sábado, 7 de dezembro de 2019

O fim dos enterros nas Igrejas e a construção do Cemitério de São José, em Manaus (1848-1859)

Artigo originalmente publicado no sexto número da Revista Discente Ofícios de Clio, dos cursos de História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), com o título 'A terra dos mortos na cidade do Rio Negro: Mudanças nas práticas funerárias na cidade de Manaus e a construção do Cemitério de São José (1848-1859)'.

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Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa, UFAM¹

Resumo

Até determinado período do oitocentos, vivos e mortos conviviam no mesmo espaço, mantendo relações bastante diretas. Essa relação estava a séculos arraigada no cotidiano. Os discursos higienistas e as práticas de normatização do espaço público, com a construção de cemitérios públicos e a proibição do contato tradicional com os cadáveres, distanciaram cada vez mais esses dois. Dessa forma, pretende-se analisar como se deram as mudanças nas práticas funerárias na cidade de Manaus na segunda metade do século XIX, partindo das primeiras discussões presentes no Código de Posturas Municipais de 1848. Nesse período os discursos médicos penetraram na região, sendo reforçados pelas graves epidemias que atingiram a capital entre 1855 e 1856, que culminaram na construção do Cemitério de São José (1856-59), que marcou o início de uma nova forma da população manauara relacionar-se com a morte e os mortos. 

Palavras-chaves: Morte, Práticas Funerárias, Cemitério.


Abstract 

Until a certain period of the eight hundred, living and dead lived in the same space, maintaining fairly direct relations. This relationship was rooted in the centuries. The hygienist discourses and practices of standardization of the public space, with the construction of public cemeteries and the prohibition of the traditional contact with the corpses, have distanced more and more these two. In this way, the aim is to analyze the changes in funeral practices in the city of Manaus in the second half of the 19th century, starting from the first discussions in the Code of Municipal Postures of 1848. During this period medical discourses penetrated the region and were reinforced by the serious epidemics that hit the capital between 1855 and 1856, culminating in the construction of the São José Cemetery (1856-59). 

Keywords: Death, Funeral Practices, Cemetery. 


Introdução

As atitudes dos vivos diante da morte e dos mortos, no Ocidente, sofreram grandes variações ao longo dos séculos, ainda que operadas lentamente. De acordo com Philippe Ariès (1989), autor do clássico História da Morte no Ocidente, no período da Alta Idade Média existia uma relação de convívio com a morte, sendo ela considerada um processo natural para o qual se preparava durante a vida. Aguardava-se a morte no leito, rodeado por familiares e conhecidos. Enterrados no interior das igrejas ou em seus terrenos, os mortos faziam parte do cotidiano de todas as classes sociais. A morte era domesticada. 

A partir dos séculos XI e XII, começam a se verificar mudanças sutis. A morte, enquanto um processo comum a todos os homens e mulheres, de diferentes faixas etárias e classes sociais, passou a ser encarada do ponto de vista individual, isto é, surgiu a preocupação com o destino da alma, com a prestação de contas em outro mundo. Esse é o Dogma católico do Purgatório, local sobrenatural que o historiador francês Jacques Le Goff definiu como “[…] um além intermédio onde certos mortos passam por uma provação que pode ser abreviada pelos sufrágios – a ajuda espiritual – dos vivos” (LE GOFF, 1995, p. 18-19).

É entre os séculos XVIII e XIX que ocorrem as mudanças mais marcantes e que nos interessam. No século XVIII, a morte torna-se romântica, envolta de dramas. Ela assusta e ao mesmo tempo impressiona, chegando mesmo a ser exaltada. Interessa não a própria morte, mas a do próximo, sobre o qual cria-se uma memória post-mortem, um verdadeiro culto à personalidade do falecido. Essa é a morte do outro. Por último, surgida entre fins do século XIX e verificada até os dias de hoje, está a morte interdita, medicalizada. A morte tornou-se um tabu, assim como os mortos tornaram-se elementos repugnantes. Não se fala e nem se convive mais com a morte, como se esse processo e seus resultantes (os mortos) tivessem tornado-se indesejáveis.

O objeto de estudo do presente artigo, as práticas funerárias na cidade de Manaus, situa-se no século XIX, na transição entre a morte romântica e a morte interdita² . As atitudes diante da morte e as práticas funerárias sofreram mudanças profundas a partir da segunda metade do século XIX. Se até então vivos e mortos coexistiam no mesmo espaço, os primeiros utilizando uma série de ritos para que estes tivessem um bom destino final, nesse período começa a se verificar um distanciamento que se tornará cada vez maior entre os dois. Essa ruptura foi gestada por discursos higienistas e práticas de normatização do espaço público, elementos que, no Brasil, foram reforçados por epidemias verificadas em diferentes momentos - e com variações regionais - do século XIX. 

