sábado, 13 de junho de 2020

Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo, em Manaus

Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo. Foto de Euzivaldo Queiroz. FONTE: A Crítica, 13/06/2016.

Hoje, 13 de junho, para os católicos, é dia de Santo Antônio, Santo Antônio de Pádua ou Santo Antônio de Lisboa. O orago de origem portuguesa, a lembrar as raízes lusitanas das crenças brasileiras, muito mais que santo casamenteiro, atribuição pela qual é mais conhecido, é também protetor das mulheres, dos pobres e padroeiro dos objetos perdidos.

Não pretendo falar sobre o Santo, escrever uma Hagiografia. Me interessa, na realidade, uma construção relacionada ao seu culto: A Capela de Santo Santo Antônio do Pobre Diabo, localizada na rua Borba, bairro Cachoeirinha, zona Sul de Manaus, Tombada como Patrimônio Histórico Estadual. O nome ‘Pobre Diabo’ ao lado de ‘Santo Antônio’ é estranho a alguns, geralmente aos que anseiam um catolicismo brasileiro oficial, romanizado. Analisarei as origens do nome ‘Pobre Diabo’, que confunde-se com a construção da capela.

O historiador e folclorista Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004), em seu Roteiro Histórico de Manaus, afirma que essa nomenclatura tem origem popular. Um comerciante português de nome Antônio José da Costa, estabelecido na rua da Instalação, mandou fazer uma tabuleta com a figura de um pobre vestindo trapos, com os dizeres “Ao Pobre Diabo”, uma referência irreverente ao proprietário, que não vendia fiado pois era uma pessoa “pobre”.

Em outra versão, que consta em uma matéria do Diário Oficial do Estado do Amazonas publicada em 11 de junho de 1927 e recuperada pelo pesquisador Durango Martins Duarte no livro Manaus entre o passado e o presente, Antônio José da Costa era sócio de José Joaquim de Souza Júnior. O português, que tinha uma imagem de Santo Antônio em uma das prateleiras do estabelecimento, todos os dias ao fechá-lo dizia: “Meu Santo Antônio, protegei este pobre Diabo” (1). Desfeita a sociedade em 1878, Antônio abriu, na mesma rua, um estabelecimento de nome ‘O Pobre Diabo’. Encontrei, em edição de 26 de fevereiro de 1888 do jornal A Província do Amazonas, um comércio com o nome ‘Pobre Diabo’, localizado na rua da Instalação (2).

Ainda de acordo com essa publicação, Antônio José da Costa mudou-se da rua da Instalação para o bairro da Cachoeirinha, onde adquiriu, em 1896, um terreno na antiga Praça Floriano Peixoto, local onde foi erguida a capela. Mário Ypiranga Monteiro afirma que coube a mulher de Antônio, Cordolina Rosa de Viterbo, financiar a construção da capela dedicada a Santo Antônio, santo de devoção da família, após uma promessa pela recuperação da saúde do marido. Ao nome de Santo Antônio uniu-se o termo Pobre Diabo, possivelmente por lembrança dos dizeres diários do comerciante ou pelo nome de seu antigo comércio. Ao que tudo indica, a construção data de 1897, como consta em matéria daquele ano publicada no Jornal do Amazonas e transcrita por Mário Ypiranga:

A muito conhecida e laboriosa Sra. D. Cordolina Rosa de Viterbo tendo feito erigir à sua custa no bairro da Cachoeirinha, Praça Floriano Peixoto, desta capital, uma pequena e elegante capela, sob a invocação do glorioso Santo Antônio, estava disposta a mandar benzê-la no dia 15 de agosto deste ano, a fim de mais realçar as festas desta data memorável para o Estado do Pará, de onde é natural a referida senhora, entendendo, porém, a que os nossos irmãos brasileiros estão presentemente expondo a sua vida pela pátria, onde o fanatismo faz milhares de vidas, resolveu adiar a benção da capela para outro dia que será previamente anunciado” (3).

O antropólogo Manoel Nunes Pereira (1893-1985), no texto Igrejas de Manaus, publicado em 1938 na Revista da Semana, do Rio de Janeiro, registrou que a Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo despertava a curiosidade em quem visitava a cidade: “- Olhe só… O Pobre Diabo aqui tem sua igreja! E entrechocam-se os mais espirituosos e irreverentes commentarios” (4).

A Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo em 1938. FONTE: PEREIRA, Manoel Nunes. Igrejas de Manaus. Revista da Semana, RJ, anno XXXIX, N. 7, 22/01/1938, p. 16.

