Certa
vez, de passagem por Manaus em 1849, o naturalista britânico Alfred
Russel Wallace (1823-1913) registrou que a fofoca era um dos
passatempos preferidos de seus habitantes. Depois das obrigações
religiosas nos domingos, escreve, “[…] conforme é moda ali, é a
ocasião própria para fazer visitas, indo uns às casas dos outros,
para palestrar, tendo como assunto principal da conversação os
escândalos, que se acumularam durante a semana”. Ninguém estava
imune aos mexericos, que atingiam dos mais humildes às famílias
mais benquistas, o que fez Wallace afirmar que “Os sentimentos
morais em Barra estão reduzidos ao mais baixo grau de decadência
possível, mais do que em qualquer outra comunidade civilizada”
(Wallace, Alfred Russel. Viagens pelo Amazonas e Rio Negro,
2004, p. 215-216).
O discurso dos viajantes, esses agentes da modernidade no século XIX, lido de forma pormenorizada, revela tensões socioculturais entre o velho e o "novo". Conseguimos visualizar, nas falas eurocêntricas, práticas culturais arraigadas e formas de sociabilidade características de sociedades - no nosso caso, indígenas - onde a oralidade era a principal forma de comunicação, sendo vista, junto de outros elementos como a mestiçagem, como um entrave no desenvolvimento socioeconômico (Costa, Hideraldo Lima da. Tensões socio-culturais na Manaus de meados do século XIX - discurso dos viajantes. Amazônia em Cadernos, 1998). Ao descrever pejorativamente o passatempo dos manauaras, Wallace nos legou a imagem de uma sociedade em que a língua portuguesa não estava plenamente consolidada, predominando, mesmo após a introdução da imprensa, a tradição oral.
Fofoca,
substantivo feminino, de acordo com o Dicionário Priberam,
é o “Ato de querer saber para ir contar a outrem e fato ou coisa
contada em segredo, sem conhecimento do (s) visado (s) ou sem
conhecimento real ou efetivo” (Dicionário
Priberam,
s. d.). O disse me disse, o mexerico, o boato, a futrica, o falatório
e a difamação fazem parte da história da humanidade desde que
o homem desenvolveu a capacidade de se comunicar foneticamente.
Fofocas as mais variadas movimentaram povoados, vilas, reinos e
impérios. A importância dessa prática foi muito bem avaliada pelos sociólogos Norbert Elias e John L. Scotson no livro Os Estabelecidos e os Outsiders, para quem "A fofoca, em outras palavras, não é um fenômeno independente. O que é digno dele depende das normas e crenças coletivas e das relações comunitárias" (Elias, Norbert; Scotson, John L. Os estabelecidos e os outsiders: sociologia das relações de poder a partir de uma pequena comunidade. Trad. Vera Ribeiro. 2000, p. 121).
Gilberto de Mello Freyre, em seu clássico estudo sobre a
sociedade patriarcal brasileira, cita a existência, nos séculos
XVIII e XIX, dos recolhedores de fatos, conhecidos por “emporcalhar
brasões ou nomes respeitáveis”, pois anotavam e divulgavam “[…]
os preconceitos de branquitude e de sangue nobre; desencavava-se
alguma remota avó escrava ou mina; ou tio que cumpria sentença; avô
que aqui chegara de sambenito. Registravam-se irregularidades sexuais
e morais de antepassados. Até mesmo de senhoras” (Freyre,
Gilberto de Mello. Casa
Grande & Senzala,
2003, p. 23).
Algo
parecido existiu na Manaus de 1800. O historiador Mário Ypiranga Monteiro
faz referência,
na obra Fundação de Manaus,
ao homem da matraca, tipo
popular dos tempos do Lugar da Barra que ganhava a vida anunciando
leis e decretos da câmara municipal e do reino, festas religiosas e
profanas e qualquer acontecimento cuja divulgação fosse do
interesse dos contratantes. Ele, descreve Ypiranga, “Deveria ser um
patusco, falastrão a valer, expedito no verbo, desembaraçado e
cínico, bom trotador”. Em uma comunidade pequena, de pouco mais de
cinco mil habitantes, “ia pelas ruas da vila barulhando a matraca,
alertando ouvidos para algum escândalo, convidando as gentes a
reunir-se” (Monteiro,
Mário Ypiranga. Fundação
de Manaus, 1994, p. 149).
Era
assim que as notícias corriam pela cidade, pois ainda não existiam
jornais. A imprensa só vai chegar ao Amazonas em 1851, logo após a
elevação da comarca à categoria de província. Coube a Manoel de
Azevedo da Silva Ramos a montagem do primeiro jornal, o Cinco
de Setembro. A partir daí
nstalou-se nestas paragens uma revolução impressa. “Raro era o
ano”, escreveu Mavignier de Castro, “em que não surgisse novo
órgão defensivo dos interesses do povo” (Castro,
Mavignier de.
Síntese Histórica da
Evolução de Manaus, 2°
ed, 1967, p. 108). Surgiram
jornais oficiais, partidários, literários, esportivos, comerciais
e, fazendo grande sucesso, os críticos e humorísticos, que nada
mais eram do que folhas especializadas
em fofocas.
Eles
proliferaram entre o final do século XIX e as primeiras décadas do
século XX, período em que a circulação de capitais propiciada pela economia gomífera possibilitou a importação de máquinas e materiais de impressão, dinamizando a imprensa amazonense. A imprensa especializada, com suas redações bem montadas, passou a conviver com jornais de feitura artesanal, do qual fazem parte os humorísticos, que em sua grande maioria tiveram vida efêmera, com alguns tendo uma única edição publicada (Pinheiro, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: Letramento e Periodismo no Amazonas (1880-1920). 3° ed. 2015).
Deve-se destacar que esse não era um caso específico de Manaus. Jornais dessa natureza existiram em todo o Brasil e em outras partes do mundo. No entanto, aqui eles ganharam outra importância. Em uma cidade de pequenas dimensões, por séculos privada de maiores divertimentos, a fofoca tornava-se uma importante forma de entretenimento. Os periódicos críticos e humorísticos editados a partir o final do século XIX amplificaram esse aspecto da vida cotidiana.
Um dos mais antigos disponíveis para consulta na
Hemeroteca Digital Brasileira da
Biblioteca Nacional é A Mutuca,
fundado em 1893. Em seu texto de apresentação alertava os leitores:
“Aguente-se quem pouder: o meu aguilhão estará rijo, ponteagudo e
venenoso”. Distribuía picadas, como as que foram endereçadas a um
certo cidadão de nome Carlos “por ter desprezado a V… por cauza
da G… da rua Tarumã” e ao Agnello, “porque está feito ama
secca de uma quarentona (A Mutuca,
17/11/1893, p. 01). A Marreta,
de 1912, distribuía marretadas a torto e a direito. As chicotadas de
O Chicote, de 1913,
eram fortemente aplicadas, como aquelas que atingiram um “portuguez
demasiadamente ratuíno”, enamorado de uma empregada da rua José
Clemente, ameaçado de ter seu nome publicado em “letra redonda”
(O Chicote, 16/08/1913, p. 02).
Em
1913 A Marreta noticiou
que um aluno da Escola Universitária Livre de Manáos estava
conquistando uma senhora casada, moradora do Boulevard Amazonas,
enquanto seu marido se encontrava no interior (A Marreta, 12/01/1913,
p. 04). Alguns anos mais tarde, em 1915, A Lanceta publicou
que uma senhorinha da rua Mundurucus tinha dois namorados. “Um só
não chega?”, questionou o jornal (A Lanceta, 22/05/1915, p. 03).