Dessa forma, buscou-se analisar como se deram as mudanças nas práticas funerárias na cidade de Manaus na segunda metade do século XIX, quando os discursos médicos penetraram na região, estes corroborados pelas graves epidemias de cólera morbo e febre amarela que atingiram a capital entre 1855 e 1856 (BOTELHO, 1987), culminando na construção do Cemitério de São José (1856-59). Como fontes foram utilizadas falas de administradores locais, leis, decretos e jornais. Como referenciais teóricos, os estudos de Philippe Ariès (1989, 2012), João José Reis (1997) e Claudia Rodrigues (1997) foram de extrema importância.


Miasmas, epidemias e o Cemitério de São José 


Antigo Cemitério de São José (1856-1891). FONTE: Álbum O Estado do Amazonas (1899)/Instituto Durango Duarte.

Na Europa, no século XVII, foi desenvolvida pelos médicos Thomas Sydenham e Giovanni Maria Lancisi a teoria miasmática, segundo a qual os odores expelidos de matérias putrefatas poderiam causar graves doenças (SILVA; LINS; CASTRO, 2017, p. 174). Ao longo de todo o século XIX, a teoria miasmática dominaria as discussões sobre a urbanização das cidades, não sendo diferente no Império: No inciso 2 do artigo 66 da Lei Imperial de 1° de Outubro de 1828, que reformulou as Câmaras Municipais, foram proibidos os enterros nas igrejas, assim como ficou a cargo da polícia a vigilância sobre

"[…] o esgotamento de pantanos, e qualquer estagnação de aguas infectas; sobre a economia e asseio dos curraes, e matadouros publicos, sobre a collocação de cortumes, sobre os depositos de immundices, e quanto possa alterar, e corromper a salubridade da atmosphera" (LEI IMPERIAL DE 1° DE OUTUBRO DE 1828).

Percebe-se que, para o Estado, o contato com os mortos poderia trazer sérios riscos para a saúde e salubridade públicas, dada a emissão de odores na “atmosphera”.

Os enterros nas igrejas, no Ocidente, foram uma tradição com origem na Antiguidade Tardia. Philippe Ariés, em sua História da Morte no Ocidente, afirma que esse costume teve início nos cemitérios extra urbem (fora das cidades), onde foram enterrados os primeiros mártires cristãos. Templos foram sendo construídos onde esses santos eram enterrados, e a população cristã, de forma a se associar a esses “mortos especiais”, passou a querer ser enterrada ao lado destes. Deve-se destacar que, na Antiguidade greco-romana, existiam locais específicos para os vivos e os mortos, sendo estes últimos destinados aos cemitérios fora das cidades, construídos em zonas distantes. No entanto, destaca Ariés, “chegou um momento em que a distinção entre os subúrbios onde se enterrava ad sanctos, porque se estava extra urbem, e a cidade, sempre interdita às sepulturas, desapareceu” (ARIÈS, 1989, p. 26-27). As cidades absorveram os subúrbios e, dessa forma, entraram em contato com os mortos.

A nível regional, as mudanças nas relações entre vivos e mortos chegaram ao Norte primeiro na Província do Grão-Pará, que se transformava no contexto de crescimento das atividades ligadas à extração do látex, passando por um intenso processo de urbanização em diferentes administrações provinciais. Os enterros nas vilas e cidades paraenses eram práticas que começavam a ser questionadas pelos médicos higienistas e pelas autoridades públicas, pois além de oferecerem perigo à saúde, não estavam de acordo com a civilização e a modernidade, dada a importância que a Província ganhava no cenário nacional e internacional. Em 1850 é inaugurado o primeiro cemitério público de Belém, o Cemitério de Nossa Senhora da Soledade. De acordo com a historiadora Érika Amorim da Silva, que estudou o cotidiano da morte e a secularização dos cemitérios da capital paraense entre 1850 e 1891, “este cemitério foi construído em razão da epidemia de febre amarela de 1850, sendo que uma das medidas para se combater a doença foi a proibição expressa de se sepultar as vítimas no interior das igrejas” (SILVA, 2005, p. 74).

