segunda-feira, 27 de junho de 2022

Manaus no tempo dos ingleses

Bosque Municipal, ponto de encontro da colônia inglesa em Manaus. Foto de 1927. FONTE: Fanpage Manaus Sorriso.

Não tem como falar da História de Manaus sem fazer referência à presença e influência inglesa entre o final do século XIX e as primeiras décadas do XX. Nesse período a cidade era o principal polo econômico da Amazônia e um dos mais importantes centros comerciais do mundo, enriquecida graças à exploração da goma elástica. Os ingleses, assim como outros estrangeiros, aqui se estabeleceram em busca de auferir lucros com a corrida da borracha. Deixaram suas marcas na economia, na arquitetura, na moda e nos costumes.

O mundo vivia sob influência política e econômica do poderoso Império Inglês, que estava no auge de seu crescimento industrial, possibilitado pelo investimento do capital acumulado durante a expansão marítima entre os séculos XVI e XVIII na indústria. As grandes potências realizavam investimentos onde era possível adquirir matérias-primas para suas indústrias e onde estavam localizados mercados consumidores para seus produtos manufaturados. O capital inglês, registra o historiador Eric Hobsbawn em A Era do Capital (1996), foi responsável por desenvolver a infraestrutura da América do Sul e de outros continentes. Surgiram ferrovias, portos e serviços, explorados por longos anos por empresas sediadas em Londres. O pacto colonial já havia deixado de ser uma realidade, mas a dependência em relação às metrópoles continuaria nessa nova fase de expansão do capitalismo, que dominaria os mais distantes rincões do mundo.

A primeira ação inglesa no Amazonas se deu por volta de 1860. O governo inglês pressionou o Império Brasileiro para que ele abrisse os portos do Rio Amazonas às nações estrangeiras, fechados desde o período Colonial. Após longos debates, foi lavrada em 07 de setembro de 1867 a lei que abria os portos do Rio Amazonas às grandes potências, favorecendo principalmente a Inglaterra, que em pouco tempo passou a dominar a navegação na região. Conforme estudos do historiador amazonense Antonio José Souto Loureiro, autor de O Amazonas na Época Imperial (1989, p. 154-155), em 1871 empresários ingleses compram a Companhia de Comércio e Navegação do Amazonas, fundada pelo Barão de Mauá em 1852, a transformando na The Amazon Steamship Navigation Company Limited. A Companhia Fluvial do Alto Amazonas também teve seus direitos transferidos para aquela companhia em 1874.

Com a abertura dos portos, os produtos ingleses invadiram os mercados locais. Nos jornais amazonenses encontramos aos montes anúncios de chapéus de sol, camisas, botas, sapatos, máquinas de costura, instrumentos musicais, armas, relógios, estopa, conservas, geleias, bebidas, manteigas e outras mercadorias sendo vendidos por casas comerciais de Manaus. Enfatizava-se, em cada informe, a excepcional qualidade que possuíam. Em contrapartida, a exportação de produtos animais e vegetais, com destaque para a borracha, utilizada nas indústrias de revestimento de cabos elétricos e automobilística, teve largo crescimento, possibilitando, a partir de 1880, um surto de desenvolvimento jamais antes visto na região. Isso só foi possível, deve-se lembrar, graças à criação, em 1839, pelo inventor norte-americano Charles Goodyear (1800-1860), do processo de vulcanização, no qual o uso do calor e do enxofre aumentou a durabilidade da borracha, impedindo que ela se degradasse pela ação climática. Os impostos arrecadados através da exportação foram aplicados, em diferentes administrações estaduais e municipais, na modernização de Manaus.

Membros da colônia inglesa em Manaus. Foto do início do século XX. FONTE: SCHWEICKARDT, Júlio César. Ciência, nação e região: as doenças tropicais e o saneamento no Estado do Amazonas (1890-1930). Tese de Doutorado, Fiocruz, 2009.

Manaus, agora transformada no principal centro financeiro da Amazônia, necessitava de uma série de melhorias. Faltava um bom sistema de comunicação, um porto flutuante, energia elétrica e abastecimento regular de água e esgoto. Como vinha ocorrendo em várias partes do mundo, o Estado, em troca da implantação desses serviços, concedeu o direito de exploração a empresas estrangeiras, leia-se inglesas. Antônio Loureiro, em A Grande Crise (2008, p. 95-97), nos dá um panorama dessas concessões: Em 1895 é fundada a The Amazon Telegraph Company Ltd., concessionária da comunicação por cabo fluvial entre Manaus e Belém e, por submarino, entre Belém e a Europa. É formada em 1909 a Booth Steamship Company, de navegação internacional entre a Europa e os Estados Unidos. A The Amazon Steamship Navigation Company Ltd. é transformada em 1911 na The Amazon River Steamship Company Ltd. Em 1902 é fundada a The Manáos Harbour Limited, responsável pela construção e exploração do Porto de Manaus, com uma concessão de exploração por 60 anos. Também foi responsável pela construção do novo prédio da Alfândega, erguido entre 1906 e 1909. A concessionária do serviço de abastecimento de água e esgotos, Manáos Improvements Ltd., foi fundada em 1906. O mercado e o matadouro público passaram a ser administrados pela The Manáos Markets and Slaughterhouse Ltd. O serviço de bondes elétricos foi concedido à The Manáos Railway Company em 1895, mesmo ano em que o serviço de energia elétrica é concedido à The Manáos Eletric Lighting Company. Em 1909 bonde e energia elétrica passaram a ser explorados pela The Manáos Tramways and Light Company Ltd.

