quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

A casa manauara entre os séculos XVIII e XIX

 
Casas na região do Rio Amazonas. Albert Frisch, 1865. FONTE: Brasiliana Fotográfica/Instituto Moreira Salles.

A casa, do latim domus, domínio, é um espaço que vem chamando a atenção historiadores que buscam analisar suas transformações ao longo do tempo, pois ela é o local de desenvolvimento da vida privada, de toda uma sociabilidade que diz respeito à família. Como era a casa manauara dos primeiros séculos? Como era mobiliada? No presente texto buscaremos responder essas perguntas.

As casas da maior parte dos habitantes do Brasil Colônia eram bastante simples, sem maior apuro arquitetônico. Também eram pouco confortáveis e pobremente mobiliadas. Poucas tinham algum estilo e mobília refinada, pertencendo a senhores de engenho, militares de alta patente e ricos comerciantes. A historiadora Leila Mezan Algranti elenca como causas dessa simplicidade, vista por cronistas e viajantes como marca de um primitivismo, a condição de colônia do território, ou seja, um local de passagem; a vida marcada pela dureza, que deixava pouco tempo sobrando para se pensar de forma detalhada na organização residencial; e o pouco interesse em relação à vida íntima1. Nos dão notícia sobre a casa manauara viajantes estrangeiros e brasileiros que estiveram na cidade entre os séculos XVIII e XIX.

No final do século XVIII (1786), o naturalista brasileiro Alexandre Rodrigues Ferreira, durante sua Viagem Filosófica, passou pelo então Lugar da Barra. Seu relato nos revela algumas particularidades sobre as residências daquela época. Ele registrou que a casa do vigário era térrea, coberta de palha e dividida em quatro casas interiores, todas com portas, janelas de madeira e fechaduras, o que revela o desejo de manter preservado e seguro tal ambiente. A casa do comandante, por outro lado, também servia de armazém. Igual à do vigário, era coberta de palha. Raras eram as que tinham cobertura de telhas de barro. Ferreira afirma que as melhores casas eram as dos moradores brancos Manoel Tomé Gomes, Manoel Pinto Catalão, Inácia Lindoza e Madalena de Vasconcelos. “Todas as outras ficavam mais ou menos arruinadas”2.

Por volta de 1819, os naturalistas alemães Carl Friedrich Philipp von Martius e Johann Baptist von Spix, durante sua viagem pelo Brasil, estiveram no Lugar da Barra. As casas por eles descritas eram simples, de um único pavimento, “[…] cujas paredes são construídas de pau-a-pique e barro, cobertas geralmente de folhas de palmeira”3. Restaram desse tempo apenas dois exemplares, localizados na rua Bernardo Ramos, antiga rua de São Vicente, em bairro homônimo. Possuem um único pavimento, tendo sido construídas de taipa de pilão. No lugar das folhas de palmeira, foram cobertas com telhas. Possuem portas e janelas largas, facilitando a ventilação. São típicas residências do período Colonial. Poucas eram mais arrojadas, como era o caso do sobrado do Capitão Francisco Ricardo Zany, onde Martius e Spix ficaram hospedados, que era mais imponente que a residência do Governador da Capitania. Deve-se destacar que Manaus não chegou a ter residências senhoriais como as do Pará, onde se encontram belíssimos exemplares construídos entre a segunda metade do século XVIII e o início do século XIX.

O militar e historiador português Antônio Ladislau Monteiro Baena informa que, em 1838, a maioria das casas do Lugar da Barra era coberta de palha, assim como o Palácio dos Governadores, a Provedoria, o Quartel e os edifícios da ribeira onde eram construídas canoas e batelões. Por outro lado, “São cobertos com telha a olaria, o hospital militar, os armazéns da provedoria e os dos meios de guerra como aramas e pólvoras e algumas casas dos moradores”4. A paisagem ainda era a mesma dos tempos coloniais.

Alfred Russell Wallace, de passagem pela agora Cidade da Barra em 1849, registrou que suas casas continuavam com um único pavimento, mas já eram cobertas com telhas vermelhas e assoalhadas com tijolos. As paredes eram pintadas de branco ou de amarelo, e as portas e janelas de verde. “Quando o sol bate sobre elas, o efeito é muito bonito”5. Ele ficou hospedado em uma residência de propriedade do comerciante italiano Henrique Antony, um dos mais prósperos do Amazonas. Wallace não teceu maiores comentários sobre a moradia, o que nos leva a pensar que ela atendeu as expectativas do visitante no que diz respeito às instalações, móveis e outros objetos. Somente relatos posteriores nos dão algumas notícias sobre o mobiliário.


