório o cortejo fúnebre em direção ao Cemitério de São João
Batista saiu às 16 horas. O caixão, azul-claro, confeccionado pela
casa Neves & Correia e oferecido pelo Major Almir Neves, foi
carregado até o coche fúnebre por amigas da falecida.
Posteriormente o coche foi deixado de lado, sendo o caixão carregado
a mão. O cortejo passou pela rua Municipal, Avenida Eduardo Ribeiro,
rua 10 de Julho, Avenida Joaquim Nabuco, Estrada Dr. Moreira, Praça
de São João e Avenida 13 de Maio. 40 veículos (carros, charretes
etc) acompanharam o cortejo, sendo vistas as seguintes coroas
fúnebres:
“A
Aria, gratidão dos Paladinos da Galhofa; Saudades de Longa; A’
Aria, em testemunho da profunda dor, saudades do Ilydio; Saudades de
sua madrinha; A’ Aria, saudades de Fontenelle & Cia; Saudades
de Cecilia e Diniz; Saudades de Conrado Garcia e família, e
“Affectueux souvenir” (O Paiz, 15/03/1915).
Ao
chegar no Cemitério de São João Batista, a encomendação do
cadáver foi realizada pelo Monsenhor Antero José de Lima.
Discursaram os senhores Generino Maciel, pelos Paladinos da Galhofa,
José Francisco de Araújo Lima e Ildefonso Pereira pelos musicistas
da cidade. O Jornal do Commercio foi representado por Abelardo Araújo
e Serafim Sobrinho. O corpo de Ária Ramos foi sepultado às 18
horas. Todas as despesas do funeral foram pagas pelos membros do
Paladinos da Galhofa. O Cinema Odeon, em sua homenagem, não abriu as
portas.
Mario Travassos (N° 10), então acadêmico de Odontologia na Universidade de Manáos. Foto de 1917. FONTE: A Capital, 27/11/1917.
Como
tratou-se de uma morte acidental, um homicídio culposo, Mario
Travassos (1900-1928) e Ilydio Barroco (1890-1916) foram julgados e
considerados “inocentes”. Descobriu-se que em 1917 Mario
Travassos era aluno do curso de Odontologia da Universidade de Manáos
(A Capital, 27/11/1917). Também atuou como jogador de futebol do
Atlético Rio Negro Clube (Jornal do Commercio, 21/10/1917). Faleceu
em 1928 (Jornal do Commercio, 11/08/1928). Ilydio Barroco, de
naturalidade portuguesa, era funcionário e sócio da firma Adrião
Barroco & Cia e também jogador do Atlético Rio Negro Clube.
Faleceu em 12 de agosto de 1916 aos 26 anos vítima de uma “congestão
cerebral” (Jornal do Commercio, 13/08/1916).
O
MAUSOLÉU
O mausoléu de Ária Ramos nos dias atuais. FOTO: Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa, 15/02/2019.
A
morte de Ária Ramos comoveu a sociedade manauara. De forma a
perpetuar sua memória, uma comissão formada pelos senhores João
Maranhão, Celino Menezes e Abelardo Araújo tratou de angariar,
entre fins de fevereiro e início de março, fundos para a construção
de um mausoléu no Cemitério de São João Batista. O dinheiro foi
arrecadado através da exibição de filmes e espetáculos no Cine
Polytheama.
A
sepultura de Ária Ramos foi declarada perpétua pela Prefeitura,
estando isentos de pagamento de impostos os construtores do monumento
fúnebre. Quando o valor necessário à construção foi arrecadado,
o trabalho foi encomendado à Marmoraria Ítalo-Amazonense, de Cesare Veronesi. A escultura
em tamanho natural de Ária Ramos foi produzida em Carrara, na
Itália, pelo professor Augusto Franzoni, natural de Carrara, membro
da Academia de Belas Artes daquela cidade e da Comissão de
Arqueologia de Roma (Jornal do Commercio, 23/07/1916). Por conta de
dificuldades de navegação entre Gênova, de onde a estátua seria
embarcada, para Lisboa, o mausoléu não foi inaugurado na data
prevista pela comissão, 17 de fevereiro de 1916.
Primeira imagem do mausoléu de Ária Ramos. FONTE: Jornal do Commercio, 23/07/1916.
A
inauguração ocorreu às 9 horas do dia 23 de julho de 1916. Um
grande número de populares compareceu à cerimônia. O Major
Lourenço Ramos retirou o manto que cobria o mausoléu, e Abelardo
Araújo o declarou inaugurado. O professor e médico Adriano Jorge
fez um discurso em memória de Ária Ramos. Uma orquestra dirigida
pelo professor João Donizetti executou a marcha fúnebre composta
por Mozart Donizetti.
O
mausoléu de Ária Ramos foi construído com mármores de Carrara e
Cintra. A jovem foi representada segurando seu violino, trajando as
vestes e a cruz no pescoço que utilizava no dia de sua morte,
apoiada sobre um tronco de árvore, tendo atrás uma grande cruz
sustentada por duas colunas (Jornal do Commercio, 24/07/1916). Seu
túmulo possui dois epitáfios: “Diante de sua graça, que a doce
alegria de viver tornava ainda mais radiosa, em face do genio que no
explendor de sua mocidade alvorescia, a própria morte estacou,
maravilhada, e, em vez de a prostrar com a arma sinistra e brutal que
traz ao hombro a tocou de leve, subtilmente, com um beijo
fulminador...” e “A Aria Ramos nascida a 12 de agosto de 1896 e
fallecida por effeito de um accidente em 17 de fevereiro de 1915.
Commovida homenagem posthuma da sociedade manauense”.
A História de Ária Ramos, como supõe alguns, não é repleta de mistérios. Ao longo de mais de 100 anos de sua morte foram criadas versões fantasiosas, como as que dizem que ela foi morta por um ex-namorado, ou que tinha dois companheiros ao mesmo tempo. Essas versões não se sustentam diante da documentação existente. Tratou-se apenas de uma morte acidental, um trágico acontecimento que deixou lembranças nos que estavam presentes naquele Baile de Carnaval de 1915 e também nos que apenas ouviram boatos, dando asas à imaginação popular.
FONTES:
Jornal
do Commercio, AM, 07/07/1913.
A
Lanceta, 07/10/1914.
Jornal
do Commercio, AM, 18/02/1915.
O
Paiz (RJ), 15/03/1915.
A
Capital, 27/11/1917.
Jornal
do Commercio, 13/08/1916.
Jornal
do Commercio, 23/07/1916.
Jornal
do Commercio, 24/07/1916.
Jornal
do Commercio, 21/10/1917.
Jornal
do Commercio, 11/08/1928.