O Governo esperava que as concessões garantissem, além da arrecadação e do melhoramento técnico da cidade, o bom funcionamento desses serviços para os moradores. No entanto, a realidade nem sempre foi essa. Várias vezes o Estado e a população tiveram que entrar em confronto com as concessionárias inglesas por conta do péssimo serviço oferecido, pelos abusos no aumento das taxas e, principalmente, pela pouca atenção aos interesses locais. A Manáos Harbour, por exemplo, desde o início oferecia um serviço muito abaixo do esperado. Em 07 de agosto de 1904 assim se manifestava o Jornal do Commercio a seu respeito: “Os atropellos que ao commercio desta praça tem imposto a archi-poderosa empreza que houve carta testamentaria para espraiar seus dominios no littoral desta cidade, são notorios já e patentes e formam um longo rosario de indestrutiveis e irritantes desmandos”. Em 1913 o escritório da Manáos Improvements foi destruído pela população, enfurecida pelos constantes e exorbitantes aumentos. A Manáos Markets foi encampada durante a Revolução de 1924. A Manáos Tramways and Light Company foi encampada pelo Estado em 1950. O porto foi a concessão inglesa que mais durou, encampado pelo Estado apenas em 1967.

Em 06 de novembro de 1901 é instalada na antiga Rua Doutor Constantino Nery, atual Monteiro de Souza, uma agência do London and Brazilian Bank Ltd. Posteriormente é aberta uma agência do The London & River Plate Bank Ltd. Os dois são fundidos em 1923, dando origem ao London Bank, com agência na rua Guilherme Moreira. A economia do Estado do Amazonas, que àquela altura já representava uma das principais arrecadações do país, circulava por essas instituições. Só para termos uma ideia em valores, em 1910 a cotação da borracha atingiu, de acordo com Samuel Benchimol em Amazônia – Formação Social e Cultural (1999, p. 209), a cifra de 665 libras por tonelada, sendo exportadas 38.206 toneladas. Consultando o Annuario de Manáos (1913-1914), encontramos os nomes de algumas das mais afamadas e poderosas casas exportadoras inglesas estabelecidas em Manaus: Adelbert H. Alden, Ahlers & Cia, De Lagotellerie & Cia, General Rubber Co. Of Brasil, W. Peters & Cia e Zarges, Ohliger & Cia.

Vieram para a cidade engenheiros, médicos, funcionários públicos, banqueiros, empresários e investidores que construíram carreiras sólidas e pequenas fortunas. O médico Hermenegildo Lopes de Campos, em sua Climatologia médica do Estado do Amazonas (1988, p. 101), calculou que em 1903 residiam em Manaus de 70 a 75 ingleses. Destacamos o Sr. Stanley Sutton, gerente da Manáos Harbour; Arthur James Billet, adjunto do Contador da Manáos Harbour, George Clawson Browne, funcionário da mesma empresa; Mr. Forbes e Mr. Turner, gerente e diretor da Manáos Tramways and Light Company respectivamente; Edmund Compton, sócio da casa comercial Compton, Meech & Cia; F. Higson, sócio da firma Higson & Fall; Fanny Hughes de Oliveira, esposa do Coronel Manoel Dias de Oliveira, corretor da Junta Comercial do Amazonas. O médico canadense Harold Howard Shearme Wolferstan Thomas (1875-1931), do laboratório da Liverpool School of Tropical Medicine, fundado em Manaus em 1910, atendia cidadãos ingleses e alemães. Caminhando pelo do Cemitério de São João Batista encontramos alguns túmulos de membros da colônia. Vejamos a trajetória de Alfred John Toone (1882-1906), impressa em uma bela lápide de granito negro: Filho mais velho de Charles e Sarah Toone, nasceu no município de Liscard, na Inglaterra, tendo trabalhado por oito anos no escritório de Liverpool da Booth Steamship Company, posteriormente vindo trabalhar no Brasil. Faleceu 5 meses depois de deixar a Inglaterra, em 16 de fevereiro de 1906, possivelmente vítima de alguma doença tropical. Seu túmulo foi uma homenagem da empresa pelos serviços prestados. Muitos deles se relacionavam com a comunidade local através da presença em outros clubes, como o Luso Sporting Clube, dos portugueses, que admitia como sócios cidadãos ingleses e de outras nacionalidades.

Manáos Athletic Club. Foto de 1913. FONTE: Acervo do pesquisador Gaspar Vieira Neto.