Sala de jantar em Manaus. Gravura de Édouard Riou publicada na obra Dois Anos no Brasil, de François-Auguste Biard, 1862. FONTE: Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin.

Na obra Dois anos no Brasil (1862), do pintor e desenhista francês François-Auguste Biard, temos a gravura de uma sala de jantar em Manaus. Podemos observar alguns aspectos do local. Existe uma mesa, mas não se veem cadeiras. O habitante da Manaus daquele tempo, assim como o de outras partes do Império, estava acostumado a sentar-se no chão ou em esteiras, como se fazia desde o início da conquista. Chão esse, aliás, de terra batida. Os talheres ainda eram raros na maioria das casas. O normal era comer com as mãos. Garfo, faca e colher, geralmente importados, só em casas de mais posse. O fogão, a lenha, ficava fora de casa. Só mais tarde, por volta de 1870-1880, com surgem os fogões como conhecemos atualmente. Outro detalhe interesse é a presença de muitos macacos no recinto. Os animais de estimação eram criados soltos, sendo encontrados espalhados pela casa.

Em 1865 o casal de viajantes Louis e Elisabeth Agassiz, em visita a Manaus, ficaram hospedados na casa do Major Coutinho. Encontraram a residência sem mobília. Para dar um bom aspecto ao local, foram emprestadas cadeiras e mesas de um vizinho. A pobreza mobiliária se fazia presente até mesmo nas residências dos membros mais destacados da sociedade. Sobre o aspecto geral da cidade, afirmaram que ela era “[…] uma pequena reunião de casas, a metade das quais parece prestes a cair em ruínas”6. Após retornarem de uma viagem, ficaram instalados em um prédio que havia funcionado como secretariado de finanças. Ele era espaçoso, tinha várias portas e janelas. Um salão era usado como quarto e sala. Nos fundos ficavam penduradas as redes, as malas e as caixas. Do outro lado ficavam duas mesas de escrever, uma cadeira de balanço, uma de viagem e outros móveis. Os Agassiz, agora melhor acomodados, perceberam que essa mobília dava “[…] a esse canto do apartamento um certo ar de intimidade e o tornam mesmo bastante confortável”. A construção, apesar da grandeza, tinha as paredes sem reboque, com cumieiras descobertas e “[…] pavimentos de tijolos em que passeiam os ratos”7. Ao comentar sobre um baile a ser realizado na residência do Presidente da Província, notaram que apesar do pomposo título de Palácio, não passava de uma casa pequena sem maiores atrativos.


Tapuias em sua residência em Manaus. Albert Frisch, 1865. FONTE: Brasiliana Fotográfica/Instituto Moreira Salles.

Também são de 1865 dois registros feitos pelo fotógrafo alemão Albert Frisch. No primeiro temos uma família de tapuias na porta de sua casa em Manaus. Entre a numerosa família e a casa simples, de pau-a-pique, vemos uma esteira, absorvida pelo colono desde o início da colonização, fazendo a vez de cama; um banco, do lado de fora; e um tear mecânico onde estava trabalhando uma mulher. Em uma cidade ainda privada de maiores divertimentos, esse aparelho funcionava como objeto de trabalho e também de passatempo. O segundo registro mostra duas casas na região do Rio Amazonas. É uma paisagem bucólica quase inalterada, lembrando as casas descritas por Martius e Spix em 1819 e Baena em 1838.

Outros móveis faziam parte da mobília da casa do manauara entre os séculos XVII e XIX. O historiador Mário Ypiranga Monteiro os divide da seguinte forma: “baú, arca, rede de dormir e canastra. Suas posições na casa, a partir da sala de visitas, eram cativas, determinadas pelas necessidades práticas e não pelo bom gosto: baú na sala (e rede de dormir, não raro), arca na alcova (e rede de dormir), esteira na sala, na alcova e na casa de refeições; rede de dormir (essencial) na alcova e na varanda; canastra na casa de refeições ou num quarto a mais se houver”8. Ainda demoraria algum tempo para que a residência manauara ganhasse outro aspecto e uma mobília mais numerosa e refinada.

