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quarta-feira, 2 de novembro de 2022

Uma breve História do Dia de Finados

Cemitério de São João Batista, em Manaus, durante o Dia de Finados. Foto da década de 1960.

Não existe uma data que carregue tantos sentimentos como o Dia de Finados, ponto alto do calendário cristão. Todos os anos, no mês de novembro, os cemitérios públicos e particulares ao redor do mundo enchem-se da mais terna saudade, da mais pura devoção religiosa e da alegre nostalgia que aflora com as lembranças dos que já partiram. A morte, que a todos espreita e espera, faz com que realizemos, no dia 02 de novembro, uma profunda reflexão sobre nossa trajetória e as daqueles que jazem em outro plano.

Qual a origem dessa data? Desde os primeiros tempos do Cristianismo era costume rezar pelos mortos nas catacumbas, que naquela época cumpriam a função de locais de refúgio das perseguições religiosas e também de culto. O teólogo e filósofo Santo Agostinho de Hipona, no século V, no texto O cuidado devido aos mortos, registrou que a Igreja Católica já possuía em seu calendário uma comemoração geral pelos fiéis defuntos. Ele explica que a oração aos mortos deveria ser praticada pelos cristãos, e que ela só seria proveitosa àqueles que tiveram uma vida exemplar em Cristo. Homens e mulheres deveriam viver uma vida exemplar para gozar, na morte, da piedade dos vivos. Mas como saber quem teve uma vida de fato voltada para Cristo, morrendo dentro dos preceitos da Igreja? Na dúvida, Agostinho afirma que “(…) convém apresentar súplicas a todos os regenerados, para que não omitemos alguém entre aqueles que possam se servir desses benefícios”.

O historiador medievalista francês Jean-Claude Schimitt, em estudo sobre os mortos na sociedade Medieval, afirma que a data foi oficializada em 02 de novembro, um dia após o Dia de Todos os Santos, pelo Abade Odilon de Cluny, o Santo Odilon (962-1049). Ela começou a ser melhor documentada a partir do ano 1030. Alban Butler (1710-1773), hagiógrafo inglês do século XVIII, nos explica que essa celebração é marcada por “esmolas, orações e sacrifícios para o alívio das almas sofredoras no Purgatório”.

Na Doutrina Cristã Católica, o Purgatório é um lugar localizado entre o Céu e o Inferno para onde vão as almas daqueles que, para atingir o Paraíso, necessitam passar por um processo de purificação marcado por provações. As orações dos vivos, recomendadas pela Igreja, amenizaria a passagem por esse local intermédio entre a perdição e a glória eterna. De acordo com o historiador medievalista francês Jacques Le Goff, essas orações pelos mortos foram a gênese da criação do Purgatório: “Foi, parece, pela crença dos primeiros cristãos na eficácia de suas preces pelos mortos – como testemunham as inscrições funerárias, as fórmulas litúrgicas, e depois, no começo do século III, a Paixão de Perpétua, primeira das representações espacializadas do futuro Purgatório – que começou um movimento piedoso que deveria conduzir à criação do Purgatório”.

O Dia de Finados, dessa forma, surge através de um sentimento de união entre vivos e mortos, representando um novo estágio na relação entre ambos, pois até a Antiguidade os mortos ficavam bem distantes da população, enterrados o mais distante possível das áreas urbanas, de forma a não prejudicar espiritualmente o ambiente dos vivos. Nesses distantes cemitérios, na época do Império Romano, foram enterrados os primeiros mártires do Cristianismo. No lugar de suas sepulturas, os cristãos passaram a erguer igrejas, e passaram a querer serem enterrados no interior desses templos, informa o historiador francês Philippe Ariès, autor do clássico História da Morte no Ocidente (1989). Com o passar do tempo e o crescimento urbano, as cidades passaram a absorver os subúrbios onde ocorriam os sepultamentos. Os mortos, dessa forma, passaram a fazer parte, de forma mais direta, do cotidiano dos vivos.

A prática de enterrar os mortos dentro e ao redor das Igrejas espalhou-se pelo Ocidente e outras regiões, chegando aos mais distantes rincões conquistados pelas potências coloniais da época, Portugal e Espanha. Elas introduziram a comemoração de Finados, incorporando um novo rito no cotidiano das populações locais.

Nos primórdios de Manaus, entre os séculos XVII e XVIII, quando era uma simples comunidade de indígenas e soldados portugueses localizada nos arredores da Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro, os nativos enterravam seus mortos no cemitério que tinha seu núcleo na atual Praça Dom Pedro II, se estendia pela antiga Rua de São Vicente e chegava até o Forte da Barra, nas imediações do Porto. Os colonizadores, por sua vez, eram enterrados dentro da Igreja de Nossa Senhora da Conceição e em seu largo. Documentos do século XIX indicam que a Ilha de São Vicente era outro local utilizado como cemitério. No início do século XIX surge um novo local de enterro, a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios e o terreno localizado atrás desta, batizado de Cemitério dos Remédios.

Esses espaços desempenharam suas funções até 1850, quando o Governo da Província decide estabelecer – em nome da saúde pública e de uma nova mentalidade – um cemitério público na cidade e extinguir os enterros tradicionais. Com dificuldades materiais para executar a obra, foi cercado em 1854 o antigo Cemitério dos Remédios, que funcionaria de maneira provisória até a abertura de um novo. Com isso, foram proibidos os enterros nos templos e seus arredores. O geógrafo e historiador Agnello Bittencourt, em texto publicado no Boletim da Associação Comercial do Amazonas (1956), lembra que o Cemitério dos Remédios ficava onde está localizado o antigo prédio da Faculdade de Farmácia e Odontologia, se prolongando pela rua Leovigildo Coelho, onde ficava o seu cruzeiro.

Uma grave epidemia de febre amarela em 1856, fez com que o Governo encerrasse os enterros no Cemitério dos Remédios. Foi aberto, nessa ocasião, na antiga Estrada da Cachoeira, atual Avenida Epaminondas, o Cemitério de São José. Por décadas as romarias de Finados se dirigiram a essa necrópole. Em 1869 um redator do jornal O Catechista registrou que viu nele, desde o dia 01, “Uma infinidade de luzes simetricamente dispostas sobre as sepulturas dos finados, parte das quais se achavam vestidas de crepe, e ornadas de flores sentimentais”, além de uma “[…] multidão de pais, amigos e parentes” que iam deixar lágrimas de saudade sobre os túmulos daqueles que lhes foram caros em vida. Somava-se a esse cenário melancólico a oração fúnebre do Padre Manoel Ferreira Barreto, capelão do cemitério, que “causava a todos que chegavam a porta daquela habitação mortuária, uma emoção difícil de descrever”.

Em 1872 as romarias tiveram início no dia 01. Para o articulista do jornal Amazonas, o cemitério era o local de nivelamento social, com o mais rico dos homens sendo igualado ao mais pobre: “É que ali naquela sombria igualdade cifram-se todas as vaidades mundanas; alli acabam-se as dissenções e ódios de que muitas vezes se nutre a fragilidade humana na breve passagem que faz por este mundo sáfaro até chegar á eternidade; ali não ha distinção nem de raça nem de classes: todos são – pó, cinza, terra e nada!”. No ano de 1879 é inaugurado, no bairro de São Raimundo, o Cemitério dos Variolosos, utilizado exclusivamente para o sepultamento de vítimas da varíola, que desde 1870 assolava a cidade. Em 1888 esse campo santo foi aberto ao público em geral, ganhando o nome de Cemitério de São Raimundo.

O Dia dos Finados de 1885 foi marcado por forte emoção, com as celebrações tendo início no dia 01. Os Alunos do Instituto de Educandos Artífices cantaram o Libera-me, enquanto o Reverendo Vigário Geral Pe. Raimundo Amâncio de Miranda realizava as orações e encomendas pelas almas dos mortos. No dia 02, distante do Cemitério de São José, foi realizada comemoração no bairro de São Raimundo pela alma “[…] dos que, vítimas da epidemia que a pouco assolou esta capital, repousam no cemitério dos variolosos”. O Libera-me foi tocado pelos Reverendos. Padre Amâncio e Coutinho, com ajuda do Capitão Fleury. De acordo com o articulista do Jornal do Amazonas, “A concorrência foi enorme, e a dor foi sincera”.

Em 1891 os cemitérios de São José e de São Raimundo já não possuíam mais condições de permanecer funcionando. O primeiro por já fazer parte da área urbana, oferecendo perigo para a saúde pública e por já não dispor mais de espaço. O segundo, além de não possuir mais espaço, tinha um terreno que dificultava a decomposição dos cadáveres. O então Governador do Estado do Amazonas, Eduardo Gonçalves Ribeiro, através do Decreto N° 95, de 02 de abril de 1891, determinou o fechamento desses cemitérios. Em 05 de abril foi inaugurado, em sessão solene, o Cemitério de São João Batista, no antigo bairro do Mocó, hoje bairros de Adrianópolis (Vila Municipal) e Nossa Senhora das Graças, na zona Centro-Sul da cidade. Ele já estava sendo idealizado desde o final da década de 1880. Foi uma das grandes obras modernizadoras erguidas no Governo de Eduardo Ribeiro.

Foi pelas mãos do Superintendente Adolpho Guilherme de Miranda Lisboa, à frente da administração municipal entre 1902 e 1907, que o Cemitério de São João Batista recebeu grandes melhoramentos. Em 1904 ele autoriza sua reconstrução. No ano seguinte, manda ser construído o muro com portões e gradis de ferro, importados da Escócia. Em 1906 é concluída a nova capela, em estilo neogótico. No portão de entrada foi fixada a expressão latina ‘Laborum Meta’, que significa fim ou meta dos trabalhos. Agora em grande estilo, transformara-se de fato em cemitério da elite manauara, que passaria a atestar seu poder através de túmulos e jazigos monumentais, obras esculpidas em mármore e assinadas por marmorarias e artistas de renome. No Dia de Finados de 1908 o Jornal do Commercio noticiou seu embelezamento: “Tivemos ocasião de admirar ali muitas obras novas e bonitas, recém-colocadas, simples, sólidas e dignas de apreço, pela sua boa confecção, pelo seu bem-acabado, todas executadas pelo exímio marmorista Cesare Veronese, proprietário da conhecida e premiada marmoraria Ítalo-Amazonense, desta praça, que cada ano mais se desenvolve em crescente progresso, afirmando assim os foros simpáticos que tem de ótimo interprete da arte a que se dedica, com tanto interesse”. Anos mais tarde, distante do luxo do cemitério da Vila Municipal, era aberto, por volta de 1904-1908, o Cemitério de São Francisco, no bairro Colônia Oliveira Machado.

A Prefeitura cuidava da organização dos cemitérios. As quadras eram limpas, a vegetação era aparada, o número de bondes para fazer o transporte dos visitantes era ampliado e o de soldados da força policial do Estado para fazer a segurança. Os jornais publicavam inúmeros anúncios de venda de flores, cruzes, velas, imagens sacras, instalações elétricas especiais e outros elementos decorativos para túmulos e jazigos. Para as comemorações de 1909, a Casa Loyo e Paredes anunciava no Jornal do Commercio ter recebido “o maior e mais completo sortimento de coroas mortuárias”. Em 1920 A The Manáos Tramways and Light Company encarregava-se “de preparar instalações elétricas nas sepulturas, e tinha um grande estoque de cruzes”. Em frente aos cemitérios eram instaladas barracas para a venda de alimentos e bebidas. Não se ia ao cemitério de qualquer forma. Existia uma indumentária tradicional para o Dia de Finados. O antropólogo e historiador Thales Olympio Góes de Azevedo, na obra Ciclos da vida: ritos e ritmos (1987), informa que as mulheres usavam roupas pretas e roxas combinadas com um véu branco que cobria o rosto. Os homens utilizavam roupas escuras, cinzas e brancas, com fumo no braço direito ou na lapela. Essas cores eram associadas à pureza da alma, à morte e ao luto.

As visitas tinham início pela manhã. Milhares de pessoas se dirigiam aos cemitérios da cidade, São João Batista, São Raimundo, São José e São Francisco. Engana-se quem imagina um ambiente de ordem e calmaria, como atualmente a ocasião pede. Entre lágrimas e orações, abundavam as beberagens, as comilanças, as conversas, os namoros, as gargalhadas, a correria de crianças brincando entre as quadras e, sempre que houvesse oportunidade, o furto de alguma cruz, vaso ou metal com valor de mercado. A sociabilidade era tão intensa que, no Regulamento dos Cemitérios Públicos do Estado do Amazonas (1892), estabeleceu-se que “É proibido fazer-se do cemitério lugar de recreio”. Apesar da medida, a morte, parafraseando o historiador João José Reis, seguia sendo uma festa. A primeira vez que os manauaras não puderam visitar os cemitérios foi durante a pandemia de Gripe Espanhola, em 1918. O Jornal do Commercio publicou, para a tristeza da população, que “Em virtude da terrível epidemia que lavra entre nós, não haverá, hoje, como nos anos anteriores, romarias às necrópoles desta capital”. Em 2021, com a pandemia de Covid-19, ocorreu o mesmo. Não poder velar, enterrar em vala comum, não visitar e não prestar homenagens causa uma ruptura dolorosa, pois esses ritos fúnebres estão há séculos arraigados em nosso cotidiano. Ao final de 2021, a normalidade retornou.

No final da década de 1930 o antigo Cemitério de São José deu lugar à sede do Atlético Rio Negro Clube. O Cemitério de São Raimundo foi arrasado no mesmo período, sendo construído em seu lugar, décadas mais tarde, a Escola Estadual Marquês de Santa Cruz. Em 1934 é inaugurado nesse bairro o Cemitério de Santa Helena. A partir da década de 1960 os cemitérios de São João Batista, Santa Helena e São Francisco já estavam sem espaço, passando a receber enterros apenas em jazigos perpétuos. Foram construídos, na década seguinte, o Cemitério de Nossa Senhora Aparecida e o Cemitério Parque de Manaus, também conhecido como Cemitério Parque Tarumã. Este último foi uma novidade na época, seguindo novos padrões de enterramento, sem jazigos convencionais, apenas com placas de identificação e um parque florido seguindo o estilo norte-americano. Era uma nova mentalidade em relação à morte, com busca pela praticidade e a economia de tempo e dinheiro.

Hoje as romarias irão em direção às necrópoles de São João Batista, São Francisco, Nossa Senhora Aparecida, Parque de Manaus (Parque Tarumã) e Santo Alberto. Os antigos simbolismos, como o uso de determinadas roupas, foram abandonados. Mas os sentimentos mais puros, a saudade, a tristeza e a alegria, e as virtudes mais caras, a fé, a esperança e a caridade, continuam a tomar conta das quadras e alamedas desses lugares de memória, arte e cultura incríveis que são os cemitérios.

quarta-feira, 7 de julho de 2021

Cemitério de São João Batista: Túmulo do Barão de Sant'Anna Nery

 

Túmulo do Barão de Sant'Anna Nery. FOTO: Fábio Augusto, 2019.

O túmulo de Frederico José de Sant'Anna Nery, o Barão de Sant'Anna Nery (1848-1901), está localizado no quadra 02 do Cemitério de São João Batista, também conhecida como Quadra da Santa Casa de Misericórdia, em Manaus.

Frederico José de Sant' Anna Nery, nascido em Belém, então capital da Província do Grão-Pará, em 28 de maio de 1848, foi um dos maiores propagandistas do Império Brasileiro - principalmente da região Amazônica - na Europa. Vivendo seus primeiros anos entre Belém e Manaus, viaja para a França ainda na adolescência, posteriormente estabelecendo nesse país, onde fez os curso de Letras e Ciências. Graduou-se em Direito pela Faculdade de Roma, na Itália. Membro da poderosa família Nery, era filho do Major Silvério Nery e Maria Antony Nery. Foram seus irmãos Silvério José Nery, Constantino Nery e Márcio Nery.

De acordo com o professor e historiador Agnello Bittencourt, em seu Dicionário Amazonense de Biografias (Rio de Janeiro, Editora Conquista, 1973), ele recebeu o título de Barão do Papa Leão XIII (1810-1903) por sua defesa da fé Católica.

Intelectual de renome, foi jornalista, correspondente e membro de várias instituições científicas europeias e brasileiras, preocupado sempre com a divulgação das riquezas, da cultura e dos potenciais do Império. São de sua autoria os livros 'Le pays des Amazones' (1885), 'Folklore Brésilien' (1889), 'Le Bresil en 1889' (1889), 'L' émigration et immigration pendant les dernieres annes' (1892) e "Aux États Unis du Brésil' (1898).

Faleceu em Paris em 03 de junho de 1901. Seus restos mortais foram transladados para Manaus no vapor italiano Colombo, sendo sepultados no Cemitério de São João Batista em 11 de outubro (MENSAGEM DO GOVERNO DO ESTADO DO AMAZONAS, Estatística Mortuária, 2° semestre do anno de 1901, 10/07/1902) . Seu túmulo, bastante simples, uma campa tumular com uma cruz em alto relevo, encontra-se bastante deteriorado, sendo impossível ler seu epitáfio.

Frederico José de Sant'Anna Nery (1848-1901). FONTE: Le pays des Amazones (1885)/Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.



domingo, 23 de maio de 2021

Cemitério de São João Batista: Jazigo da família Nogueira da Silva

Jazigo da família Nogueira da Silva. FOTO: Fábio Augusto, 2019.

O jazigo da família Nogueira da Silva está localizado na quadra 06 do Cemitério de São João Batista, em Manaus. Seu formato de mãos postas em oração chama a atenção dos visitantes. Ele foi construído para homenagear Alonso Nogueira da Silva (1915-1962), sobre o qual conseguiu-se informações através de um de seus filhos, Rosenaldo Tavares da Silva:

"Meu pai teve uma vida trabalhando como Regatão, viajando pelo Rio Purus, até Boca do Acre. Levava de Manaus gênero alimentício não perecível e vendia, ou trocava, por produtos tipo castanha, juta, sorva, borracha etc. Em Manaus, negociava aqueles produtos com empresas beneficiadoras ou exportadoras. Naquela época, década de 1950, havia o Banco da Borracha, hoje BASA, que incentivava aquela atividade. Meu pai faleceu precocemente, aos 46 anos de idade, vítima de infarto do miocárdio, em 16 de setembro de 1962".

A obra foi executada pelo escultor alagoano Geraldo Florêncio de Carvalho, proprietário da empresa Calima Ltda, também responsável pela construção do túmulo do Ex-Senador pelo Amazonas Leopoldo Tavares da Cunha Melo (1891-1962), localizado no mesmo cemitério, e pela remodelação da Praça da Saudade em 1964.

Fui informado pelos filhos de Alonso Nogueira da Silva que existe um túmulo semelhante no Cemitério Municipal de São José, em Parintins. Realizando pesquisas no site Arte Funerária Brasil, descobri que existe um jazigo de mesma feição no Cemitério São Pantaleão, também conhecido como Cemitério do Gavião, em São Luís, no Maranhão. Sobre o exemplar do cemitério de Parintins, de acordo com a jornalista Bruna Oliveira, em matéria do jornal Em Tempo, ele pertence à família do empresário Dodó Carvalho (OLIVEIRA, 2019).

Jazigo do Cemitério Municipal de São José, em Parintins. FOTO: Bruna Oliveira, 2019.

O site Arte Funerária Brasil descreve o jazigo do Cemitério São Pantaleão da seguinte forma: "A PRECE, século XX. O jazigo destaca-se do seu entorno por colocar em sua cabeceira uma escultura enorme que representa as mãos na posição de oração. Sobre ela está assentada a cruz latina. Atentar para o realismo das mãos feitas provavelmente de concreto".

O jazigo do Cemitério São Pantaleão, em São Luís, no Maranhão. FOTO: Site Arte Funerária Brasil.

No livro Cemitério Municipal de São João, o arquiteto Humberto Barata Neto classifica o jazigo da família Nogueira da Silva como sendo um exemplar de arquitetura Kitsch (BARATA NETO, 2012, p. 32). A arquitetura Kitsch é caracterizada pela presença de criatividade, exagero em decorações e dimensões. As 'mãos em oração' do Cemitério de São João Batista são bastante realistas, possuindo detalhes nas dobras dos dedos, nas unhas e nas articulações. Antigamente elas eram pintadas em rosa claro, tendo recebido atualmente nova pintura em branco.

Jazigo da família Nogueira da Silva em 1977. FONTE: Jornal do Commercio, 28/10/1977, p. 01.

Jazigo da família Nogueira da Silva com a antiga pintura. FOTO: Site Arte Funerária Brasil.

Jazigo da família Nogueira da Silva. FOTO: Fábio Augusto, 2019.

Jazigo da família Nogueira da Silva. Parte de trás. FOTO: Fábio Augusto, 2019.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


ARTE Funerária Brasil. Cemitério São Pantaleão. Disponível em: artefunerariabrasil.com.br/cemiterio-sao-pantaleao/#histria.

BARATA NETO, Humberto D. F. Cemitério Municipal de São João. Manaus: Governo do Estado do Amazonas - Secretaria de Estado de Cultura, 2012.

OLIVEIRA, Bruna. Cemitério: desenterrando as histórias de quem já morreu em Parintins. Lugar que muita gente evita, mas é rico em histórias da Ilha Tupinambarana. Em Tempo, 01/07/2019.

sexta-feira, 21 de maio de 2021

Registros para a eternidade: fotografias mortuárias na cidade de Manaus (séculos XIX e XX)


Artigo de minha autoria publicado originalmente na Manduarisawa - Revista Eletrônica Discente do Curso de História da UFAM (v. 4, n. 1, 2020). 

Disponível em:

https://periodicos.ufam.edu.br/index.php/manduarisawa/article/view/7458


RESUMO

A invenção do daguerreótipo, predecessor das modernas câmeras fotográficas, criação do pintor e cenógrafo francês Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851), revolucionou a prática de registrar determinados momentos do cotidiano, fossem eles particulares ou não, ao redor do mundo. Um novo leque de possibilidades se abriu. Dentre esses registros estão os mortuários, de pessoas no leito de morte ou no velório, que se popularizaram em diferentes regiões. No presente trabalho buscou-se analisar a prática das fotografias mortuárias na cidade de Manaus. Além dos anúncios de serviços fotográficos publicados em periódicos da segunda metade do século XIX, foi estudado um conjunto desses registros fotográficos produzidos na cidade entre as décadas de 1900 e 1990, visando compreender a confecção e os significados dos mesmos.


Palavras-chaves: Fotografias; Morte; Manaus.


ABSTRACT

The invention of the daguerreotype, predecessor of modern photographic cameras, created by the French painter and scenographer Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851), revolutionized the practice of recording certain moments of everyday life, whether they were private or not, around the world. A new range of possibilities has opened. Among these records are the mortuary, of people on the deathbed or at the wake, which became popular in different regions. In the present work, we sought to analyze the practice of mortuary photographs in the city of Manaus. In addition to the advertisements for photographic services published in periodicals in the second half of the 19th century, a set of these photographic records produced in the city between the 1900s and 1990s was studied, with a view to understanding their production and meanings.


Keywords: Photographs; Death; Manaus.



Representações imagéticas da morte, o daguerreótipo e as fotografias mortuárias


Desde os tempos mais remotos o homem buscou representar diferentes momentos de sua vida. Nas cavernas Pré-Históricas, do período conhecido como Paleolítico, que de acordo com pesquisas do historiador espanhol Jorge Juan Eiroa García “es la etapa más larga de la historia humana, desde la aparición de los primeiros seres humanos hasta el final del Pleistoceno, hace unos 10.000 años” (EIROA GARCIA, 2003, p. 43), é possível encontrar desenhos que retratam o cotidiano de caça, pesca, rituais e morte. Essa última etapa da vida sempre despertou temores, crenças e representações, sentimentos que podem ser compreendidos através da arqueologia funerária:

La Arqueología de la Muerte pretende investigar aspectos de la estructura social a partir de las praticas funerarias, así como o.tros aspectos antropológicos del grupo, ya que se parte de la ideia de que las estructuras implícitas e.n las prácticas funerarias expresan la realidad social o sus principios simbólicos y, por tanto, constituyen una base potencial de estudio para obtener información” (EIROA GARCIA, 2003, p. 60).

Além das pinturas rupestres, os homens pré-históricos, sobretudo da fase do Paleolítico, também representavam seus semelhantes falecidos com objetos, sendo o principal deles o crânio. Georges Didi-Huberman, historiador e crítico da arte francês, afirma que ele “[…] era a parte do corpo que, na morte, não devia cessar de representar o ser que o habitava” (DIDI-HUBERMAN, 1998, p. 69). O crânio era enfeitado, cultuado e guardado em respeito ao falecido. Didi-Huberman encontrou essa prática em antigas culturas da Europa, da América, da Ásia, da África, do Oriente Médio e da Oceania.

Uma das representações imagéticas mais interessantes da Antiguidade são os retratos mortuários de Fayum, cidade do Médio Egito. Datados dos séculos I a.C. a III d.C., época da dominação grega Ptolomaica e posteriormente da anexação pelo Império Romano, eram feitos sobre tábuas de madeira de cedro, carvalho e cipreste, através das técnicas de encáustica (pigmentos de cor diluídos em cera quente, para dar brilho) e têmpera, sendo pintados ainda em vida e guardados nas casas dos retratados. Após a morte destes, eram fixados nas faces de seus caixões e sarcófagos.

O tratamento dado ao corpo, mumificado, e os locais em que era depositado, caixões e sarcófagos, eram elementos egípcios, enquanto a arte dos retratos é greco-romana, com as figuras expressivas, pintadas com detalhes fisionômicos, diferente da frontalidade da arte egípcia, como pode ser visto na Figura 01. Nos caixões e sarcófagos, lembrando a religião egípcia, figuras de divindades como Anúbis, Hórus e Seth. Os retratos, na religião romana, eram peças importantes no culto aos ancestrais, lembrança das linhagens patrícias, dos predecessores que continuariam a proteger os lares (VALTIERRA, 2017, p. 20-21).

Figura 01: Um dos vários exemplares dos retratos de Fayum. Fonte: http://adrastuscollection.org/los-hechos-encera-jose-maria-cano-2/. Acesso em 23/07/2019.

Na Idade Média e mesmo na Idade Moderna, a morte foi largamente representada nos memento mori, imagens e esculturas que lembravam as pessoas de sua condição mortal. Os corpos eram representados em três estágios: vida, morte e decomposição. Os transi, tumbas com efígies do cadáver em decomposição, eram utilizados pelas classes mais abastadas. Serviam para mostrar, como o nome sugere, que a vida era uma transição de estados físicos.

A historiadora da Arte Juliana Schmidt, em estudo sobre o imaginário do cadáver em decomposição na Idade Média, afirma que esse tipo de representação iconográfica, das etapas de deterioração do corpo humano, tem relação com o contexto de grande mortandade em que se vivia durante a Baixa Idade Média, marcado por epidemias como a de Peste Negra. Dessa forma, “insiste-se na exposição da podridão, em especial do abdômen – estufado ou aberto e abarrotado de vermes exaltados, ou vazio, com as peles penduradas” (SCHMITT, 2015, p. 84). Um dos exemplares mais expressivos é o Transi de René de Chalon (Figura 02).

Figura 02: Transi de René de Chalon, do escultor francês Ligier Richier, circa 1544-1557. Fonte: http://morbidanatomy.blogspot.com/2008/09/transi-de-ren-de-chalon-ligier-richier.html. Acesso em 23/07/2019.

A invenção da fotografia, no século XIX, revolucionou a forma do homem representar seu último momento.

As fotografias mortuárias surgem, na Europa, paralelamente à invenção do daguerreótipo, predecessor das modernas câmeras fotográficas, criação do pintor e cenógrafo francês Louis Jacques Mandé Daguerre (1787-1851). Antes de sua popularização entre 1840 e 1860, as pinturas mortuárias, mais conhecidas como mourning portraits, nas quais o morto era retratado em seu leito, eram os meios utilizados, pelas classes mais abastadas, além das máscaras mortuárias, para preservar a memória do falecido.

Dava-se continuidade a uma prática antiga, a de perpetuar, através de uma imagem, o extinto. Essa perpetuação da memória, a constituição de uma lembrança do ente falecido, tornou-se mais realista com a invenção de Daguerre, que “congelava” perfeitamente aquele momento. As fotografias mortuárias se disseminaram rapidamente para outros continentes. Essa expansão, de acordo com o Doutor em Ciências da Comunicação Paulo César Boni, tem a ver com questões econômicas e práticas,

pois o custo de pinturas e máscaras mortuárias era alto; logo a fotografia se tornou a forma mais barata e oportuna. Também a reprodutibilidade técnica com a invenção da Carte de Visite, em 1854, por André Adolphe Eugène Disdéri, permitia o envio de fotografias do morto a parentes distantes” (BONI, 2011, p. 293).

O fotógrafo francês André Adolphe Eugène Disdéri (1819-1889) foi um dos pioneiros na produção e divulgação das fotografias mortuárias. Apesar de ter sido um dos primeiros a trabalhar com elas, Disdéri manifestava um certo estranhamento com essa prática:

Por nosso lado fizemos uma multidão de retratos após o falecimento, mas confessamos com franqueza; com uma certa repugnância [...] Toda vez que fomos chamados para fazer um retrato após falecimento, vestimos o morto com as roupas que ele usava habitualmente. Recomendamos que lhe deixassem os olhos abertos, sentamo-lo junto a uma mesa e, para operar, aguardamos sete ou oito horas. Dessa maneira, conseguimos captar o momento em que, tendo as contracções da agonia desaparecido, era-nos possível reproduzir uma aparência de vida” (DUBOIS, 1993 Apud ALMEIDA, 2011, p. 07).

O contato com o cadáver manifestava o estranhamento e mesmo a repugnância, explica a historiadora Marcelina das Graças de Almeida. O que antes era trabalho de pintores e moldadores de máscaras mortuárias, ficava agora a cargo dos fotógrafos. No entanto, conforme a historiadora, “[…] a montagem cênica, a preparação, aguardando inclusive, um espaço-tempo para a dissipação das evidências da morte permitiam, através do recurso fotográfico, encenar um simulacro de vida” (ALMEIDA, 2011, p. 07).

Da Europa, a prática das fotografias mortuárias chegou às Américas, à África e à Ásia. O pesquisador norte-americano Jay Ruby identificou que na América do século XIX existiam três estilos de fotografias mortuárias: “Dois deles projetados para “negar a morte”, isto é, para insinuar que os defuntos não morreram realmente, e o terceiro que buscava revelar uma tentativa de retratar os mortos como um objeto de dor circundado por entes queridos enlutados” (RUBY, 2001, p. 97 Apud OLIVEIRA, 2015, p. 133).

Os dois primeiros estilos foram por muito tempo os mais utilizados no período Vitoriano. Os fotógrafos posicionavam os mortos em cenas cotidianas, em cômodos da casa ou em cenários produzidos em estúdios, de forma a transmitir a impressão de que estes não estavam realmente “mortos”. O terceiro estilo retratava os mortos em seus caixões, rodeados por membros da família e conhecidos. Esse terceiro estilo fotográfico seria um dos elementos utilizados como recordação no processo de enfrentamento do luto.

De acordo com a Filósofa e pesquisadora da História da Arte Maria das Graças Vieira Proença dos Santos, desde o início da década de 1830 o francês Hercules Florence (1804-1879), radicado na capital do Império Brasileiro, fazia experimentos na impressão de imagens. O daguerreótipo, diz Proença, “[…] chegou ao Brasil em 1840, trazido pelo abade Compte” (PROENÇA, 2005, p. 226). Pouco mais de uma década depois de sua chegada, já fazia sensação no Corte, sendo anunciado nos jornais locais:

Daguerreotypo.

Novo estabelicimento, entrada pela rua do Cano n. 52, esquina da rua dos Ourives, tirão-se retratos desde as 8 horas da manhã até as 4 da tarde, vão-se tirar retratos de defuntos, bem como de pessoas inhabilitadas a virem ao estabelicimento, por preços razoaveis” (Grifo nosso. CORREIO MERCANTIL, RJ, 13/09/1857).

Algumas das mais antigas fotografias mortuárias feitas no Brasil, de anjinhos (crianças mortas), são de autoria do fotógrafo carioca Militão Augusto de Azevedo (1837-1905), podendo ser encontradas no Museu Paulista da USP. Elas foram analisadas pelo historiador Luiz Lima Vailati em estudo sobre as representações e transformações da percepção da morte infantil no Brasil no século XIX (VAILATI, 2007, p. 51-71).

Serão analisadas no presente estudo onze fotografias mortuárias feitas em Manaus entre as décadas de 1900 e 1990. Seis delas fazem parte de um álbum de família, tendo sido cedidas por Eros Augusto Pereira da Silva. Uma foi publicada em uma revista de colunismo social e as quatro últimas, as mais antigas, encontradas em túmulos do Cemitério de São João Batista.

Se têm o conhecimento de que o recorte temporal do trabalho é deveras extenso para um artigo, e que as fontes utilizadas não constituem um corpus documental característico de uma abordagem serial da História, que conforme o historiador José D’ Assunção Barros,

Trata-se, neste caso, de abordar fontes com algum nível de homogeneidade, e que se abram para a possibilidade de quantificar ou de serializar as informações ali perceptíveis no intuito de identificar regularidades, variações, mudanças tendenciais e discrepâncias reveladoras” (BARROS, 2012, p. 206).

No entanto, não buscou-se dar por encerrada essa temática, mas contribuir para uma compreensão inicial dessa prática e futuros trabalhos, que poderão ser mais apurados na medida em que mais álbuns familiares forem encontrados e divulgados.


Fotografias mortuárias em Manaus


A prática de fotografar pessoas mortas chegou na cidade de Manaus, na época capital da distante Província do Amazonas, na segunda metade do século XIX. É o que se concluiu através de anúncios de serviços fotográficos compulsados em periódicos. Entre as décadas de 1860 e 1890 é possível encontrar, nas páginas desses jornais, brasileiros e estrangeiros oferecendo seus serviços fotográficos, dentre eles o de fotografar pessoas mortas.

Por volta de 1864, Eduardo José de Souza, estabelecido na rua Formosa (atual Theodoreto Souto), fazia fotografias pelos sistemas de ambrótipo e cromótipo e, mediante ajuste especial (um adicional nos valores estabelecidos), ia em casas particulares e também fotografava pessoas falecidas. Além da fotografia, fazia retratos a óleo e consertava “caixas de muzica e realejos com todo o esmero e promptidão” (O CATEQUISTA, 30/01/1864). Em 1867, anunciava-se que na casa do Major Tapajoz, na Praça Tamandaré, tiravam-se fotografias pelos sistemas mais modernos, de casas particulares e de pessoas falecidas. Da mesma forma que no estabelecimento de Eduardo José de Souza, consertava-se “caixas de musica, e realêjos, com todo o esmero e promptidão possível, galvaniza-se a ouro por menos preço que em outra qualquer parte”. A dúzia dos retratos custava 10 mil réis (AMAZONAS, 30/01/1867).

Nos anos finais da Província e com o crescimento das atividades ligadas à extração do látex, os serviços ofertados na capital tornaram-se mais refinados para atender um público consumidor cada vez mais interessado nas comodidades e praticidades do mundo moderno. Francisco Candido Lyra, em 1888, oferecia seus serviços fotográficos, das 8 da manhã às 16 horas, em seu ateliê estabelecido na rua Marcílio Dias, além de também realizar viagens periódicas para o interior do Estado, onde tinha clientes:

Tirao-se retratos de todos os tamanhos, em grupos, a oleonicraion, assim como se executa qualquer trabalho fora da officina, como sejão: vistas de chalets, retratos de pessoas mortas, e todo e qualquer trabalho pertencente à arte photographica, tudo com e, maior perfeição, asseio e modicidade de preços” (Grifo nosso. JORNAL DO AMAZONAS, 22/07/1888).

Em 1895, o mesmo Candido Lyra anunciava ter renovado seu ateliê, oferecendo, além do já citado serviço de fotografar pessoas mortas, o de fotografar “anjinhos”, crianças mortas (AMAZONAS COMMERCIAL, 10/03/1895). Os anjinhos, diz o historiador e sociólogo Carlos Eugênio Marcondes de Moura, eram “crianças mortas na primeira infância, ataviadas em seus caixõezinhos, enfeitados com guirlandas e arcos de flores artificiais, derradeira expressão de um sentimento que hoje nos parece mórbido” (MOURA, 1999, p. 391). Entre os brasileiros do século XIX era arraigada a crença de que essas crianças, ao morrerem, tornavam-se pequenos anjos, seres celestes que poderiam interceder pelos familiares.

Bastante organizado era o Ateliê Artístico Photographico do italiano Arturo Luciani, na rua Henrique Martins. Luciani fazia “[…] vistas de edifícios, retratos de mortos ou de qualquer outro genero de trabalho”. Também fazia reprodução de “[…] desenhos, plantas autographicas ou industrial”, tendo especialidade em “retratos de tamanho natural, ao crayon, ao photo-crayon e a oleo”. Seu ateliê funcionava das 8 da manhã às 16 horas, sendo recomendadas roupas escuras para ser fotografado e que “a luz da manhã é preferivel a da tarde” (DIÁRIO OFICIAL, AM, 17/01/1896).

Não foram encontradas fotografias mortuárias do período em que esses anúncios foram publicados. As fotos com que se teve contato e realizou-se o trabalho são de décadas posteriores: 1910, 1920, 1931, 1938, 1940, 1964 e 1992. Excetuando-se a de 1940, as demais foram cedidas por Eros Augusto Pereira da Silva e encontradas no Cemitério de São João Batista.


Fotografias tumulares


As fotografias mortuárias mais antigas foram encontradas no Cemitério de São João Batista, fundado em 1891. A partir das décadas de 1900 e 1910 elas passam a figurar com maior frequência nos túmulos e jazigos familiares, tornando-se mais um elemento simbólico e decorativo dos mesmos, ao lado de esculturas e objetos sacros. Como veremos mais adiante, as fotografias mortuárias dos cemitérios são diferentes das familiares:

Embora atualmente os retratos mortuários causem desconforto e até alguma aversão, isso não acontece com os retratos presentes nos cemitérios, pelo simples motivo de que nesse caso as fotografias representam os mortos quando ainda estavam vivos” (SOARES, 2007, p. 122).

Enquanto os registros familiares, em sua maioria, são feitos poucas horas após a morte da pessoa, em seu leito ou durante o velório, os tumulares foram feitos em algum momento da vida do falecido.

Conforme estudo do historiador Miguel Augusto Pinto Soares, as fotografias tumulares devem ser analisadas levando-se em conta os demais elementos presentes nos túmulos (jarros, cruzes, esculturas etc), seu entorno e a própria constituição do cemitério (SOARES, 2007, p. 125). A primeira fotografia encontrada é da senhora Maria Leopoldina Cavalcante de Lemos (1882-1911). Ela encima o jazigo da família Cavalcante de Lemos (Figura 03), que tem como destaque uma escultura em tamanho natural da fotografada.

Ao observar a escultura e a fotografia, percebe-se que a primeira teve como base a segunda, pois as vestes são idênticas. Na escultura Maria é representada com seus três filhos, e na fotografia traz no pescoço um crucifixo. O conjunto de elementos imagéticos potencializa sua figura de mãe, esposa e cristã dedicada.

Figura 03: Fotografia tumular de Maria Leopoldina Cavalcante de Lemos (1882-1911). Foto: Fábio Augusto, 2019.

A segunda fotografia (Figura 04) é da criança Augusta do Carmo Moreira (1908-1913), que ornamenta seu túmulo individual. O registro tem como base um baixo-relevo de flores de lírio, que simbolizam a pureza e a inocência da homenageada. O epitáfio, juntamente à foto e aos lírios, expressa o sentimento da morte infantil: “A innocente Augusta do Carmo Moreira. Nascida a 26 de dezembro de 1908. Fallecida a 6 de janeiro de 1913. Eternas saudades de seus desolados paes e irmãos”. Augusta está bem vestida, apoiada em uma pequena mesa, possivelmente parte do cenário de algum estúdio fotográfico.

Figura 04: Fotografia tumular de Augusta do Carmo Moreira (1908-1913). Foto: Fábio Augusto, 2019.

O terceiro registro tumular é de Antônio José de Almeida (1876-1924). Sua foto está em uma moldura, no centro da cruz e ladeada por duas esculturas de anjinhos suplicantes. Miguel Augusto Soares, que em sua Dissertação também estudou fotografias tumulares, no caso as do Cemitério de São Miguel e Almas, em Porto Alegre, identificou que

Muitos túmulos possuem composições entre a fotografia e o relevo, ou entre a fotografia e a estatuária. Na maioria dos casos a representação fotográfica do falecido é reverenciada por um anjo, ou por uma santa; em outros casos a fotografia integra-se a símbolos religiosos” (SOARES, 2007, p. 133).

A localização da fotografia no jazigo da família, em destaque, mostra a importância que o falecido tinha para a unidade familiar, como patriarca e mantenedor. Assim como nas fotografias anteriores, o falecido está bem trajado.

Figura 05: Fotografia tumular de Antônio José de Almeida (1876-1924). Foto: Fábio Augusto, 2019.

A quarta fotografia (Figura 06) é da pequena Maria Anette Rego Maio (1937-1938). Pela brevidade de sua vida, identificada no epitáfio, supõe-se que aquele foi o seu único registro. De acordo com a historiadora Marcelina das Graças de Almeida,

O uso das fotos em porcelana como decoração dos túmulos, muito embora, em sua maioria não seja o registro do morto após sua morte, muitas das vezes uma imagem feita em vida, em algum momento feliz ou significativo, segue a trilha dos retratos mortuários” (ALMEIDA, 2011, p. 09).

Essa última fotografia tumular vai de encontro com a afirmação de Marcelina das Graças de Almeida, pois é visível como Maria Anette Rego Maio foi retratada em um ambiente familiar, sentada em uma cadeira acolchoada e rindo. Mesmo tendo sido produzidos em vida, esse registros tumulares do Cemitério de São João Batista têm o mesmo sentido das fotografias mortuárias: o de preservação e perpetuação da memória do falecido.

Figura 06: Fotografia tumular de Maria Anette Rego Maio (1937-1938). Foto: Fábio Augusto, 2019.

Fotografias pós-morte


A partir desse ponto serão analisadas fotografias pós-morte produzidas durante os velórios dos retratados.

A primeira é de 1931 (Figura 07). Trata-se do avô de Eros Augusto Pereira da Silva, Carlos Pereira da Silva (1894-1931). O velório foi realizado em sua casa, na rua Visconde de Porto Alegre, no Centro da cidade. Os velórios nas residências, apesar de não serem mais tão frequentes, ainda são uma realidade. Podem ser vistas cadeiras ao lado do caixão, assim como castiçais e um resplendor com crucifixo, paramentação tradicional de velórios cristãos católicos. O cadáver foi vestido com um terno preto e adornado com flores brancas. Nesse registro, diferente dos que serão vistos posteriormente, o cadáver está sozinho, sem a presença de familiares, o que indica que a fotografia pode ter sido produzida antes do início da cerimônia.

Figura 07: Velório de Carlos Pereira da Silva (1894-1931). Fonte: Álbum da família de Eros Augusto Pereira da Silva.

A foto seguinte, de 1940 (Figura 08), por sua composição, permite uma análise mais detalhada. Sebastiana Gomes, filha do Capitão Euphrosino Gomes, do Seringal Joanino, no Rio Juruá, faleceu em Manaus aos 14 anos. Seu caixão está no centro, ornamentado com várias flores. Um ramo delas foi colocado entre suas mãos. O crucifixo, ao fundo, bem como a estrutura que o emoldura, indicam que o velório pode ter sido realizado no interior de uma capela. Ao redor do caixão, crianças e jovens em sua maioria (provavelmente membros da família e conhecidas), com duas mulheres adultas identificadas. Algumas observam o fotógrafo, fixando o olhar na câmera, enquanto outras observam o cadáver.

Sebastiana e as pessoas presentes em seu velório, a maioria mulheres, usas vestes brancas. A cor branca lembra a pureza da alma das crianças e, no caso das jovens, conforme estudo de Luiz Lima Vailati, a inocência e “ausência do ato sexual” (VAILATI, 2007, p. 60). O registro do cadáver de Sebastiana foi publicado em uma revista de colunismo social do Rio de Janeiro, possivelmente a pedido do Capitão Euphrosino, revelando a questão do status social por trás da fotografia mortuária. Segundo estudos do historiador Sandro Blume:

[…] a recordação dos mortos através da fotografia era também um momento de representação do morto na família e na sociedade, de representação da família do morto na sociedade, como indicador da importância da estrutura familiar onde ele se encontrava inserido, na escala de poder da sociedade” (BLUME, 2013, p. 06).

As pessoas que eram retratadas junto ao falecido buscavam utilizar suas melhores roupas, de preferência pretas ou brancas. Seus semblantes são sérios, sóbrios, e as posições rígidas, quase estáticas. Aquele registro era uma recordação produzida para a posteridade. Dessa forma, os presentes deveriam estar apresentáveis não apenas para a ocasião, mas também para os que os veriam ao lado do caixão.

Figura 08: Velório de Sebastiana Gomes. Foto de 1940. Fonte: Revista Excelsior, RJ, 15/02/1940.

A fotografia mortuária de 1964 está dividida em três momentos. A registrada é Januária Lago (1866-1964), bisavó de Eros Augusto Pereira da Silva. O primeiro registro (Figura 09) mostra seu velório, com o autor da foto relativamente distante do caixão, sendo dado destaque aos presentes, netos, bisnetos e filhos. Seu caixão é bastante ornamentado, aveludado e com vários detalhes nas bordas e nas laterais. Os caixões funerários eram objetos caros, mesmo os mais simples. A riqueza de detalhes é um indício do alto poder aquisitivo da falecida e de sua família.

Figura 09: Velório de Januária Lago (1866-1964). Fonte: Álbum da família de Eros Augusto Pereira da Silva.

O segundo registro foi realizado bem próximo do cadáver, com o objetivo claro de capturar a totalidade de sua face (Figura 10). Um registro tão próximo pode ter várias significados e sentidos, mas como bem salientou a Doutora em Arte e Cultura Visual Déborah Rodrigues Borges, “a preservação da memória é uma das razões mais fundamentais para se fazer a fotografia de um defunto” (BORGES, 2013, p. 29). Aquela seria a última imagem que a família teria de Januária. Na última foto (Figura 11) o caixão já está fechado, sendo carregado em direção ao carro mortuário para a realização do cortejo fúnebre.

Figura 10: Januária Lago (1866-1964). Fonte: Álbum da família de Eros Augusto Pereira da Silva.

Figura 11: O caixão de Januária Lago sendo carregado para o carro mortuário. Fonte: Álbum da família de Eros Augusto Pereira da Silva.

As duas últimas fotografias da família Pereira da Silva são de Wild Lago (1907-1992), filho de Januária e tio-avô de Eros Augusto Pereira da Silva. Em seu caixão (Figura 12), que parece ser mais simples que o de sua mãe, foram postas flores brancas. No centro está um resplendor com crucifixo e um painel com o desenho de uma Bíblia e alguns dizeres. Ao lado dele aparecem dois familiares, um deles o pai de Eros Augusto, o advogado e procurador Eros Pereira da Silva (à esquerda). Ambos procuram manter posições e semblantes sóbrios. No que diz respeito à pose durante uma fotografia, o casal de historiadores franceses Pierre e Marie-Claire Bourdieu afirma que

Não deixa de ser razoável admitir que a busca espontânea de frontalidade está ligada aos valores culturais mais enraizados. Nesta sociedade que exalta o sentimento de honra, dignidade e responsabilidade; neste mundo fechado em que se sente a cada momento, e sem escapatória possível, os olhares constantes dos outros, é importante apresentar aos outros a imagem de si o mais honrosa possível: a postura fixa, rígida, que tem na “posição de sentido” dos soldados a expressão máxima, parece ser a expressão dessa intenção inconsciente” (BOURDIEU; BOURDIEU, 2006, p. 37-38).


Figura 12: Velório de Wild Lago (1907-1992). Fonte: Álbum da família de Eros Augusto Pereira da Silva.

O segundo registro (Figura 13), assim como o de Januária, foi feito bem próximo do cadáver, dando destaque ao seu rosto. Em diferentes culturas a face humana possui forte simbologia, pois ela é a parte do corpo que melhor nos define, por onde somos reconhecidos por amigos e familiares. Modificada após o início do processo de decomposição, pode ser acessada de forma “intacta” através da fotografia.

Figura 13: Wild Lago. Fonte: Álbum da família de Eros Augusto Pereira da Silva.

Das fotografias analisadas, chamam a atenção as produzidas em 1964 e 1992. Elas são bastante “recentes”, feitas em um momento em que a morte começava a tornar-se “estranha aos homens”. Para o historiador francês Philippe Ariès, “a morte, outrora tão presente, de tal modo era familiar, vai desvanecer-se e desaparecer. Torna-se vergonhosa e objeto de um interdito” (ARIÈS, 1989, p. 55). A conservação dessa prática em um período tão contemporâneo e marcado pelo tabu da morte é um indício de como, pelo menos em nível familiar, as mentalidades são resistentes às mudanças. Seria necessário um estudo seriado para uma conclusão mais abrangente a esse respeito.


Considerações finais


Portanto, apesar da exiguidade de fontes do ponto de vista serial, foi possível, em primeiro lugar, atestar a existência da prática das fotografias mortuárias em Manaus, que como pôde ser visto ao longo deste trabalho, chegou à cidade na segunda metade do século XIX, tempo em que as técnicas fotográficas estavam sendo largamente difundidas ao redor do mundo. Não foram encontradas fotografias do período em que esse serviço surge nos anúncios de jornal (1860). As que foram utilizadas no estudo são de décadas posteriores, produzidas entre 1910 e 1990. No entanto, não deixam de ser importantes fontes imagéticas para analisar as representações e as atitudes diante morte na cidade.

Em segundo lugar, os registros cedidos por Eros Augusto Pereira da Silva possibilitaram uma compreensão inicial dessa antiga prática no contexto familiar, bem como a fotografia encontrada na revista de colunismo social. A pesquisa de campo no Cemitério de São João Batista foi bastante importante, pois nesse campo santo foram encontrados os exemplares mais antigos de fotografias mortuárias, produzidos entre 1910 e 1930.

Por último, a existência de fotografias mortuárias produzidas em períodos recentes de nossa história como a década de 1990, revelam não apenas a permanência de práticas antigas e que passaram a ser vistas como tabus, mas a manutenção de suas funções como objetos que evocam memórias.

Em álbuns, em túmulos e em revistas de colunismo social, as fotografias mortuárias eram instrumentos de preservação da memória do falecido, tornando-se peças importantes do cotidiano familiar. Essa mesma família, ao se fazer fotografar ao lado do caixão, buscava preservar a unidade familiar e a própria representação para a posteridade. O morto pereceria, mas sua imagem, registrada pela fotografia, permaneceria conservada enquanto fosse guardada por seus descendentes. A fotografia, dessa forma, constitui-se em um mecanismo moderno no enfrentamento diário que o homem trava com a certeza da finitude.


Fontes


Periódicos:

Correio Mercantil, RJ, 13/09/1857.

O Catequista, 30/01/1864.

Amazonas, 30/01/1867.

Jornal do Amazonas, 22/07/1888.

Amazonas Commercial, 10/03/1895.

Diário Oficial (AM), 17/01/1896.


Revistas:

Excelsior (RJ), 15/02/1940.


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