Diferentes esportes praticados pelos ingleses foram introduzidos na cidade. Partidas de futebol já eram realizadas em Manaus desde o início do século XX. Eles fundaram em 1908 um clube de futebol, o Manáos Athletic Club, constituído unicamente por súditos da velha Albion. O corpo administrativo desse clube eleito em 1911 nos dá uma ideia dessa composição: “Presidente, W. Robilliard; secretario, T. C. Shaw; thesoureiro, A. H. Samuels; capitain, E, Compton; director-fiscal, W. Baumann; vogaes, Aimers, Gordon. Higson, Douglas, Dening”. Por volta de 1900-1904 foram fundados o Cricket Club e o Manáos Tennis Club. Todos esses esportes eram praticados em um local de uso exclusivo, o aristocrático Bosque Municipal, também conhecido como Bosque dos Ingleses, localizado na antiga Estrada de Flores, atual Avenida Constantino Nery. O Jornal do Commercio informava em edição de 17 de abril de 1904 que “No bosque municipal haverá hoje jogo de cricket pelas turmas que no domingo passado estiveram ali disputando um match”. Eles comemoravam com grandes festividades as principais datas do calendário britânico, com especial destaque para os aniversários de membros da Família Real. Os eventos aumentaram consideravelmente durante a Primeira Guerra Mundial (1914-1918), ocasião em que eram angariados fundos para a Cruz Vermelha.

Os memorialistas lembram com saudosismo da Manaus dos ingleses. Agnello Bittencourt (1876-1975), renomado professor e historiador amazonense, pontua, em Fundação de Manaus – Pródromos e Sequências (1969, p. 70), que nesse período, apesar do clima tropical, os membros da elite vestiam-se seguindo o rigor da moda europeia, em especial a francesa e a inglesa, com “as mulheres espartilhadas e vestidas até aos pés em pesadas sêdas; os homens, transpirando em seus fraques, croisés e casacas, muitas vêzes talhados em Londres, cartola ou chapéu-côco, colête, peito engomado e colarinho alto sob a forte canícula ou nos animados bailes, tão frequentes nos palacetes particulares, em suntuoso estilo “fin-de-siècle”. Os homens procuravam estar sempre apresentáveis, vestindo belíssimos ternos de linho branco H.J. inglês, comercializados nas melhores lojas da cidade. Desde o século XIX a língua inglesa era ensinada nos estabelecimentos de educação e cobrada nos concursos públicos.

Restam hoje alguns exemplares de arquitetura genuinamente inglesa. O primeiro é o Porto Flutuante, popularmente conhecido como Roadway. É o maior porto flutuante do mundo, acompanhando as cheias e as vazantes do Rio Negro. Na mesma região encontra-se a Alfândega, pré-fabricado na Inglaterra e projetado pelos arquitetos Edmund Fisher, H. M. Fletcher e G. Pinkerton. Nas palavras do historiador paraense Leandro Tocantins, em O Rio Comanda a Vida (2000, p. 234), é um edifício “vistoso, arquitetura eclética, sendo uma reprodução de prédio inglês comum nas ruas londrinas de 1900”. Próximo dali, entre a Travessa Vivaldo Lima e a Rua Taqueirinha, estão o prédio do antigo Museu do Porto, construído em 1903 para abrigar a usina de força do cais do porto; e a antiga Administração do Porto. Assim como a Alfândega, foram construídos em estilo inglês, com tijolos aparentes.

O tempo dos ingleses se esvaiu juntamente à bancarrota que atingiu a região amazônica entre 1913-1920. A borracha produzida nos seringais planejados das colônias inglesas e holandesas no sudeste asiático, fruto do contrabando por eles feito por volta de 1870, superou a produção nativa. Empresas fecharam, serviços foram paralisados, obras deixaram de ser construídas. Parte daqueles que se aventuraram no passado deixando a Terra da Rainha em direção ao “Inferno Verde”, rumaram de volta para Londres, Liverpool, Manchester e outras cidades de médio e pequeno porte, levando, com certeza, lembranças da vida nos trópicos. O capital inglês, que por mais de duas décadas foi aqui aplicado, agora seria direcionado para a Ásia. Terminava assim a saga inglesa em Manaus.


FONTES:


Annuario de Manáos, 1913-1914. Acervo particular do pesquisador Ed Lincon Barros Silva.

Correio Sportivo, 12/03/1911.

Jornal do Commercio, 07/08/1904.

Jornal do Commercio, 17/04/1904.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


BENCHIMOL, Samuel. Amazônia – Formação Social e Cultural. Manaus: Editora Valer, 1999.

CAMPOS, Hermenegildo Lopes de. Climatologia médica do Estado do Amazonas. Manaus: Associação Comercial do Amazonas, 1988 (fac-similado, 1909).

BITTENCOURT, Agnello. Fundação de ManausPródromos e Sequências. Manaus: Editora Sérgio Cardoso, 1969.

HOBSBAWM, Eric J. A Era do Capital: 1848-1875. 5° ed. rev. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1996.

LOUREIRO, Antonio José Souto. O Amazonas na Época Imperial. Manaus: T. Loureiro, 1989.

___________________________. A Grande Crise. 2° ed. Manaus: Editora Valer, 2008.

TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida – uma interpretação da Amazônia. 9° ed. rev. Manaus: Editora Valer/Edições Governo do Estado, 2000.

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