Encontramos indícios de mudanças em anúncios de jornais publicados no final do século XIX. Em 1877 o jornal Amazonas informava que na rocinha do Comendador Mesquita, localizada no bairro dos Remédios, estavam disponíveis para venda os seguintes objetos: “um bom piano, uma mobilia, uma meza elastica com vinte e dois palmos de comprimento, uma dita para escriptorio, duas bancas para quarto com gaveta, duas sacretarias, um espelho grande e doirado, dois theares, bancos envernisados, cabides, camas de lona, lavatorios e seus pertences, tamboretas com assento de palinha, dois oratorios, e outros objecto para o uzo domestico”9. Em um leilão de móveis realizado em 1890 foram vendidas “uma mobilia de mogno para sala, 2 cadeiras de balanço, seis cadeiras de varanda, 1 commoda, 1 toillet, 1 cama com colchão de molla, 1 manequim, um par de candieiros, um dito de castiçaes de vidro com pingentes, uma maquina de costura, um almofadão, uma bilheira, quatro bancos, um berço, bidet, uma cama de madeira, um lavatorio e outros objectos”10. Os móveis eram construídos por marceneiros profissionais, pelos alunos do Instituto de Educandos Artífices e também importados de outras Províncias e países.

E o banheiro, um dos locais mais importantes da casa? Mário Ypiranga nos informa que o manauara de baixa renda satisfazia suas necessidades às margens dos igarapés e nas áreas de mata, abundantes na Manaus dos primeiros séculos. Esse costume fez com que os banheiros fossem construídos fora da residência. Eram as famosas casinhas de madeira. Um anúncio de venda de uma casa em 1888 nos mostra que existia uma divisão entre o banheiro, para o asseio corporal, e a latrina, onde se faziam as necessidades: “Nesta typographia informa-se quem vende uma boa casa com bastantes accomodações para numerosa família: contende alem de cinco bons quartos, de dous grandes salões, da cozinha e varanda, um quintal regular todo plantado de arvores fructiferas, com poço, banheiro, latrina etc”11. Além da casinha existiam utensílios como o coronel, capitão, furriel, iamaru ou jamaru, cabungo, capitari e comadre. Quando esses objetos ficavam cheios de urina e fezes, eram recolhidos pelo tigreiros, escravos que tinham a função de despejá-los em locais distantes da área urbana. Os banheiros domésticos com latrinas e bacios de louça eram privilégio das classes mais abastadas12.

No Código de Posturas Municipais de 1848 ficou estabelecido que as edificações só poderiam ser erguidas após receberem licença da Câmara Municipal para que a obra ficasse alinhada à rua. As casas deveriam ser elegantes e seguir uma regularidade externa determinada pela Câmara. No Código de Posturas de 1872 encontramos um interessante artigo que determina que

Fica proibido de ora em diante, nas ruas dos Remédios, Boa-Vista, Espírito Santo, Marcílio Dias, Flores, Imperador, Brasileira, Manaus até o aterro, Henrique Martins, Cinco de Setembro, S. Vicente, Independência e Travessas que lhe são correspondentes, e em todas as praças, a edificação de casas cobertas de palha; sob a pena de demolir-se a obra por conta de quem a fizer e sujeito a multa de trinta mil réis ou oito dias de prisão”13.

Essa postura revela a tentativa de se modificar a aparência da cidade, dotando-a de características modernas. O artigo 2° da Postura de 1875 determina que ficava proibida a construção de casebres ou pequenos quartos dentro do alinhamento das ruas, praças e travessas sem que seus proprietários, antes, levantassem um muro simulando a fachada de uma casa. A pena era de 30$000 réis ou oito dias de prisão. Os Códigos publicados a partir de 1890, além de reafirmarem antigas proibições como a necessidade de autorização da Câmara para o início de qualquer construção, determinam que os prédios de alvenaria ou taipa que estivessem sem reboco deveriam ser rebocados e caiados dentro de seis meses, sob pena de multa de 30$000 réis ou 4 dias de prisão.

