domingo, 16 de fevereiro de 2020

Ária Paraense Ramos (1896-1915)

Ária Paraense Ramos (1896-1915). Data desconhecida. FONTE: Acervo da família Ramos, cedida à escritora Sayonara Melo, autora de 'Bairro de São Geraldo, uma História em duas conjugações: Passado e Presente (2008)'.

No dia 17 de fevereiro de 1915, na antiga sede do Ideal Club, então localizado na esquina da Avenida Eduardo Ribeiro com a rua Henrique Martins, a jovem violinista Ária Paraense Ramos era vítima de um disparo acidental, vindo a falecer horas depois na Santa Casa de Misericórdia por conta de uma hemorragia. Sua morte encerrou de forma trágica o Carnaval daquele ano, até aquele momento divulgado pela imprensa como um dos mais alegres já realizados.

Quem foi Ária Paraense Ramos? Como se deu sua morte? No presente texto tentarei esboçar brevemente sua trajetória até aquele fatídico 17 de fevereiro de 1915.


VIDA E MORTE DE UMA ÁRIA


Ária Paraense Ramos nasceu em 12 de agosto de 1896 no Estado do Pará (Jornal do Commercio, 18/02/1915 e O Paiz, RJ, 15/03/1915). Era filha de Carlota de Souza Ramos e do Major Lourenço Ramos. Tinha duas irmãs, Pátria Amazonense Ramos e Celeste Luso Ramos; e dois irmãos, Alyrio Ramos e Horizonte Ramos. Lourenço Ramos era português, tendo se mudado para o Pará no final do século XIX. Lá casou-se com Carlota. Posteriormente a família veio para Manaus, passando a residir na Avenida Joaquim Nabuco, no lugar conhecido como Canto do Quintela. Ária costumava apresentar-se em espetáculos e casas de família com a irmãs Pátria e Celeste, pianistas e professoras. Ária também fazia parte da orquestra do Cinema Odeon.

Dizer que Ária Ramos era uma mulher a frente de seu tempo por tocar um instrumento musical ou afirmar que esta era feminista é algo que não condiz com aquele contexto. Era algo comum que as jovens da classe média e da elite aprendessem a tocar algum tipo de instrumento, sobretudo o violino e o piano. Era uma questão de status social, de demonstração de poder aquisitivo e refinamento cultural. Pátria e Celeste, por exemplo, como foi dito, eram musicistas, dando aulas particulares, conforme consta em anúncio de 1913 publicado no Jornal do Commercio:

“PROFESSORAS – Celeste e Patria Ramos, diplomadas pelos Conservatorios e Lyceu de Lisbôa, comunicam aos srs. Chefes de família que, desejem tomar professoras, que acabam de installar na casa á avenida Joaquim Nabuco 75 (predio dr. Linhares), aulas de harmonia, piano, violino, bandolim, francez e portuguez, onde suas exmas.filhas poderão aprender mediante modica remuneração. Ainda por preços muito rasoaveis, acceitam alumnas que desejem ser leccionadas na própria residência” (Jornal do Commercio, 07/07/1913).

Também afirmar que Ária Ramos foi morta por “incomodar” a sociedade da época não é correto. Os periódicos e os textos memorialísticos dão nota de uma moça estimada pelo grande talento, beleza e elegância que possuía. Em 1914 ficou em segundo lugar em um concurso promovido pelo jornal A Lanceta sobre qual era a “[…] senhorita mais chic de Manáos” (A Lanceta, 07/10/1914).

Horas antes de sua morte, no dia 16 de fevereiro, uma terça-feira, Ária Ramos desfilava na Avenida Eduardo Ribeiro e adjacências em um carro alegórico dos Paladinos da Galhofa, bloco musical do qual fazia parte, acompanhada de sua irmã Celeste. Logo depois, já na parte da noite, o Ideal Club realizava o seu famoso baile de Carnaval, um dos mais aguardados pela alta sociedade naquela época.

Muitos jovens da elite manauara, incluindo Ária e os Paladinos, fantasiados, divertiam-se nos salões do clube. Em um deles estavam Mario Travassos de Souza, 16 anos incompletos, Ilydio de Carvalho Barroco, 25 anos, e outras pessoas. Ilydio Barroco, em uma brincadeira, tomou as luvas da fantasia de Mario Travassos, retirando-se daquele salão. Depois que terminou de conversar, Travassos procurou Ilydio para que devolvesse suas luvas. Já passava da meia-noite. Ilydio, que conversava com Ária, disse que ele poderia retirá-las da cartucheira de sua fantasia de cow-boy, onde as havia guardado. Ao colocar a mão na cartucheira, Travassos encontrou um revólver, o retirando da mesma. Ao tentar abri-lo para ver se estava carregado e desconhecendo seu mecanismo, acidentalmente efetuou um disparo. A bala atingiu Ária Ramos na artéria femoral, ficando alojada em seu baixo-ventre.

