quarta-feira, 28 de julho de 2021

Monumentos: da construção à destruição

Via Ápia, em Roma. FONTE: Alamy.com

Nos últimos dias, ao lado das manchetes sobre as Olimpíadas de Tokyo, um fato ocorrido no Brasil chamou a atenção: um incêndio provocado contra a estátua do bandeirante Borba Gato (1649-1718), localizada no distrito de Santo Amaro, em São Paulo. A obra, de autoria do escultor Júlio Guerra e com mais de 10 metros, foi inaugurada em 1963, durante as comemorações do IV Centenário de Santo Amaro. O que motiva a construção de monumentos? Não precisa ser um especialista para saber que monumentos, desde as mais simples placas às esculturas monumentais, são construídos para celebrar e eternizar determinadas memórias e personagens. O historiador Jacques Le Goff explica o sentido do monumento através da análise filológica:

"A palavra latina monuentum remete para a raiz indo-européia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O verbo monere significa 'fazer recordar', de onde 'avisar', 'iluminar', 'instruir'. O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação, por exemplo, os atos escritos. Quando Cícero fala dos monumenta hujus ordinis [Philippicae, XIV, 41], designa os atos comemorativos, quer dizer, os decretos do senado. Mas desde a Antiguidade romana o monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: 1) uma obra comemorativa de arquitetura ou de escultura: arco de triunfo, coluna, troféu, pórtico, etc; 2) um monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente valorizada: a morte" (LE GOFF, 1990, p. 535-536).

Em síntese, monumentos são erguidos desde que os grupos humanos organizaram-se e passaram a querer deixar suas marcas na sociedade, evocando eventos naturais, grandes feitos, guerras, heróis e líderes políticos. Foi por iniciativa do Estado, aliás, com apoio das elites, que muitos monumentos surgiram, pois a ele interessava, e ainda interessa, a preservação e o apagamento de certas memórias.

Manuel de Borba Gato (1649-1718) foi um bandeirante paulista dos séculos XVII e XVIII. Os bandeirantes foram responsáveis pela expansão do território da América Portuguesa, desbravando novas terras, ouro e pedras preciosas e fundando cidades. Além de pedras preciosas, os bandeirantes também procuravam mão de obra, capturando indígenas e negros em quilombos. Borba Gato também participou da Guerra dos Emboabas (1707-1709), em que enfrentaram-se os bandeirantes, que primeiro descobriram metais preciosos no interior e queriam a exclusividade na exploração, e os emboabas, portugueses e brasileiros de outras regiões, que também procuravam por metais preciosos. Vivia-se um contexto bélico, de carnificina e escravidão.

Passados quase três séculos, a historiografia brasileira tradicional construiu um mito em torno da figura dos bandeirantes, destacando suas qualidades de desbravadores e conquistadores. Tomemos como exemplo a síntese de benefícios feita pelo professor Gaspar de Freitas no livro didático Pontos de Geografia e História do Brasil, publicado na década de 1930 para ser utilizado nos ensinos primário, secundário e comercial: "As entradas e bandeiras prestaram muitos serviços ao Brasil; descobriram minas de ouro, diamantes e outras pedras preciosas; aumentaram o território brasileiro muito para Oeste; iniciaram o povoamento dos sertões; abriram caminhos; exploraram os grandes rios; praticaram a navegação; etc" (FREITAS, 1939, p. 148). Gaspar de Freitas cita Borba Gato como um dos principais bandeirantes, ao lado de Fernão Dias Pais Leme, que exploraram Minas Gerais (FREITAS, 1939, p. 147).

Se os bandeirantes foram importantes para o país, o foram ainda mais para o Estado de São Paulo, onde a partir deles construiu-se uma identidade regional, como registra o escritor Euclides da Cunha, de forma romântica, no início do século XX: "O paulista – e a significação histórica deste nome abrange os filhos do Rio de Janeiro, Minas, S. Paulo e regiões do Sul – erigiu-se como um tipo autônomo, aventuroso, rebelde, libérrimo, com a feição perfeita de um dominador da terra, emancipando-se, insurreto, da tutela longínqua, e afastando-se do mar e dos galeões da metrópole, investindo com os sertões desconhecidos, delineando a epopéia inédita das bandeiras" (CUNHA, 1984 Apud SOUZA, 2007,  p. 156).