Escandaloso mesmo foi um namoro descoberto pelo A Encrenca
na rua Municipal, pois os dois
se beijavam pela janela. Um afronte às famílias tradicionais. O
casal foi ameaçado de ter os nomes publicados (A Encrenca,
20/08/1916, p. 02). Com uma certa dose de exagero, A
Lanceta afirmava que uma
senhorita da rua Major Gabriel tinha uma “lista demonstrativa de 80
namorados” (A Lanceta, 01/05/1914, p. 03).
Por
volta de 1916, na rua João Coelho, dois namorados foram ameaçados
de terem seus nomes publicados no jornal A Encrenca,
pois costumavam andar abraçados (A Encrenca, 11/06/1916, p. 02). Em
um baile realizado no bairro dos Tócos (Aparecida) em 1913, o
português Pedro Baptista engatou um namoro com uma moça. A
Marreta a alertou, afirmando que
“[…] elle é um pouco enxerido e tem mais de 60 noivas” (A
Marreta, 16/02/1913, p. 04). No ano seguinte o jornal lançou um
serviço voltado às senhoritas que tinham dúvidas sobre a situação
conjugal de seus pretendentes: “Avisamos as incautas demoiselles
que, quando tenham dúvida sobre o estado civil de qualquer malandro,
isto é, se elle é solteiro ou casado, que nos peçam informações,
porque temo-las de todos os casados Dons Juans de Manáos, vindos de
outros Estados” (A Lanceta, 17/06/1914, p. 02). Um serviço
essencial em uma cidade que, desde 1890, passou a receber milhares de
forasteiros de diferentes paragens.
A
Lanceta,
em 1912, divulgou “que um velho que faz 69… anos por esses dias,
está preto de
paixão por uma jovem de 12 anos, lá pelos Educandos” (A Lanceta,
21/09/1912). Essa
nota é um exemplo dos valores morais de uma sociedade patriarcal. Os
redatores se espantaram apenas com a idade avançada do "velho"
e o fato de ser “preto”, e não com a idade da jovem, de apenas
12 anos, demonstrando “normalidade” diante do fato, tratado como
mais uma fofoca. Os namoros e casamentos entre homens mais velhos e
mulheres muito jovens, na transição entre infância e adolescência,
eram comuns. As leis contra essa antiga prática estavam dando seus
primeiros passos no Brasil. A palavra pedófilo, apesar de existir
desde fins do século XIX, sequer era mencionada.
As
imagens da Belle Époque manauara que nos foram transmitidas
apresentam senhoras altivas, ricamente trajadas, guardiãs do lar e
fiscais da moral e dos bons costumes. No entanto, em 1912 A
Marreta revelou
os nomes de “[…] algumas marafonas (prostitutas) que se pavoneiam
de grandes senhoras” (A Marreta, 22/09/1912, p. 03). Se
manifestando contra os homossexuais, o jornal afirmou que, para
expurgá-los, era necessário “[…] começar pelos grandes, que
occupam logares importantes em nossa sociedade”, sugerindo que
certos políticos e membros da elite, aparentemente impolutos, eram,
na verdade, invertidos
(A
Marreta, 03/11/1912, p. 01).
Em mais de uma ocasião O Chicote denunciou Chico Traíra, famoso pajé que atuava no bairro Cachoeirinha, onde realizava orações, defumações e banhos curativos. "Toma cuidado com a polícia, pajé", dizia o jornal (O Chicote, 19/07/1913). Para A Marreta, os praticantes da pajelança eram "em geral os homens que vivem na malandragem" [...] e tambem as mulheres de vida facil que já não prestam mais para coisa alguma" (A Marreta, 17/11/1912). As práticas médico-religiosas eram combatidas pelo poder público e pela imprensa, sendo vistas como formas de superstição e de charlatanismo.