Vivia-se um novo período marcado por profundas transformações urbanas gestadas pela economia da borracha. Gestores e a elite local, visando atrair investimentos para a cidade, passam a buscar dotá-la de melhoramentos e apagar os vestígios de uma cultura local marcada pela simplicidade e vista como atrasada. De acordo com a historiadora Edinea Mascarenhas Dias,

A modernidade em Manaus não só substitui a madeira pelo ferro, o barro pela alvenaria, a palha pela telha, o igarapé pela avenida, a carroça pelos bondes elétricos, a iluminação a gás pela luz elétrica, mas também transforma a paisagem natural, destrói antigos costumes e tradições, civiliza índios transformando-os em trabalhadores urbanos, dinamiza o comércio, expande a navegação, desenvolve a imigração. É a modernidade que chega ao porto de lenha, com sua visão transformadora, arrasando com o atrasado e feio, e construindo o moderno e belo”14.

Antigo Palacete Garcia. Gravura de 1885. FONTE: NERY, Frederico José de Sant'Anna. Le Pays des Amazones, 1885, p. 309.

Palacetes e casarões, residências com certa imponência, surgem timidamente na cidade a partir da segunda metade do século XIX. O Palacete Garcia foi um dos primeiros. Com construção iniciada por volta de 1860, seria a residência de Custódio Pires Garcia, Capitão da Guarda Nacional. Foi adquirido pelo Governo da Província em 1867 para abrigar diferentes repartições públicas, sendo a Polícia Militar a que mais tempo o ocupou. Foi concluído em 1874. Atualmente funciona como Centro Cultural Palacete Provincial, na Praça Heliodoro Balbi (da Polícia). O Palacete de Leonardo Ferreira Marques, o Barão de São Leonardo, funcionou posteriormente como Asilo Orfanológico Elisa Souto, Museu Botânico do Amazonas e Instituto Benjamin Constant, inaugurado em 1894. Está localizado na rua Ramos Ferreira. Data de 1899 o belíssimo Palacete Nery, entre a Avenida Joaquim Nabuco e a rua dos Andradas. Antiga propriedade da família Nery, foi projetado em estilo Neoclássico pelo arquiteto e engenheiro italiano Filinto Santoro.

A casa manauara dos primeiros séculos, no geral, era simples, construída de taipa, coberta com palha ou folhas de palmeira e pobremente mobiliada. Existiam algumas exceções, como os sobrados e palacetes de ricos comerciantes que começaram a surgir na segunda metade do século XIX. Mas mesmo nessas nobres residências faltava conforto, que só seria plenamente encontrado ao final de 1800, quando a economia gomífera começou a modificar o espaço urbano, o cotidiano, a moda e os modos da sociedade.


NOTAS:


1 ALGRANTI, Leila Mezan. Famílias e vida doméstica. In: NOVAIS, Fernando A. História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América portuguesa. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 111.

2 FERREIRA, Alexandre Rodrigues. Diário da Viagem Filosófica pela Capitania de São José do Rio Negro com a Informação do Estado Presente. CIFEFIL, Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos, 2005, p. 355.

3 SPIX, F., Johann Baptist von. Viagem pelo Brasil (1817-1820). Tradução de Lúcia Furquim Lahmeyer. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2017, p. 196.

4 BAENA, Antônio Ladislau Monteiro. Ensaio corográfico sobre a província do Pará. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004, p. 289.

5 WALLACE, Alfred Russel. Viagens pelo Amazonas e Rio Negro. Notas de Basílio de Magalhães. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2004, p. 214.

6 AGASSIZ, Jean Louis Rodolph. Viagem ao Brasil 1865-1866. Tradução e notas de Edgar Süssekind de Mendonça. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000, p. 196.

7 Ibidem, p. 245.

8 MONTEIRO, Mário Ypiranga. O recheio das casas nos séculos XVII a XIX. 6° ed. Manaus: Secretaria de Estado de Cultura, Turismo e Desporto, n° 88, novembro de 2002.

9 Amazonas, 16/01/1877, p. 04.

10 Amazonas, 03/07/1890, p. 03.

11 Jornal do Amazonas, 04/02/1888, p. 04.

12 MONTEIRO, Mário Ypiranga. O Tigreiro. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1997.

13 SAMPAIO, Patrícia Melo (Org.). Posturas municipais, Amazonas (1838-1967). Manaus: EDUA, 2016.

14 DIAS, Edinea Mascarenhas. A Ilusão do Fausto – Manaus 1890-1920. Manaus: Editora Valer, 2° Ed, 2007, p. 29.

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