Não
existe uma data que carregue tantos sentimentos como o Dia de
Finados, ponto alto do calendário cristão. Todos os anos, no mês
de novembro, os cemitérios públicos e particulares ao redor do
mundo enchem-se da mais terna saudade, da mais pura devoção
religiosa e da alegre nostalgia que aflora com
as
lembranças dos que já partiram. A morte, que a todos espreita e
espera, faz com que realizemos, no dia 02 de novembro, uma profunda
reflexão sobre nossa trajetória e as daqueles que jazem em outro
plano.
Qual
a origem dessa data? Desde os primeiros tempos do Cristianismo era
costume rezar pelos mortos nas catacumbas, que naquela época
cumpriam a função de locais de refúgio das perseguições
religiosas e também de culto. O teólogo e filósofo Santo Agostinho
de Hipona, no século V, no texto O
cuidado devido aos mortos,
registrou que a Igreja Católica já possuía em seu calendário uma
comemoração geral pelos fiéis defuntos. Ele explica que a oração
aos mortos deveria ser praticada pelos cristãos, e que ela só seria
proveitosa àqueles que tiveram uma vida exemplar em Cristo. Homens e
mulheres deveriam viver uma vida exemplar para gozar, na morte, da
piedade dos vivos. Mas como saber quem teve uma vida de fato voltada
para Cristo, morrendo dentro dos preceitos da Igreja? Na dúvida,
Agostinho afirma que “(…)
convém apresentar súplicas a todos os regenerados, para que não
omitemos alguém entre aqueles que possam se servir desses
benefícios”.
O
historiador medievalista francês Jean-Claude Schimitt, em estudo
sobre os mortos na sociedade Medieval, afirma que a data foi
oficializada em 02 de novembro, um dia após o Dia de Todos os
Santos, pelo Abade Odilon de Cluny, o Santo Odilon (962-1049). Ela
começou a ser melhor documentada a partir do ano 1030. Alban Butler
(1710-1773), hagiógrafo inglês do século XVIII, nos explica que
essa celebração é marcada por “esmolas, orações e sacrifícios
para o alívio das almas sofredoras no Purgatório”.
Na
Doutrina Cristã Católica, o Purgatório é um lugar localizado
entre o Céu e o Inferno para onde vão as almas daqueles que, para
atingir o Paraíso, necessitam passar por um processo de purificação
marcado por provações. As orações dos vivos, recomendadas pela
Igreja, amenizaria a passagem por esse local intermédio entre a
perdição e a glória eterna. De acordo com o historiador
medievalista francês Jacques Le Goff, essas orações pelos mortos
foram a gênese da criação do Purgatório: “Foi, parece, pela
crença dos primeiros cristãos na eficácia de suas preces pelos
mortos – como testemunham as inscrições funerárias, as fórmulas
litúrgicas, e depois, no começo do século III, a Paixão
de Perpétua,
primeira das representações espacializadas
do futuro Purgatório – que começou um movimento piedoso que
deveria conduzir à criação do Purgatório”.
O
Dia de Finados, dessa forma, surge através de um sentimento de união
entre vivos e mortos, representando um novo estágio na relação
entre ambos, pois até a Antiguidade os mortos ficavam bem distantes
da população, enterrados o mais distante possível das áreas
urbanas, de forma a não prejudicar espiritualmente o ambiente dos
vivos. Nesses distantes cemitérios, na época do Império Romano,
foram enterrados os primeiros mártires do Cristianismo. No lugar de
suas sepulturas, os cristãos passaram a erguer igrejas, e passaram a
querer serem enterrados no interior desses templos, informa o
historiador francês Philippe Ariès, autor do clássico História
da Morte no Ocidente
(1989). Com o passar do tempo e o crescimento urbano, as cidades
passaram a absorver os subúrbios onde ocorriam os sepultamentos. Os
mortos, dessa forma, passaram a fazer parte, de forma mais direta, do
cotidiano dos vivos.
A
prática de enterrar os mortos dentro e ao redor das Igrejas
espalhou-se pelo Ocidente e outras regiões, chegando aos mais
distantes rincões conquistados pelas potências coloniais da época,
Portugal e Espanha. Elas introduziram a comemoração de Finados,
incorporando um novo rito no cotidiano das populações locais.
Nos
primórdios de Manaus, entre os séculos XVII e XVIII, quando era uma
simples comunidade de indígenas e soldados portugueses localizada
nos arredores da Fortaleza de São José da Barra do Rio Negro, os
nativos enterravam seus mortos no cemitério que tinha seu núcleo na
atual Praça Dom Pedro II, se estendia pela antiga Rua de São
Vicente e chegava até o Forte da Barra, nas imediações do Porto.
Os colonizadores, por sua vez, eram enterrados dentro da Igreja de
Nossa Senhora da Conceição e em seu largo. Documentos do século
XIX indicam que a Ilha de São Vicente era outro local utilizado como
cemitério. No início do século XIX surge um novo local de enterro,
a Igreja de Nossa Senhora dos Remédios e o terreno localizado atrás
desta, batizado de Cemitério dos Remédios.
Esses
espaços desempenharam suas funções até 1850, quando o Governo da
Província decide estabelecer – em nome da saúde pública e de uma
nova mentalidade – um cemitério público na cidade e extinguir os
enterros tradicionais. Com dificuldades materiais para executar a
obra, foi cercado em 1854 o antigo Cemitério dos Remédios, que
funcionaria de maneira provisória até a abertura de um novo. Com
isso, foram proibidos os enterros nos templos e seus arredores. O
geógrafo e historiador Agnello Bittencourt, em texto publicado no
Boletim
da Associação Comercial do Amazonas (1956),
lembra que o Cemitério dos Remédios ficava onde está localizado o
antigo prédio da Faculdade de Farmácia e Odontologia, se
prolongando pela rua Leovigildo Coelho, onde ficava o seu cruzeiro.
Uma
grave epidemia de febre amarela em 1856, fez com que o Governo
encerrasse os enterros no Cemitério dos Remédios. Foi aberto, nessa
ocasião, na antiga Estrada da Cachoeira, atual Avenida Epaminondas,
o Cemitério de São José. Por décadas as romarias de Finados se
dirigiram a essa necrópole. Em 1869 um redator do jornal O
Catechista
registrou que viu nele, desde o dia 01, “Uma infinidade de luzes
simetricamente dispostas sobre as sepulturas dos finados, parte das
quais se achavam vestidas de crepe, e ornadas de flores
sentimentais”, além de uma “[…] multidão de pais, amigos e
parentes” que iam deixar lágrimas de saudade sobre os túmulos
daqueles que lhes foram caros em vida. Somava-se a esse cenário
melancólico a oração fúnebre do Padre Manoel Ferreira Barreto,
capelão do cemitério, que “causava a todos que chegavam a porta
daquela habitação mortuária, uma emoção difícil de descrever”.
Em
1872 as romarias tiveram início no dia 01. Para o articulista do
jornal Amazonas,
o cemitério era o local de nivelamento social, com o mais rico dos
homens sendo igualado ao mais pobre: “É que ali naquela sombria
igualdade cifram-se todas as vaidades mundanas; alli acabam-se as
dissenções e ódios de que muitas vezes se nutre a fragilidade
humana na breve passagem que faz por este mundo sáfaro até chegar á
eternidade; ali não ha distinção nem de raça nem de classes:
todos são – pó, cinza, terra e nada!”. No ano de 1879 é
inaugurado, no bairro de São Raimundo, o Cemitério dos Variolosos,
utilizado exclusivamente para o sepultamento de vítimas da varíola,
que desde 1870 assolava a cidade. Em 1888 esse campo santo foi aberto
ao público em geral, ganhando o nome de Cemitério de São Raimundo.