A circulação dos mexericos era facilitada pela configuração do espaço urbano. A maior parte dos bairros de Manaus - e algumas áreas do Centro - é constituída, desde priscas eras, por becos, vielas e travessas estreitas, com as casas coladas umas nas outras. As comadres e os compadres falavam da vida alheia pela janela, na calçada, nas visitas regadas a café, nos almoços domingueiros. Quantas fofocas não passaram pelos becos Carolina das Neves e da Indústria, em Aparecida, e no beco José Casimiro, no Centro? Não é de se estranhar o fato de que, como cita o professor José Ribamar Bessa Freire, alguns desses jornais fossem sediados nesses bairros (Freire, José Ribamar Bessa. Jornais do Amazonas: em busca do Vicente. In: Pinheiro, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: letramento e periodismo no Amazonas (1880-1920). 3° ed. 2015).
Através
da leitura dessas fofocas podemos compreender diferentes aspectos da
sociedade manauara da virada do século XIX para o XX. Elas revelam
modos de vida, códigos de conduta, práticas amorosas, religiosas e
culturais, transgressões e embates entre a cidade real e a
idealizada pelas camadas dirigentes e pelas elites. Em outras
palavras, um cotidiano totalmente diferente daquele que foi
registrado e transmitido pela historiografia oficial.
Historiograficamente falando, André
Vidal de Araújo, comentando sobre a imprensa manauara das primeiras
décadas do século XX, lembra, sem maiores detalhes, de “[…]
certos jornais de moços indiscretos que atacavam os namorados como o
“Monóculo”, o “Chicote”, a “Pimenta”, etc” (Araújo,
André Vidal de. Sociologia
de Manaus. 1974, p. 305).
Alguns anos mais tarde, o professor José Ribamar Bessa Freire, no livro Cem Anos
de Imprensa no Amazonas (1851-1950),
destaca O Beijo, de 1896; O Namoro, de 1902; O Nu, de 1903; O
Bohemio, de 1906; O Bentevi, de 1910; O Pau, de 1912; e o Pun, de
1916. Essas folhas, de acordo com o pesquisador, utilizavam linguagem
coloquial, escrachada, e expunham a vida privada das famílias
amazonenses, ameaçando divulgar os nomes daqueles que eram flagrados
em condutas consideradas imorais e exercendo “controle social”
sobre a população. Estavam, àquela altura, "[...] à espera de pesquisadores que analisem o seu papel" (Freire, José Ribamar Bessa et al. Cem
Anos de Imprensa no Amazonas (1851-1950).
2° ed, 1990, p. 20).
A
historiadora Maria Luiza Ugarte Pinheiro, autora de livro Folhas do
Norte: Letramento e Periodismo no Amazonas (1880-1920), dedicou um
precioso capítulo a essas folhas. Ela identificou três tipos de
jornais humorísticos que circularam no Amazonas: os
de entretenimento, que teciam críticas ao cotidiano; os de humor
político, voltados para as críticas à política local e nacional;
e os moralizadores e segregadores, que diariamente atacavam
homossexuais, prostitutas, negros e imigrantes nordestinos.
Analisando esses periódicos, concluiu que “O jornal de humor, a
propor o entretenimento, desafia e afronta o instituído, o
consagrado e, ao fazê-lo, atrai a atenção de um conjunto de
leitores que não só demandam atitudes de independência e de
liberdade de pensamento e expressão, mas também desejam ver
esgarçadas as contradições de uma sociedade que lhes parecia
putrefata” (Pinheiro, Maria Luiza Ugarte. Folhas
do Norte:
Letramento e Periodismo no Amazonas (1880-1920). 3° ed. 2015, p.
234).
Esses
jornais atendiam os anseios populares, bem como faziam parte de uma
esfera burguesa que através do chiste atacava camadas populares da
sociedade consideradas atrasadas e indesejadas no espaço urbano que
se queria moderno e civilizado. A fofoca, como repreensão e divertimento, estava por todos os lados.
Nos palacetes, cortiços, cafés da avenida Eduardo Ribeiro, becos, vielas e travessas dos Tócos, São Raimundo e Centro, mercados, igrejas, escolas e até
cemitérios. Hoje circula na redes sociais, nos blogs, portais e sites, rendendo lucros astronômicos a jornalistas. Ela é parte intrínseca da História de Manaus.