Nunes Pereira adverte os leitores de que apenas o bairro em que estava a capela (Cachoeirinha), é que pertencia ao Diabo, “a igreja, entretanto, pertence ao orago portuguez, miraculosamente casamenteiro”. “Durante os festejos anuais, que se realizam na referida igreja”, escreve Pereira com uma leve dose de humor, “o Pobre Diabo até fica do lado de fóra, com os joelhos na poeira humilde do arraial. Lá dentro officia o padre, acolytos agitam thuribulos, cantôras sacras elevam hymnos, mas ao pobre diabo só é permittido bater no peito, contrictamente” (5).

O nome Capela de Santo Antônio do Pobre Diabo é contemporâneo à construção. Em uma nota publicada no Jornal do Commercio em 29 de maio de 1910, informava-se que o serviço de bondes seria reforçado aos domingos, desde as 15 horas, com mais de um bonde e dois reboques, por ocasião da realização da “Festa de Santo Antônio do Pobre Diabo” (6).

Além do nome pitoresco, a capela também foi palco de acontecimentos um tanto curiosos. Em 1907, Bibiano de Oliveira Costa, praticante da Marinha Mercante, tinha encontros amorosos com a jovem Maria da Costa Carneiro, de 16 anos, no interior desse templo. A mãe de Maria, Felizarda da Costa Carneiro, descobrindo o relacionamento e sentindo-se ofendida por ele ocorrer dentro de um lugar sagrado, denunciou Bibiano ao Delegado do 2° Distrito, Elviro Dantas, que o prendeu no dia 11 de abril de 1907. Preso, Bibiano disse que pediria Maria da Costa Carneiro em casamento. O Delegado, então, determinou que a união fosse realizada no dia seguinte (7). Santo Antônio, indiretamente, concretizou um enlace matrimonial, ainda que em circunstâncias pouco formais.

O nome Santo Antônio do Pobre Diabo é uma característica do Catolicismo popular brasileiro, que foi se desenvolvendo à margem do poder institucionalizado, maleável e influenciado por elementos do meio em que se estabeleceu. Ao nome do santo lusitano uniu-se o de ‘Pobre Diabo’, surgindo daí algo novo, único em nossa cidade, estranho aos mais conservadores mas acessível aos grupos populares e por eles já incorporado.

Salve Grande Antônio. Salve Santo Antônio do Pobre Diabo...


NOTAS:

(1) DUARTE, Durango Martins. Manaus entre o passado e o presente. Manaus: Ed. Mídia Ponto Comm, 2009, p. 140.

(2) Agências. A Província do Amazonas, 26/02/1888, p. 01.

(3) O jornal se refere à Guerra de Canudos. MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1998 Apud MONTEIRO, Mário Ypiranga. Capela do Pobre Diabo.  Manaus: Governo do Estado do Amazonas/Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto, 3° Edição, nov/1999 (Série Memória 1).

(4) PEREIRA, Manoel Nunes. Igrejas de Manaus. Revista da Semana, RJ, anno XXXIX, N. 7., 22/01/1938, p. 16.

(5) Ibid, p. 16.

(6) Festa de Santo Antônio do Pobre Diabo. Serviço de Bondes. Jornal do Commercio, 29/05/1910, p. 02.

(7) Cupido e… polícia. Travessuras e casório. Jornal do Commercio, 12/04/1907, p. 01.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DUARTE, Durango Martins. Manaus entre o passado e o presente. Manaus: Ed. Mídia Ponto Comm, 2009.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Capela do Pobre Diabo.  Manaus: Governo do Estado do Amazonas/Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto, 3° Edição, nov/1999 (Série Memória 1).

PEREIRA, Manoel Nunes. Igrejas de Manaus. Revista da Semana, RJ, anno XXXIX, N. 7., 22/01/1938, p. 16.

sábado, 6 de junho de 2020

Antonio José Souto Loureiro

Antônio José Souto Loureiro e alguns de seus trabalhos.

Hoje, dia 06 de junho, o médico e historiador Antônio José Souto Loureiro comemora 80 anos. É um amigo muito estimado, sendo sete de anos de uma boa amizade, que teve início quando nos conhecemos nos sebos da Feira da Avenida Eduardo Ribeiro e nos eventos do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), do qual é membro.

Para quem não o conhece, Antônio José Souto Loureiro nasceu em Manaus no dia 06 de junho de 1940, realizando seus estudos no Rio de Janeiro, onde graduou-se em Medicina na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, especializando-se em Reumatologia. É membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), da Maçonaria do Amazonas, da Academia Amazonense de Letras (AAL) e da Academia Amazonense de Medicina.

Antônio Loureiro é dos intelectuais mais humildes que já conheci, sempre aberto a boas conversas. Certa vez, durante o lançamento de um livro no IGHA, nos encontramos e começamos a conversar. Me perguntou se concordava com a perspectiva histórica da autora do trabalho, de base marxista, da tão citada e já esgotada luta de classes. Disse que sim, em partes, e rebati a pergunta, recebendo a seguinte resposta: - Não concordo!. Vejo a História como uma eterna luta entre o bem e o mal!.  Continuando, perguntei: Como anda a sua relação com a academia (universidade)? Me disse: - Ninguém me lê, nem me convida para palestrar!. Lhe informei que sim, o liam e citavam em trabalhos, e que quase fiquei sem um livro seu quando o emprestei para um acadêmico finalizar o TCC. Rimos bastante e concordamos que, apesar das críticas de ambos os lados, não se faz História sem o mínimo de diálogo entre as correntes, das mais conservadoras às mais inovadoras.

Desses 80 anos bem vividos, já são quase 50 dedicados à pesquisa histórica, da qual surgiram trabalhos hoje considerados clássicos de nossa historiografia, essenciais aos historiadores e entusiastas que pretendem conhecer a constituição de nosso Estado e também expandir suas possibilidades de pesquisa.

São de sua autoria cerca de 16 obras, às quais poderia dedicar inúmeros artigos fazendo análises minuciosas. No entanto, destaco três que considero essenciais, devendo ser lidas, relidas, resenhadas e apreciadas: A Grande Crise (1907-1916) (1986), O Amazonas na Época Imperial (1989) e Tempos de Esperança - Amazonas (1917-1945) (1994).

Com um grande arsenal de dados estatísticos, oriundos principalmente do arquivo da Associação Comercial do Amazonas (ACA), e bibliográficos, analisa da derrocada da economia gomífera em A Grande Crise (1907-1916) (1986). O Brasil, para o autor, sentiu os efeitos da crise, pois dependia da Amazônia para a obtenção das libras esterlinas, necessárias para o pagamento da dívida externa, para equilibrar o preço do café e urbanizar a capital federal; mas continuou alheio à região quando ela mais precisou. A União tardiamente tomou medidas para sanar a crise, medidas essas que se mostraram ineficazes, bem como os empresários e outras camadas da sociedade extrativista, que no frenesi da Belle Époque descapitalizaram a região e não fizeram planos a longo prazo, com algumas raras exceções.

Em O Amazonas na Época Imperial (1989), Loureiro analisa o período que vai de 1852 até o advento da República. A obra foi escrita quando o autor se deu conta da exiguidade de trabalhos mais detalhados e abrangentes sobre o Amazonas nessa época. Como fontes, utilizou relatórios, falas e exposições dos Presidentes e Vice-Presidentes desse período, de forma que a narrativa é constituída da visão desses homens que serviram ao Império no Amazonas. O conteúdo, denso, de mais de 300 páginas, é rico em dados estatísticos das atividades comerciais e administrativas do Amazonas (instrução pública, obras públicas, missões religiosas, aldeamentos indígenas etc), o que torna a obra de fundamental importância para os estudos sobre o Segundo Reinado na região Norte que lhe sucederam.

Tempos de Esperança - Amazonas (1917-1945) foi um trabalho pioneiro em sua época, pois surgiu para preencher a lacuna historiográfica existente sobre o período posterior ao boom da economia gomífera e sua crise. No período analisado por Loureiro, o Estado do Amazonas, combalido economicamente, teve breves surtos de reavivamento econômico motivados por fatores externos como a Segunda Guerra Mundial. Foram tempos difíceis, sem dúvidas. Gripe Espanhola em 1918, Revolução Tenentista em 1924, embates entre as oligarquias tradicionais, uma dívida crescente e uma população ainda mais empobrecida. Apesar dos pesares, o Estado continuou produzindo, como nos mostra Loureiro, e não apenas borracha: castanha, couros e peles, pau rosa, madeiras, pirarucu, fibras vegetais, guaraná e outras matérias primas. O ápice da esperança se deu com os Acordos de Washington durante a Segunda Guerra, entre 1942 e 1945.

Parabéns e vida longa a Antônio José Souto Loureiro. Que continue na sua eterna luta histórica entre o bem e o mal, sendo ele fiel defensor do primeiro.