Deve-se destacar que, conforme matéria de 18/02/1915 do Jornal do Commercio, Ária Ramos não foi atingida enquanto executava a valsa ‘Subindo aos Céus’, estando conversando, como foi dito no parágrafo anterior, com Ilydio Barroco. Ela pediu, sim, mas bem antes do acidente, que a orquestra presente no Ideal executasse a música, lhe acompanhando. Textos memorialísticos posteriores, em uma tentativa de mitificar o acontecimento, distorcendo as fontes contemporâneas ao fato, insistem na afirmação de que ela tocava essa valsa no violino quando recebeu o disparo.

O pânico se instalou no Ideal, com pessoas correndo e gritando. A polícia fechou o clube, proibindo a saída dos foliões e prendendo Mario Travassos e Ilydio Barroco. Ária Ramos, com uma grave hemorragia, foi socorrida pelos médicos Turiano Meira e Xavier de Albuquerque, presentes na festividade. Este último realizou a compressão da artéria femoral. Uma ligação foi feita para o médico Jorge de Moraes, que se dirigindo ao local e vendo que o sangramento havia cessado, recomendou a remoção de Ária para a Santa Casa de Misericórdia para que fosse feita a ligação da artéria atingida.

No hospital, Ária Ramos foi operada pelos médicos Jorge de Moraes, Theogenes Beltrão, Xavier de Albuquerque e Turiano Meira. Sua artéria femoral foi ligada a cerca de 2 centímetros do lugar de origem e a 6 do projétil. No entanto, o sangue que perdera no Ideal Clube foi suficiente para que viesse a falecer, às 5 da manhã do dia 17, durante as intervenções médicas. Tinha 18 anos. Estavam presentes em seu leito seus pais, membros do bloco Paladinos da Galhofa e outras pessoas que acompanharam sua remoção para a Santa Casa. Seu corpo foi levado para a residência da família, onde grande número de pessoas começou a afluir.

Após o velório o cortejo fúnebre em direção ao Cemitério de São João Batista saiu às 16 horas. O caixão, azul-claro, confeccionado pela casa Neves & Correia e oferecido pelo Major Almir Neves, foi carregado até o coche fúnebre por amigas da falecida. Posteriormente o coche foi deixado de lado, sendo o caixão carregado a mão. O cortejo passou pela rua Municipal, Avenida Eduardo Ribeiro, rua 10 de Julho, Avenida Joaquim Nabuco, Estrada Dr. Moreira, Praça de São João e Avenida 13 de Maio. 40 veículos (carros, charretes etc) acompanharam o cortejo, sendo vistas as seguintes coroas fúnebres:

“A Aria, gratidão dos Paladinos da Galhofa; Saudades de Longa; A’ Aria, em testemunho da profunda dor, saudades do Ilydio; Saudades de sua madrinha; A’ Aria, saudades de Fontenelle & Cia; Saudades de Cecilia e Diniz; Saudades de Conrado Garcia e família, e “Affectueux souvenir” (O Paiz, 15/03/1915).

Ao chegar no Cemitério de São João Batista, a encomendação do cadáver foi realizada pelo Monsenhor Antero José de Lima. Discursaram os senhores Generino Maciel, pelos Paladinos da Galhofa, José Francisco de Araújo Lima e Ildefonso Pereira pelos musicistas da cidade. O Jornal do Commercio foi representado por Abelardo Araújo e Serafim Sobrinho. O corpo de Ária Ramos foi sepultado às 18 horas. Todas as despesas do funeral foram pagas pelos membros do Paladinos da Galhofa. O Cinema Odeon, em sua homenagem, não abriu as portas.

Mario Travassos (N° 10), então acadêmico de Odontologia na Universidade de Manáos. Foto de 1917. FONTE: A Capital, 27/11/1917.

Como tratou-se de uma morte acidental, um homicídio culposo, Mario Travassos (1900-1928) e Ilydio Barroco (1890-1916) foram julgados e considerados “inocentes”. Descobriu-se que em 1917 Mario Travassos era aluno do curso de Odontologia da Universidade de Manáos (A Capital, 27/11/1917). Também atuou como jogador de futebol do Atlético Rio Negro Clube (Jornal do Commercio, 21/10/1917). Faleceu em 1928 (Jornal do Commercio, 11/08/1928). Ilydio Barroco, de naturalidade portuguesa, era funcionário e sócio da firma Adrião Barroco & Cia e também jogador do Atlético Rio Negro Clube. Faleceu em 12 de agosto de 1916 aos 26 anos vítima de uma “congestão cerebral” (Jornal do Commercio, 13/08/1916).


O MAUSOLÉU


O mausoléu de Ária Ramos nos dias atuais. FOTO: Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa, 15/02/2019.

A morte de Ária Ramos comoveu a sociedade manauara. De forma a perpetuar sua memória, uma comissão formada pelos senhores João Maranhão, Celino Menezes e Abelardo Araújo tratou de angariar, entre fins de fevereiro e início de março, fundos para a construção de um mausoléu no Cemitério de São João Batista. O dinheiro foi arrecadado através da exibição de filmes e espetáculos no Cine Polytheama.

A sepultura de Ária Ramos foi declarada perpétua pela Prefeitura, estando isentos de pagamento de impostos os construtores do monumento fúnebre. Quando o valor necessário à construção foi arrecadado, o trabalho foi encomendado à Marmoraria Ítalo-Amazonense, de Cesare Veronesi. A escultura em tamanho natural de Ária Ramos foi produzida em Carrara, na Itália, pelo professor Augusto Franzoni, natural de Carrara, membro da Academia de Belas Artes daquela cidade e da Comissão de Arqueologia de Roma (Jornal do Commercio, 23/07/1916). Por conta de dificuldades de navegação entre Gênova, de onde a estátua seria embarcada, para Lisboa, o mausoléu não foi inaugurado na data prevista pela comissão, 17 de fevereiro de 1916.

Primeira imagem do mausoléu de Ária Ramos. FONTE: Jornal do Commercio, 23/07/1916.

A inauguração ocorreu às 9 horas do dia 23 de julho de 1916. Um grande número de populares compareceu à cerimônia. O Major Lourenço Ramos retirou o manto que cobria o mausoléu, e Abelardo Araújo o declarou inaugurado. O professor e médico Adriano Jorge fez um discurso em memória de Ária Ramos. Uma orquestra dirigida pelo professor João Donizetti executou a marcha fúnebre composta por Mozart Donizetti.

O mausoléu de Ária Ramos foi construído com mármores de Carrara e Cintra. A jovem foi representada segurando seu violino, trajando as vestes e a cruz no pescoço que utilizava no dia de sua morte, apoiada sobre um tronco de árvore, tendo atrás uma grande cruz sustentada por duas colunas (Jornal do Commercio, 24/07/1916). Seu túmulo possui dois epitáfios: “Diante de sua graça, que a doce alegria de viver tornava ainda mais radiosa, em face do genio que no explendor de sua mocidade alvorescia, a própria morte estacou, maravilhada, e, em vez de a prostrar com a arma sinistra e brutal que traz ao hombro a tocou de leve, subtilmente, com um beijo fulminador...” e “A Aria Ramos nascida a 12 de agosto de 1896 e fallecida por effeito de um accidente em 17 de fevereiro de 1915. Commovida homenagem posthuma da sociedade manauense”.

A História de Ária Ramos, como supõe alguns, não é repleta de mistérios. Ao longo de mais de 100 anos de sua morte foram criadas versões fantasiosas, como as que dizem que ela foi morta por um ex-namorado, ou que tinha dois companheiros ao mesmo tempo. Essas versões não se sustentam diante da documentação existente. Tratou-se apenas de uma morte acidental, um trágico acontecimento que deixou lembranças nos que estavam presentes naquele Baile de Carnaval de 1915 e também nos que apenas ouviram boatos, dando asas à imaginação popular.


FONTES:

Jornal do Commercio, AM, 07/07/1913.

A Lanceta, 07/10/1914.

Jornal do Commercio, AM, 18/02/1915.

O Paiz (RJ), 15/03/1915.

A Capital, 27/11/1917.

Jornal do Commercio, 13/08/1916.

Jornal do Commercio, 23/07/1916.

Jornal do Commercio, 24/07/1916.

Jornal do Commercio, 21/10/1917.

Jornal do Commercio, 11/08/1928.

Um comentário:

  1. Nossa, eu amava andar pelo cemitério e ficava imaginado a morte das pessoas que tinham os mausoléus que me chama mais atenção... Aguardo ansiosa, por mais pots desses! 😊 Parabéns pela narrativa.

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