O
Dia dos Finados de 1885 foi marcado por forte emoção, com as
celebrações tendo início no dia 01. Os Alunos do Instituto de
Educandos Artífices cantaram o Libera-me, enquanto o Reverendo
Vigário Geral Pe. Raimundo Amâncio de Miranda realizava as orações
e encomendas pelas almas dos mortos. No dia 02, distante do Cemitério
de São José, foi realizada comemoração no bairro de São Raimundo
pela alma “[…] dos que, vítimas da epidemia que a pouco assolou
esta capital, repousam no cemitério dos variolosos”. O Libera-me
foi tocado pelos Reverendos. Padre Amâncio e Coutinho, com ajuda do
Capitão Fleury. De acordo com o articulista do Jornal
do Amazonas, “A
concorrência foi enorme, e a dor foi sincera”.
Em
1891 os cemitérios de São José e de São Raimundo já não
possuíam mais condições de permanecer funcionando. O primeiro por
já fazer parte da área urbana, oferecendo perigo para a saúde
pública e por já não dispor mais de espaço. O segundo, além de
não possuir mais espaço, tinha um terreno que dificultava a
decomposição dos cadáveres. O então Governador do Estado do
Amazonas, Eduardo Gonçalves Ribeiro, através do Decreto N° 95, de
02 de abril de 1891, determinou o fechamento desses cemitérios. Em
05 de abril foi inaugurado, em sessão solene, o Cemitério de São
João Batista, no antigo bairro do Mocó, hoje bairros de
Adrianópolis (Vila Municipal) e Nossa Senhora das Graças, na zona
Centro-Sul da cidade. Ele já estava sendo idealizado desde o final
da década de 1880. Foi uma das grandes obras modernizadoras erguidas
no Governo de Eduardo Ribeiro.
Foi
pelas mãos do Superintendente Adolpho Guilherme de Miranda Lisboa, à
frente da administração municipal entre 1902 e 1907, que o
Cemitério de São João Batista recebeu grandes melhoramentos. Em
1904 ele autoriza sua reconstrução. No ano seguinte, manda ser
construído o muro com portões e gradis de ferro, importados da
Escócia. Em 1906 é concluída a nova capela, em estilo neogótico.
No portão de entrada foi fixada a expressão latina ‘Laborum
Meta’, que significa fim ou meta dos trabalhos. Agora em grande
estilo, transformara-se de fato em cemitério da elite manauara, que
passaria a atestar seu poder através de túmulos e jazigos
monumentais, obras esculpidas em mármore e assinadas por marmorarias
e artistas de renome. No Dia de Finados de 1908 o Jornal do Commercio
noticiou seu embelezamento: “Tivemos ocasião de admirar ali muitas
obras novas e bonitas, recém-colocadas, simples, sólidas e dignas
de apreço, pela sua boa confecção, pelo seu bem-acabado, todas
executadas pelo exímio marmorista Cesare Veronese, proprietário da
conhecida e premiada marmoraria Ítalo-Amazonense,
desta praça, que cada ano mais se desenvolve em crescente progresso,
afirmando assim os foros simpáticos que tem de ótimo interprete da
arte a que se dedica, com tanto interesse”. Anos mais tarde,
distante do luxo do cemitério da Vila Municipal, era aberto, por
volta de 1904-1908, o Cemitério de São Francisco, no bairro Colônia
Oliveira Machado.
A
Prefeitura cuidava da organização dos cemitérios. As quadras eram
limpas, a vegetação era aparada, o número de bondes para fazer o
transporte dos visitantes era ampliado e o de soldados da força
policial do Estado para fazer a segurança. Os jornais publicavam
inúmeros anúncios de venda de flores, cruzes, velas, imagens
sacras, instalações elétricas especiais e outros elementos
decorativos para túmulos e jazigos. Para as comemorações de 1909,
a Casa Loyo e Paredes anunciava no Jornal do Commercio ter recebido
“o maior e mais completo sortimento de coroas mortuárias”. Em
1920 A The Manáos Tramways and Light Company encarregava-se “de
preparar instalações elétricas nas sepulturas, e tinha um grande
estoque de cruzes”. Em frente aos cemitérios eram instaladas
barracas para a venda de alimentos e bebidas. Não se ia ao cemitério
de qualquer forma. Existia uma indumentária tradicional para o Dia
de Finados. O antropólogo e historiador Thales Olympio Góes de
Azevedo, na obra Ciclos
da vida: ritos e ritmos (1987),
informa que as mulheres usavam roupas pretas e roxas combinadas com
um véu branco que cobria o rosto. Os homens utilizavam roupas
escuras, cinzas e brancas, com fumo no braço direito ou na lapela.
Essas cores eram associadas à pureza da alma, à morte e ao luto.
As
visitas tinham início pela manhã. Milhares de pessoas se dirigiam
aos cemitérios da cidade, São João Batista, São Raimundo, São
José e São Francisco. Engana-se quem imagina um ambiente de ordem e
calmaria, como atualmente a ocasião pede. Entre lágrimas e orações,
abundavam as beberagens, as comilanças, as conversas, os namoros, as
gargalhadas, a correria de crianças brincando entre as quadras e,
sempre que houvesse oportunidade, o furto de alguma cruz, vaso ou
metal com valor de mercado. A sociabilidade era tão intensa que, no
Regulamento
dos Cemitérios Públicos do Estado do Amazonas
(1892), estabeleceu-se que “É proibido fazer-se do cemitério
lugar de recreio”. Apesar da medida, a morte, parafraseando o
historiador João José Reis, seguia sendo uma festa. A primeira vez
que os manauaras não puderam visitar os cemitérios foi durante a
pandemia de Gripe Espanhola, em 1918. O Jornal do Commercio publicou,
para a tristeza da população, que “Em virtude da terrível
epidemia que lavra entre nós, não haverá, hoje, como nos anos
anteriores, romarias às necrópoles desta capital”. Em 2021, com a
pandemia de Covid-19, ocorreu o mesmo. Não poder velar, enterrar em
vala comum, não visitar e não prestar homenagens causa uma ruptura
dolorosa, pois esses ritos fúnebres estão há séculos arraigados
em nosso cotidiano. Ao final de 2021, a normalidade retornou.
No
final da década de 1930 o antigo Cemitério de São José deu lugar
à sede do Atlético Rio Negro Clube. O Cemitério de São Raimundo
foi arrasado no mesmo período, sendo construído em seu lugar,
décadas mais tarde, a Escola Estadual Marquês de Santa Cruz. Em
1934 é inaugurado nesse bairro o Cemitério de Santa Helena. A
partir da década de 1960 os cemitérios de São João Batista, Santa
Helena e São Francisco já estavam sem espaço, passando a receber
enterros apenas em jazigos perpétuos. Foram construídos, na década
seguinte, o Cemitério de Nossa Senhora Aparecida e o Cemitério
Parque de Manaus, também conhecido como Cemitério Parque Tarumã.
Este último foi uma novidade na época, seguindo novos padrões de
enterramento, sem jazigos convencionais, apenas com placas de
identificação e um parque florido seguindo o estilo
norte-americano. Era uma nova mentalidade em relação à morte, com
busca pela praticidade e a economia de tempo e dinheiro.
Hoje
as romarias irão em direção às necrópoles de São João Batista,
São Francisco, Nossa Senhora Aparecida, Parque de Manaus (Parque
Tarumã) e Santo Alberto. Os antigos simbolismos, como o uso de
determinadas roupas, foram abandonados. Mas os sentimentos mais
puros, a saudade, a tristeza e a alegria, e as virtudes mais caras, a
fé, a esperança e a caridade, continuam a tomar conta das quadras e
alamedas desses lugares de memória, arte e cultura incríveis que
são os cemitérios.