As primeiras discussões acerca da construção de um cemitério público em Manaus aparecem no primeiro capítulo do Código de Posturas Municipais de 1848, quando a cidade era capital da Comarca do Alto Amazonas, subordinada à Província do Grão-Pará. No 2° artigo ficou estabelecido que as câmaras municipais que não cumprissem a Lei de 1° de Outubro de 1828, ou seja, que não construíssem cemitérios, seriam multadas em trinta mil réis por cada um de seus membros caso não o fizessem até 1852. No 4° artigo, as câmaras que não possuíssem terrenos para a construção de seus cemitérios deveriam propor ao governo da Província as formas para obtê-los. O 5° artigo determinou que, assim que fossem erguidos os cemitérios, seriam proibidos os enterros nas igrejas ou em seus átrios, com penalidades de multa de 20 mil réis ou oito dias de prisão (SAMPAIO, 2016, p. 18).

O cemitério da capital não se concretizou com o Código de 1848. A abertura de um cemitério público em Manaus passou a ser cogitada desde os primeiros anos da nascente Província. Em 1853, o Presidente Herculano Ferreira Pena o elencou como uma das obras de urgência para a capital. O 1° Vice-Presidente Manoel Gomes Corrêa de Miranda informava que “a falta de materiaes, e mesmo de pessoas, que se proponhão a tomal-as por arrematação, tem sido a cauza porque se não tem dado andamento a muitas obras de muita urgencia, como a Matriz, Cemiterio, Pontes etc” (AMAZONAS, 09 de Maio de 1853 – Relatorio apresentado ao Illm e exm. Snr. Conselheiro Herculano Ferreira Pena, Presidente da Provincia do Amazonas, pelo 1° Vice-Presidente o Illm.e Exm. Snr. Dr. Manoel Gomes Corrêa de Miranda, p. 6). A construção de um cemitério público na capital deixaria o Amazonas em consonância com a Província vizinha e as demais de outras regiões em que estivessem sendo gestadas mudanças nas práticas funerárias representadas pela construção de cemitérios públicos.

Apesar da proibição estabelecida na Lei de 1828, os enterros em igrejas, no Império, ainda perdurariam por um bom tempo. Dada as dificuldades materiais, optou-se pelo cercamento, em 1854, do terreno da Igreja dos Remédios que servia, há décadas, como cemitério. Após o cercamento desse terreno, que serviria de cemitério provisório em Manaus, Manoel Gomes Corrêa de Miranda, Juiz de Direito da Comarca do Amazonas e Chefe de Polícia da Província, informava que no artigo 5° do Código de Posturas Municipais ficava estabelecido que, “logo que hajao cemiterios será prohibido enterrar-se cadaveres nos templos, ou atrios destes, sob pena de ser multado o infractor em vinte mil réis, ou oito dias de prizão” (ESTRELLA DO AMAZONAS, 24 de junho de 1854, p. 2-3). Repetia-se o 5° artigo do Código de Posturas Municipais de 1848. Esse documento, assim como o Código de Posturas Municipais de 1848, nos oferece um indício da prática dos tradicionais enterros em igrejas na capital da Província do Amazonas.

João José Reis nos informa que, no século XIX, era de extrema importância ser enterrado em solo sagrado, seja no interior das igrejas ou nas proximidades do terreno em que elas foram construídas:

"[…] ter sepultura na igreja era como tornar-se inquilino na Casa de Deus. A proximidade física entre cadáver e imagens de santos e anjos representavam arranjo premonitório e propiciador da proximidade espiritual entre a alma e os seres divinos no reino celestial". (REIS, 1997, p. 124).

Prática recorrente na sociedade, alvo de proibições desde o final da década de 20 do século XIX, tornou-se tema de estudos de médicos brasileiros, que passaram a publicar inúmeras teses criticando essa proximidade entre vivos e mortos, entre a área urbana e os cadáveres, sempre citando os miasmas. O médico José Pereira Rego, o Barão do Lavradio, publicou, em 1840, na Revista Médica Fluminense, interessantes considerações sobre a higiene pública e os enterros nas igrejas. Para esse médico, existia a necessidade de se estabelecerem no país os cemitérios fora das cidades, que já eram uma realidade na Europa. Considerava um dever moral e religioso dar sepultura aos mortos, bem como uma questão de saúde. Se não fosse assim, questiona, “o que seria o homem que se habituasse com a imagem da morte, e visse constantemente os progressivos estragos de nossa destruição material?”. Essa é uma das características do medo da morte no século XIX que Philippe Ariès destaca, “a repugnância […] em imaginar o morto e seu cadáver” (ARIÈS, 2012, p. 151). José Pereira Rego continua suas considerações, afirmando que os enterros, na Corte, eram feitos quase que exclusivamente nas igrejas, em suas catacumbas e carneiros. Uma passagem de seus escritos é bastante esclarecedora para compreender a dimensão do ideário médico da época:

"Iie sem duvida difficil destruir certos usos e costumes enraizados em qualquer povo, ainda mesmo quando de sua pertinacia nenhum bem resulte á sociedade, e antes prejuizos mais ou menos consideraveis; e isto tanto mais difficil se torna, quanto taes usos dizem respeito a objectos relativos ás crenças religiosas, por isso que o fanatismo e a superstição, achando sempre muitos proselytos nos indivíduos nimiamente credulos, e na classe mais ignorante da sociedade, fazem com que tudo quanto tenda a acabar com taes abusos e costumes, e a introduzir outros que mais conducentes sejão ao bem estar della, fique sem effeito, de modo que taes usos continuão e se perpetuão, tanto pelo que acabamos de expender, como tambem pela má intenção de certas pessoas que, de qualquer ensejo favoravel, se aproveitão para promovera desordem e conseguir seus fins particulares". (REVISTA MÉDICA FLUMINENSE, 06 de setembro de 1840, p. 245-246).

Para José Pereira Rego, a prática dos enterros nas igrejas, além de ser um perigo para a saúde pública, era o reflexo de uma sociedade cujas crenças religiosas estavam fortemente arraigadas no cotidiano, dominando todos os aspectos da vida, do nascimento à morte. As atitudes e práticas de uma sociedade majoritariamente católica estavam em conflito com costumes cada vez mais secularizados que se tentava importar para o país, no caso a construção de cemitérios fora dos limites das cidades e o consequente enterramento dos cadáveres nesses locais, longe do contato com os vivos. Essas rupturas extrapolavam os limites das questões de higiene pública, penetrando no campo da cultura e das tradições populares. De acordo com o historiador Agostinho Júnior Holanda Coe, que analisou as mudanças ocorridas nos enterramentos na cidade de São Luís (MA) entre 1828 e 1855, “tais práticas cotidianas, com o desenvolvimento da ideia de que o ar da cidade podia ser contaminado pelos vapores cadavéricos, foram paulatinamente se tornando objetos de censuras” (COE, 2008, p. 22). Esses discursos foram absorvidos pelos dirigentes políticos de Manaus.

Até o cercamento do terreno perto da Igreja dos Remédios, o cemitério provisório, os enterros eram feitos no interior das igrejas e no largo da antiga Matriz. Manoel Gomes Corrêa de Miranda, Juiz de Direito da Comarca do Amazonas e Chefe de Polícia da Província, em um anúncio público de 1854, escrevera que para o bem da salubridade pública os enterros nesses lugares deveriam acabar, pois além de não serem propícios para o descanso dos finados, as covas eram mal feitas, pouco profundas, deixando os corpos expostos aos transeuntes e à ação de animais como porcos e cachorros. Também existiam outras questões, “como estar este lugar no centro da Cidade, e o continuado vento, que necessariamente hade conduzir os miasmas para os vivos” (ESTRELLA DO AMAZONAS, 13 de maio de 1854, p. 7). Percebe-se, através das falas de autoridades públicas da Província, a penetração dos discursos higienistas no tocante das práticas funerárias locais.

Sobre um possível choque, em Manaus, entre a prática dos enterros nas igrejas e os costumes secularizados, um trecho da fala de Manoel Gomes Corrêa de Miranda chamou a atenção. No início de seu texto, ele afirma que “A algumas pessoas temos ouvido que o – povo – vê com desgosto os preparos que ora se fazem para um Cemiterio no terreno próximo á Igreja dos Remedios”. E continua dizendo que “Não sabemos se taes pessoas são verdadeiros órgãos do publico, ou se exprimem apenas uma opinião individual” (ESTRELLA DO AMAZONAS, 13 de maio de 1854, p. 7). Teria tido, por parte da população de Manaus, resistência ao cercamento do cemitério e o consequente fim dos enterros no largo da antiga Matriz e no interior das igrejas? Seria o descontentamento de pessoas ligadas ao poder eclesiástico, para quem o enterro nos templos e terrenos eclesiásticos provavelmente garantia ganhos financeiros? Ou seria essa parte da fala de Manoel Gomes apenas um artifício criado para argumentar à favor do cemitério provisório? Não se sabe ao certo, mas possivelmente essas transformações das práticas funerárias não passaram despercebidas.

A resistência mais forte à imposição da construção de um cemitério público ocorreu em 1836 em Salvador, na Bahia, ficando conhecida como Revolta da Cemiterada. