quinta-feira, 26 de agosto de 2021

Vila Fanny, em Manaus

Vila Fanny. FONTE: Biblioteca Samuel Benchimol/Instituto Durango Duarte.

A Vila Fanny é um dos mais belos e imponentes palacetes da Manaus do início do século XX. Construída em 1910, na Avenida Joaquim Nabuco, no Centro, foi propriedade da família do Coronel Manoel Dias de Oliveira, corretor da Junta Comercial do Amazonas. Manoel a batizou como Vila Fanny em homenagem a sua esposa, Fanny Hughes de Oliveira, com quem casou-se em 1903.

O historiador Leandro Tocantins, na obra O Rio Comanda a Vida, descreveu o palacete como um "velho sobradão português com influência francesa", onde foram realizados bailes grandiosos e e casamentos de ingleses com amazonenses (TOCANTINS, 1968, p. 270). Luiz de Miranda Corrêa, em seu Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro, registrou que o local, até a década de 1930, era ponto de encontro da elite amazonense e de estrangeiros bem quistos. O nome do palacete estava gravado no frontão e no portão. Sobre sua arquitetura, descreve-o como um "sobradão português de larga fachada, em que certos elementos neoclássicos foram empregados visando a conseguir um efeito palaciano" (CORRÊA, 1969).

Dom João da Mata de Andrade e Amaral, Bispo do Amazonas entre 1941 e 1948, adquiriu o palacete da Vila Fanny em 1948, integrando-o ao patrimônio da Arquidiocese. Ele serviria de residência episcopal, mas no final optou-se por outro prédio. Posteriormente sediou o SESP - Serviço Especial de Saúde Pública. No bispado de Dom João de Souza Lima (1958-1980) foi alugado ao médico Jayme de Paula Gonçalves. Em 1978 Dom João de Souza Lima, Arcebispo Metropolitano, o alugou para o grupo empresarial que administrava o Pronto Socorro e Hospital dos Acidentados. No ano de 1980 o palacete abrigou o Hospital João Paulo II, criado em homenagem ao Papa João Paulo II, que naquele ano visitou a cidade.

Atualmente o palacete da Vila Fanny pertence ao Grupo Samel, tendo sido integrado à estrutura moderna do hospital. Está parcialmente preservado. Alguns elementos, como os alpendres com lambrequins e parte do muro foram suprimidos nas obras de integração e adaptação à unidade hospitalar. A Vila Fanny fica a poucos metros de outra vila, a Vila Nair, também propriedade do Grupo Samel.

Vila Fanny, à esquerda, nos dias de hoje. FONTE: SAMEL.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CORRÊA, Luiz de Miranda. Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro. Manaus: Artenova, 1969.

TOCANTINS, Leandro. O Rio Comanda a Vida: Uma Interpretação da Amazônia. 3° ed. Rio de Janeiro: Gráfica Record Editora, 1968.



quinta-feira, 12 de agosto de 2021

Resenha: O Tigreiro, de Mário Ypiranga Monteiro (1997)

O livro O Tigreiro foi publicado em 1997 pelo historiador amazonense Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004). Ele nos apresenta nesse trabalho as origens e o funcionamento do sistema de coleta e eliminação de dejetos humanos e animais entre os séculos XIX e XX. A figura central é o tigreiro, tipo social de origem escrava, indígena ou mestiça, que ficava encarregado do trabalho diário de recolhimento das impurezas produzidas pela cidade. É mais um trabalho de História Social, juntando-se ao aguadeiro, a lavadeira, o arruador, o homem da matraca e o regatão.

No período Colonial, em que Manaus era o Lugar da Barra, o sistema de esgoto era inexistente, se tornando uma realidade apenas na segunda metade do século XIX, com a Província. O lixo doméstico e os excrementos eram recolhidos pelos tigreiros, que com seus barris, carregados na cabeça, despejavam toneladas de impurezas em locais destinados para esse fim: "[...] os esvãos litorâneos, as pontas de terra que eram então as dos Remédios e de São Vicente-de-Fora, ou os baixios da Fortaleza, à causa da corrente" (MONTEIRO, 1997, p. 08). Era costume, também, atirar pelas janelas das casas as águas servidas, o que causava transtorno aos transeuntes, que vez ou outra eram atingidos. Surgem, junto aos tigres, os arrendadores do serviço de coleta, utilizado carros de condução de duas rodas.

Mário Ypiranga afirma que tigre era o nome do barril utilizado no transporte dos excrementos, enquanto tigreiro era o carregador (MONTEIRO, 1997, p. 40). Por outro lado, os escravos ficavam conhecidos como tigres porquê os dejetos, ao escorrerem pelas frestas dos barris, marcavam suas peles, que ficavam listradas.

Mário Ypiranga chama atenção para as formas e meios utilizados por nossos antepassados para satisfazer suas necessidades fisiológicas. As famílias de baixa renda, explica, utilizavam as margens dos igarapés ou as áreas de mata como banheiros. Dizia-se "vou ao mato", "vou na casinha". Por conta desse costume os banheiros passaram a ser construídos não anexos à residência, mas à parte destas. Os utensílios utilizados eram variados  e para diferentes classes: "coronel", "capitão", "furriel", iamaru ou jamaru, cabungo, capitari e também bacio e noutra extensão comadre" (MONTEIRO, 1997, p. 14). Os banheiros domésticos, com latrinas e bacio de louça, eram privilégio de poucos. A falta de higiene e o despejo de lixo, fezes e urina nos igarapés eram responsáveis pela insalubridade e o consequente aparecimento de doenças.

No período Provincial, com o aumento das rendas públicas, surgem alguns melhoramentos, como o primeiro esgoto, construído em 1866, que saía da Praça da Imperatriz e ia em direção ao Rio Negro (MONTEIRO, 1997, p. 17). Apesar dessa mudança, o tigreiro continuou atuando com seus barris, indo de casa em casa e de repartição em repartição, sendo uma figura extremamente importante naquele período em que ainda eram dados os primeiros passos na construção de um sistema de esgotos apropriado. Os igarapés e o Rio Negro continuavam sendo o destino dos detritos residenciais.

Do ponto de vista cronológico, Mário Ypiranga, retrocede e avança no tempo, sem limites temporais estabelecidos, o que confere ao trabalho uma característica de ensaio. Por exemplo, ao discorrer sobre algumas ações de administradores públicos do passado, que tentaram sanear a cidade, afirma que mesmo com essas lições antigas as autoridades do presente se mostram ineptas no que tange a urbanização:

"Nos dias atuais as autoridades simplesmente são omissas ao proliferamento de casebres imundos à margem dos igarapés centrais e até dentro deles, ali mesmo onde será despejado o lixo e a matéria fecal dos próprios residentes, de vez que essas construções precárias ficam isoladas do sistema de fornecimento d' água potável e de derivação de esgotos!" (MONTEIRO, 1997, p. 40).

É somente entre o final do século XIX e o início do século XX que Manaus, agora enriquecida pela exportação da borracha, é dotada, pela empresa inglesa Manáos Improvements Limited, concessionária do serviço de águas e esgotos, de um sistema eficiente de eliminação de resíduos residenciais e comerciais. Foram construídas galerias subterrâneas, aterrados igarapés, instalados banheiros públicos, importados carros de limpeza, construído um forno crematório no bairro dos Tócos, no Plano Inclinado, criado um sistema de coleta de lixo eficiente e organizado e os Códigos de Posturas tornaram-se mais rígidos nos artigos sobre a limpeza pública. O autor afirma que "O sistema implantado pela Manaus Improvements era no tempo um dos melhores do mundo, similar ao inglês e australiano no dizer de algumas pessoas credenciadas" (MONTEIRO, 1997, p. 70).

Estudando os orçamentos da cidade entre os anos de 1834 e 1906, mostrou como os gastos com limpeza pública (limpeza de ruas, praças, remoção de lixo, capinação etc) foram evoluindo, iniciando de forma tímida até ganharem grandes proporções entre 1850 e 1900. "Isto basta", afirma, "para exemplificar um critério administrativo, progressivamente firmado no desenvolvimento da cidade, com a aplicação de meios na solução do grave problema de saúde e higiene públicas" (MONTEIRO, 1997, p. 99-114). A Manaus dos tigreiros ficou no passado, apesar de alguns hábitos, como o uso do igarapé como banheiro ou a latrina como sanitário, persistam na cidade e no interior.

O Tigreiro é mais um interessante trabalho de História Social que deve ser lido, pois nos mostra as transformações do sistema de coleta e descarte de lixo na cidade, bem como os personagens ligados à essas atividades.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:


MONTEIRO, Mário Ypiranga. O Tigreiro. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1997.

sábado, 7 de agosto de 2021

De que morriam os amazonenses antigamente?


A análise dos jornais dos séculos XIX e XX possibilita a compreensão de diferentes aspectos do cotidiano daquela época. Além das notícias, neles eram publicadas as estatísticas comerciais, as estatísticas de entrada e saída de passageiros pelos portos, os anúncios de compras, vendas e fugas de escravos, as leis e os decretos. Nos interessam, nesse texto, dois outros elementos que faziam parte dos periódicos: o obituário e os necrológios. Atualizado diariamente, o obituário trazia informações sobre o número de óbitos na cidade, as causas, os nomes, idades e profissões dos falecidos. O necrológio, um elogio fúnebre, também trazia, em meio aos elogios, essas informações. São fontes valiosas para o estudo da História da saúde na região. A lista abaixo foi produzida através do estudo de obituários e necrológios publicados em jornais do Amazonas entre 1850 e 1900.