Pouco importava, nesse período, se os bandeirantes escravizaram e dizimaram indígenas e negros. Isso se torna um mero detalhe em meio a inúmeros feitos heroicos que trouxeram inúmeros benefícios para o país. Era esse o discurso laudatório na época em que o monumento a Borba Gato foi construído. Fabricavam-se heróis que estabeleceram, no passado, as bases do nacionalismo e, nos casos dos bandeirantes, do regionalismo paulista.

Nas décadas seguintes, sobretudo as de 1970 e 1980, a historiografia brasileira passou por profundas transformações. Certas análises começaram a ser questionadas e os processos históricos passaram a ser estudados de forma crítica. O discurso laudatória deu lugar às relações dialéticas, aos embates entre vencedores e vencidos, sendo valorizado, agora, o protagonismo destes últimos. Indígenas, escravos, mulheres e pobres ganharam voz. As ações dos bandeirantes passaram a ser vistas como violentas e sanguinárias, sendo responsáveis pela morte de milhares de pessoas. Outros estudos, no entanto, passaram a destacar os pontos positivos e negativos das bandeiras. Assim o fizeram os historiadores Cláudio Vicentino e Gianpaolo Dorigo:

"As bandeiras contribuíram significativamente para ocupar e povoar o interior do Brasil, fundando povoados, criando vilas e dando início à exploração mineradora. Por outro lado, dizimaram muitos grupos indígenas e submeteram-nos à escravidão. Sua atuação, contudo, foi decisiva na consolidação da presença portuguesa além do tratado de Tordesilhas, ampliando consideravelmente as fronteiras da colônia" (VICENTINO E DORIGO, 1997, p. 128).

Nos últimos anos as homenagens a personagens da História do Brasil ligados à escravidão indígena e africana e ao Regime Militar passaram a ser questionadas e criticadas. Esses questionamentos e críticas, que se transformam em ações concretas como ataques, ganharam impulso após a derrubada, por grupos que se intitulam revolucionários, de inúmeros monumentos históricos na Europa e nos Estados Unidos. O ataque à estátua de Borba Gato é de autoria do Coletivo 'Revolução Periférica'.

Sem dúvida alguma, nos dias de hoje, seria inaceitável uma homenagem à Borba Gato. Deve-se levar em conta, no entanto, que sua estátua foi erguida há quase 60 anos. Vivia-se outro contexto, como foi mostrado na pequena discussão historiográfica acima. Isso justifica alguma coisa? Claro que não, pois se assim fosse, teríamos que contextualizar e tentar ver com "bons olhos" períodos obscuros de nossa História, como Nazismo, o Fascismo e o Apartheid. Mas antes de sairmos derrubando e incendiando estátuas que, em sua maioria, foram erguidas há pelo menos 50 anos, devemos nos questionar sobre o seguinte: Quais as relações da população com essas obras? Qual o impacto delas em suas vidas? Elas sabem quem são os homenageados? Duas gerações de paulistas conviveram com a estátua de Borba Gato, transformando-a em símbolo desse distrito de São Paulo. A Mestre em Ciências Humanas Márcia Maria da Graça Costa e a historiadora Alzira Lobo de Arruda Campos, após analisarem a estátua de Borba Gato como um elemento de memória e identidade de Santo Amaro, concluíram que

"Trata-se, portanto, de um problema ideológico que deforma a realidade e manipula a fim de passar mensagens aprazíveis à própria identidade. Assim, a imagem do bandeirante foi falseada fazendo com que ele, de um predador de homens, se transformasse em um herói destemido ao qual se deveria a extensão das fronteiras do Brasil, além do hipotético meridiano de Tordesilhas" (COSTA E CAMPOS, 2019, p. 50).

Se fizéssemos, em Manaus, um questionário perguntando das pessoas quem é o homenageado com a estátua da Praça da Saudade, possivelmente poucos saberiam responder. Mas se perguntássemos se seriam a favor de sua demolição, a resposta, sem dúvida, seria não. Por mais que as pessoas não conheçam a História por trás do monumento, elas criam, através dos anos, uma relação com ele, relação essa de memória afetiva, pois aquele espaço marcou a vida das pessoas de diferentes formas.

A população vai continuar sendo expectadora das mudanças ou será convidada a participar delas?


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


COSTA, M. M. G,; CAMPOS, Alzira L. de A. A Estátua de Borba Gato: Memória e Identidade de Santo Amaro. Veredas - Revista Interdisciplinar de Ciências Humanas, v. 2, p. 34-54, 2019.

FREITAS, Gaspar de. Pontos de Geografia e História do Brasil. 150° ed. Rio de Janeiro: Gráfica Sauer, 1939.

LE GOFF, Jacques. História e memória. Tradução de Bernardo Leitão [et al.]. Campinas: Editora da UNICAMP, 1990.

SOUZA, Ricardo Luiz de. A Mitologia Bandeirante: Construção e Sentidos. História Social, Campinas, n° 13, p. 151-171, 2007.

VICENTINO, Cláudio; DORIGO, Gianpaolo. História do Brasil. São Paulo: Scipione, 1997.


quarta-feira, 7 de julho de 2021

Cemitério de São João Batista: Túmulo do Barão de Sant'Anna Nery

 

Túmulo do Barão de Sant'Anna Nery. FOTO: Fábio Augusto, 2019.

O túmulo de Frederico José de Sant'Anna Nery, o Barão de Sant'Anna Nery (1848-1901), está localizado no quadra 02 do Cemitério de São João Batista, também conhecida como Quadra da Santa Casa de Misericórdia, em Manaus.

Frederico José de Sant' Anna Nery, nascido em Belém, então capital da Província do Grão-Pará, em 28 de maio de 1848, foi um dos maiores propagandistas do Império Brasileiro - principalmente da região Amazônica - na Europa. Vivendo seus primeiros anos entre Belém e Manaus, viaja para a França ainda na adolescência, posteriormente estabelecendo nesse país, onde fez os curso de Letras e Ciências. Graduou-se em Direito pela Faculdade de Roma, na Itália. Membro da poderosa família Nery, era filho do Major Silvério Nery e Maria Antony Nery. Foram seus irmãos Silvério José Nery, Constantino Nery e Márcio Nery.

De acordo com o professor e historiador Agnello Bittencourt, em seu Dicionário Amazonense de Biografias (Rio de Janeiro, Editora Conquista, 1973), ele recebeu o título de Barão do Papa Leão XIII (1810-1903) por sua defesa da fé Católica.

Intelectual de renome, foi jornalista, correspondente e membro de várias instituições científicas europeias e brasileiras, preocupado sempre com a divulgação das riquezas, da cultura e dos potenciais do Império. São de sua autoria os livros 'Le pays des Amazones' (1885), 'Folklore Brésilien' (1889), 'Le Bresil en 1889' (1889), 'L' émigration et immigration pendant les dernieres annes' (1892) e "Aux États Unis du Brésil' (1898).

Faleceu em Paris em 03 de junho de 1901. Seus restos mortais foram transladados para Manaus no vapor italiano Colombo, sendo sepultados no Cemitério de São João Batista em 11 de outubro (MENSAGEM DO GOVERNO DO ESTADO DO AMAZONAS, Estatística Mortuária, 2° semestre do anno de 1901, 10/07/1902) . Seu túmulo, bastante simples, uma campa tumular com uma cruz em alto relevo, encontra-se bastante deteriorado, sendo impossível ler seu epitáfio.

Frederico José de Sant'Anna Nery (1848-1901). FONTE: Le pays des Amazones (1885)/Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.



segunda-feira, 5 de julho de 2021

Os Seringais

Seringal Bom Destino, no Acre. FONTE: Blog Alma Acreana.

Os seringais tiveram a mesma importância vital para a região Amazônica que os canaviais tiveram para o Nordeste e os cafezais para o Sudeste. Foram o sustentáculo da economia regional por décadas a fio. Nos jornais de época encontramos anúncios de venda e arrendamento de seringais e de contratação de trabalhadores para exercerem a penosa atividade da extração do látex e sua transformação em borracha. Os comerciantes Ramos, Couto, Barata & Cia, liquidando seus negócios em 1888, colocaram a venda um seringal no rio Inauini, “contando mais de oitocentas estradas de seringueiras, abertas e terreno explorado para mais de duzentas, tendo duas casas de sobrado cobertas de telha de barro, dois barracões cobertos de zinco e tres barracões de palha, alguma creação de gado vaccum, e muita plantação de arvores frutiferas” (A PROVÍNCIA DO AMAZONAS, 06/04/1888, p. 03). Em 1900, no início da expansão das atividades, a casa comercial de Pereira Júnior & Cia, localizada na rua dos Remédios, em Manaus, contratava cerca de 100 homens para trabalhar como seringueiros no rio Purus (AMAZONAS COMMERCIAL, 26/05/1900, p. 03). A importância dos seringais também pode ser verificada na imprensa humorística, como em uma “denúncia” divulgada pelo jornal A Lanceta, de Manaus: “Que um certo ex-empregado de uma importante casa commercial, está tentando adquirir o coração de uma pequena, só porque o papae, tem seringal e é baludo” (A LANCETA, 21/09/1912, p. 03).

Mas como surgiam os seringais? De acordo com o historiador Leandro Tocantins, eles eram fruto da iniciativa privada, empreendimentos particulares de ocupação do solo. “Se a zona oferecia quantidade de árvores produtoras de leite, aí lançavam os fundamentos da posse – a barraca, evolução do tapiri do índio” (TOCANTINS, 1968, p. 250). Existia um código entre os aventureiros, o de se “respeitar” os seringais já ocupados. Isso nem sempre acontecia. Verificada a disponibilidade do terreno, prosseguia-se ao estabelecimento dos domínios com a construção do barracão, a residência do patrão, o seringalista. Essa construção, aponta Tocantins, teve a mesma função que a casa grande do Nordeste açucareiro, centralizando a vida econômica e social da unidade produtiva (TOCANTINS, 1968, p. 251). Leandro Tocantins afirma a ocupação era feita à margem do Estado, mas em periódicos e relatórios encontramos pedidos, demarcações e registros de posse conferidos pelo poder público.

Deve-se destacar a figura do patrão, o seringalista, hora vivendo no barracão, hora transitando pelas cidades de Manaus e Belém a negociar com as casas aviadoras. Samuel Benchimol afirma que muitos seringalistas eram nordestinos que começaram suas vidas como seringueiros brabos, sem experiência, e aos poucos foram ascendendo socialmente, assumindo novos cargos no seringal até conseguir formar o seu próprio. Sobre ser conhecido como coronel, Benchimol explica que alguns de fato tinham essa patente conferida pela Guarda Nacional, enquanto outros a compravam ou, dado o prestígio econômico, eram nomeados coronel sem ter esse título (BENCHIMOL, 1999, p. 143).

A organização interna dos seringais, conforme estudos do cientista social Carlos Corrêa Teixeira, era dividida da seguinte forma: Pessoal burocrático, formado pelos gerentes e encarregados dos depósitos; Pessoal de campo, que eram os comboieiros e os fiscais; Os empregados de campo e os diaristas; e, por último, o pessoal da mata, que eram os seringueiros (TEIXEIRA, 2009, p. 49-55). Os gerentes e encarregados cuidavam da gerência, garantindo o bom funcionamento do local. Os comboieiros cuidavam do transporte de mercadorias nos seringais. Os fiscais garantiam o bom desempenho do trabalho dos seringueiros, exercendo controle sobre os homens e garantindo que fossem, pela vigilância, produtivos (TEIXEIRA, 2009). Os empregados de campo trabalhavam na limpeza das estradas de seringueiras, na conservação das mercadorias e organização dos depósitos. Os diaristas prestavam serviços ao barracão, estando nessa categoria os caçadores e pescadores que proviam o local de mantimentos (TEIXEIRA, 2009). Os seringueiros eram a força de trabalho, os elementos que, junto das seringueiras, davam sentido aos seringais. O historiador Francisco Jorge dos Santos cita ainda a presença dos guarda-livros, que cuidavam da contabilidade; dos caixeiros, que cuidavam dos armazéns e barracões; dos mateiros, especialistas na identificação das árvores ideais para extração do látex; os toqueiros, que preparavam as estradas; e dos regatões, comerciantes fluviais. (SANTOS, 2007, p. 163-164). Esses últimos eram inimigos dos seringalistas, pois como registrou o geógrafo Jacob Binsztok, eles quebravam “[…] o monopólio exercido pelo “barracão”, negociando com os caboclos os produtos extrativos vegetais, desviados habilmente dos “patrões”” (BINSZTOK, 1965, p. 910).

Em síntese feita pelo historiador Francisco Jorge dos Santos, a geografia do seringal era constituída pelas estradas, os tapiris e os barracões. As estradas de seringueiras tinham como ponto de partida e chegada o tapiri, onde o látex era defumado e transformado em borracha. O barracão principal, como vimos, era a residência do seringalista, enquanto os barracões menores eram construídos para servir de depósitos e escritórios (SANTOS, 2007, p. 162-163). Alguns deles tinham capela e cemitério. Era extremamente necessário que o seringal estivesse próximo ou à margem de um rio, para escoar a produção e receber os mantimentos necessários para o seu funcionamento.

A economia centrada nos seringais era altamente predatória. Em mensagem do Governo do Estado do Amazonas datada de 1901, a atividade dos seringueiros no interior é descrita como uma sinfonia elástica, com os trabalhadores deslocando-se de região em região em busca de seringueiras e deixando um rastro de destruição, pois logo que as árvores se esgotavam, abandonavam o local em busca de outras, deixando para trás “uma barraca arruinada e em torno o seringal exhausto!” (MENSAGEM, 15/01/1901). Predatórios mas altamente rentáveis, os seringais atraíam inúmeras pessoas, que deixavam suas atividades cotidianas, a agricultura, a coleta e a pesca, para trabalhar na extração do látex. Desde os tempos da Província que as autoridades reclamavam da constante fuga de braços para a atividade gomífera. Em 1857 o Presidente Ângelo Thomaz do Amaral registrou que o cultivo de cacau e café não se desenvolvia tanto porque “os braços applicam-se principalmente á colheita de castanha e drogas medicinaes, á extracção de oleos e da borracha” (FALA, 01/10/1857, p. 51).

A mão de obra, nos primeiros tempos de exploração, era nativa, sendo empregado o trabalho de indígenas e de mestiços, bem representados em desenhos do engenheiro, fotógrafo e pintor alemão Franz Keller-Leuzinger. Era uma mão de obra escassa, dada a baixa densidade demográfica da região. No entanto, entre o final da década de 1870 e a década de 1880, registra o historiador Caio Prado Júnior, com as secas prolongadas na região Nordeste, “[…] estabelece-se uma forte corrente migratória daí para o Amazonas” (PRADO JÚNIOR, 1970). O sociólogo Samuel Benchimol nos apresenta números da entrada de imigrantes nordestinos na região Amazônica: “As secas de 1877 e 1878 deslocaram 19.910 retirantes. Em 1892 as entradas registraram uma imigração de 13.593 nordestinos. No triênio 1898/1900, nos portos de Belém e Manaus, entraram 88.709 migrantes no auge do movimento povoador. Contados os números até 1900, teríamos um afluxo de 158.125 nordestinos que vieram fazer a Amazônia, cerca de 20% da população da época. De 1900, passando pelo apogeu de 1910, até à depressão, estimamos que a Amazônia recebeu mais de 150.000 cearenses, totalizando assim 300.000 imigrantes nordestinos, no período de 1877 a 1920” (BENCHIMOL, 1999, p. 136).

Para os seringueiros os seringais eram, além de seus locais de trabalho, suas “prisões”, administradas com mãos de ferro pelos seringalistas. O aprisionamento dos homens ao seringal, explica o historiador Caio Prado Júnior, começava logo que eles eram contratados, pois eles já vinham de suas terras natais endividados, devendo as passagens, e ao chegar adquiriam seus instrumentos de trabalho no próprio seringal e através de crédito (PRADO JÚNIOR, 1970). Os gêneros alimentícios também eram comprados no próprio seringal. Tudo vendido por preços astronômicos. Com parcos vencimentos e endividados com o seringalista, os trabalhadores se viam privados de liberdade. A mão de obra era explorada até o esgotamento. O escritor Euclides da Cunha definiu o seringueiro como sendo o homem que trabalha para escravizar-se (CUNHA, 1909, p. 24). Os sonhos de melhoria de vida davam lugar à exaustão, ao desespero, à raiva e frustração.

Os seringais eram locais violentos, sendo frequentemente palcos de brigas, tentativas de homicídio e assassinatos. Em 1910 o gerente do seringal Manixy, no baixo Juruá, mandou espancar um seringueiro após se desentender com ele (CORREIO DO NORTE, 28/01/1910, p. 01). A reintegração de posse de dois seringais em Lábrea invadidos por Miguel Milerio de Vasconcelos e pertencentes a Jacob da Costa Gadelha, em 1910, terminou com a morte de três soldados, do encarregado de um dos seringais e três seringueiros (MENSAGEM, 10/07/1910, p. 17). Em 1913, quando voltava de uma estrada, o seringueiro de nome André, do seringal Boa Esperança, no rio Madeira, foi atacado por índios parintintins, que o decapitaram (JORNAL DO COMMERCIO, 04/01/1913, p. 01). Por volta de 1916, no seringal Forte-Veneza, localizado no alto do rio Javari, um seringueiro assassinou seu companheiro de trabalho e o enterrou na entrada da barraca que dividiam (O JAVARY, 08/10/1916, p. 02). Inúmeras páginas poderiam ser dedicadas a esse banho de sangue diário, sangue de amazonenses e nordestinos.

Para enfrentar a solidão dominante nos seringais e amenizar, mesmo que por alguns instantes, as agruras da vida, os seringueiros ingeriam aguardente, que figurava entre os principais itens de suas listas de aquisições nos barracões. O sexo também era uma necessidade. A presença feminina nos seringais era rarefeita. Eles eram espaços quase que inteiramente masculinos. O sociólogo Márcio Souza afirma que “[…] a contrapartida feminina chegava sob a forma degradante da prostituição. Mulheres velhas, doentes, em número tão pequeno que mal chegavam para todos os homens, eram comercializadas a preço aviltante” (SOUZA, 1994, p. 139).

Os seringais tiveram importância imensurável para a região Amazônica na virada do século XIX para o XX. Mesmo após a crise do sistema de produção gomífera continuaram existindo, dominando a paisagem do interior com suas barracas e barracões.


FONTES:


Falla dirigida a Assembléa Legislativa Provincial do Amazonas em 01 de outubro de 1857 pelo Presidente da Província, Angelo Thomaz do Amaral.

A Província do Amazonas, 06/04/1888.

Amazonas Commercial, 26/05/1900.

Mensagem do Governo do Estado do Amazonas, de 15 de janeiro de 1901.

Correio do Norte, 28/01/1910.

Mensagem do Governo do Estado do Amazonas, 10/07/1910.

A Lanceta, 21/09/1912.

Jornal do Commercio, 04/01/1913.

O Javary, 08/10/1916.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


BENCHIMOL, Samuel. Amazônia – Formação Social e Cultural. Manaus: Editora Valer/Editora da Universidade do Amazonas, 1999.

BINSZTOK, Jacob. O regatão. Boletim Geográfico. Rio de Janeiro: IBGE, 24 (189), p. 910-911, nov/dez, 1965.

CUNHA, Euclides da. À Margem da História. Porto (PT): Livraria Chardron, 1909.

PRADO JÚNIOR, Caio. História Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1970.

SANTOS, Francisco Jorge dos. História do Amazonas. 1° ed. São Paulo: Ática, 2007.

SOUZA, Márcio. Breve História da Amazônia. 2° ed. São Paulo: Marco Zero, 1994.

TOCANTINS, Leandro. O Rio Comanda a Vida: Uma Interpretação da Amazônia. 3° ed. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968.

TEIXEIRA, Carlos Corrêa. Servidão Humana na Selva – O Aviamento e o Barracão nos Seringais da Amazônia. Manaus: Editora Valer/Edua, 2009.