Ignácio da Cunha Arruda e Sá
Origem: Mato Grosso
Ocupação: Tabelião Público
Idade: Não identificada
Data de falecimento: 01/04/1856
Causa: Febres

A doença identificada como 'febres' trata-se de uma reação a outras enfermidades, reação essa que se tornou adversa e causou a morte da pessoa.

Francisca Furtado
Origem: Amazonas
Ocupação: Dona de casa
Idade: 58 anos
Data de falecimento: 1858
Causa: Congestão cerebral

Congestão cerebral era o nome dado, antigamente, ao Acidente Vascular Cerebral (AVC).

Antonio Felix dos Santos
Origem: Amazonas (Silves)
Ocupação:1° Juiz de Paz, Comissário Literário e Presidente da Câmara Municipal
Idade: Não identificada
Data de falecimento: 29/09/1866
Causa: Breve e perigosíssima enfermidade

'Breve e perigosíssima enfermidade' trata-se de qualquer doença grave de rápido desenvolvimento.

Juliano José Pereira Guimarães
Origem: Amazonas
Ocupação: Não identificada
Idade: Não identificada
Data de falecimento: 12/08/1869
Causa: Afecção pleura

Por 'afecção pleura' pode-se compreender diferentes doenças que atingem os pulmões.

João do Nascimento
Origem: Amazonas
Ocupação: Não identificada
Idade: 16 anos
Data de falecimento: 05/04/1879
Causa: Constipação

A 'constipação' que vitimou João do Nascimento é mais conhecida por nós pelo nome prisão de ventre, que é a alteração do trânsito intestinal e a consequente dificuldade em eliminar a matéria fecal.

Maria Francelina de Menezes
Origem: Ceará
Ocupação: Não identificada
Idade: 16 anos
Data de falecimento: 10/04/1879
Causa: Estupor

O 'estupor' de Maria Francelina de Menezes, entendido como um estado de paralisia ou perda da consciência, pode ter sido consequência de outra doença ou acidente.

Antonio Elias
Origem: Ceará
Ocupação: Não identificada
Idade: 25 anos
Data de falecimento: 04/05/1880
Causa: Tísica

A 'tísica' é o mesmo que Tuberculoso Pulmonar.

Florentino José Felippe
Origem: Amazonas
Ocupação: Não identificada
Idade: 40 anos
Data de falecimento: 05/05/1880
Causa: Tísica

Ver o caso anterior.

Maria de Sant' Anna
Origem: Pará
Ocupação: Não identificada
Idade: 114 anos
Data de falecimento: 05/05/1880
Causa: Reumatismo

Maria de Sant' Anna, que viveu incríveis 114 anos, encerrou-se com um reumatismo, doença inflamatória das articulações que acomete principalmente idosos.

João Mollat
Origem: Alemanha
Ocupação: Não identificada
Idade: 35 anos
Data de falecimento: 06/05/1880
Causa: Asfixia

A asfixia que vitimou o alemão João Mollat pode ter sido causada por inalação de gases tóxicos, afogamento ou infecção.

Maria
Origem: Amazonas
Ocupação: Nenhuma
Idade: 2 anos
Data de falecimento: 09/05/1880
Causa: Coqueluche

A coqueluche é uma doença infecciosa pulmonar que atinge principalmente crianças.

Augusto dos Santos
Origem: Amazonas
Ocupação: Nenhuma
Idade: 2 anos
Data de falecimento: 10/05/1880
Causa: Coqueluche

Ver caso anterior.

Antonio Augusio de Goes Tourinho
Origem: Bahia
Ocupação: Farmacêutico
Idade: Não identificada
Data de falecimento: 02/05/1886
Causa: Faleceu repentinamente

'Morte repentina' e 'faleceu repentinamente' eram termos utilizados para casos de morte súbita.

Joanna Pinheiro
Origem: não identificada
Ocupação: Não identificada
Idade: Não identificada
Data de falecimento: 21/06/1888
Causa: Disenteria

Disenteria, popularmente conhecida como diarreia, é causada por bactérias e parasitas. Era bastante comum em tempos em que não existiam redes de esgoto, abastecimento por água potável e limpeza pública eficiente.

Filomena da Conceição
Origem: Não identificada
Ocupação:
Idade: 20 anos
Data de falecimento: 27/11/1890
Causa: febre perniciosa

A febre perniciosa é intermitente e, na maioria dos casos, fatal.

João Pinto
Origem: Ceará
Ocupação: Não identificada
Idade: 27 anos
Data de falecimento: 30/04/1899
Causa: Beribéri galopante

O beribéri é causado pela baixa presença de vitamina B1 no organismo, causada pela má alimentação e pelo alcoolismo.

Cassiano Ribas da Silva
Origem: Portugal
Ocupação: Não identificada
Idade: 26 anos
Data de falecimento: 23/05/1900
Causa: Febre amarela

A conhecida febre amarela, transmitida por mosquitos, fez estragos consideráveis nos séculos XIX e XX. A epidemia mais grave, no Amazonas, ocorreu em 1856, quando cerca de 70% da população foi atingida.

José Domingos Soriano Alves da Silva
Origem: Amazonas (Manacapuru)
Ocupação: Coronel
Idade: Não identificada
Data de falecimento: 11/11/1900
Causa: Congestão cerebral

Ver segundo caso.

Manoel Joaquim Guedes Filho
Origem: Ceará
Ocupação: Não identificada
Idade: Não identificada
Data de falecimento: 1903
Causa: febres de mau caráter

'Febres de mau caráter' foi o termo utilizado para descrever as febres intermitentes.

Domingos Queiroz de Oliveira
Origem: Não identificada
Ocupação: Indigente
Idade: 26 anos
Data de falecimento: 23/01/1904
Causa: Síncope Cardíaca

'Síncope Cardíaca' nada mais é que o clássico ataque cardíaco.


As principais causas de morte em 1901 eram malária, beribéri, tuberculose, pneumonia, acessos, síncope, bronquite, disenteria, enterite, diarreia, caquexia, hemorragia, meningite, tétano, sífilis, fimatose, asfixia, hepatite, anemia, congestão cerebral, paralisia, hipoxemia, enterocolite, gastroenterite, lesão cardíaca, atrepsia, alcoolismo e outras moléstias não classificadas. Juntas causaram cerca de 1316 óbitos de janeiro a dezembro. Nos anos seguintes a principal causa de mortes na cidade seria o impaludismo.

Os avanços da medicina, ao longo do século XX, com o surgimento de medicamentos e, principalmente, vacinas, garantiram um melhor enfrentamento de doenças que imperavam por séculos no Amazonas, como a febre amarela, o impaludismo, a tuberculose e a coqueluche.


IMAGEM:

IStock

quinta-feira, 5 de agosto de 2021

Bôla, o salgado português mais amazonense que existe


Hoje vou falar sobre a História de um salgado famoso entre nós amazonenses: a Bôla. De acordo com o Diário de Notícias de Portugal, em matéria de 02 de maio de 2011, a Bôla começou a ser produzida ainda na Idade Média, no reinado de D. Afonso Henriques (1143-1185).

De acordo com o escritor português Paulo Moreiras, autor do livro Pão & Vinho, mil e uma histórias de comer e beber, publicado em 2014, a Bôla teria origem numa receita do antigo Convento de Lamego.

Ela é um salgado de origem portuguesa que se popularizou no século XIX, provavelmente tendo chegado aqui através dos imigrantes. A receita tradicional da Bôla de Lamego, produzida na cidade de Lamego, no Norte de Portugal, leva trigo, banha de porco (ou azeite), margarina, fermento, água e sal. No Brasil a adaptamos, adicionando ovos, açúcar, óleo de cozinha e leite. Os recheios são variados: linguiça, calabresa, carne de boi, chouriço, frango, presunto, queijo e o mais famoso, sardinha.

Era vendida nas principais confeitarias da cidade, como a Confeitaria São Jorge, na Avenida Sete de Setembro, no Centro, que vendia a Bôla portuguesa nos sabores queijo e sardinha:

"CONFEITARIA S. JORGE

A Confeitaria S. Jorge deseja aos seus amigos e freguêses um bom Natal e Feliz Ano Novo e aproveita para comunicar que terá a venda nos dias 24 e 31 do corrente os seguintes artigos:

Bola portuguêsa (presunto e sardinha), Bolo Inglês e Rocamboles recheados com cupuassú e chocolate" (JORNAL DO COMMERCIO, 25/12/1963, p. 04).

Essa iguaria tem sabor de infância. Lembra as merendas da tarde, ao redor da mesa, em que esperávamos ansiosos nossas mães e avós transformarem aquela massa em um prato sem sem igual, simples e extremamente saboroso, em uma perfeita combinação de massa fofa com recheio úmido. Para acompanhar, um bom café.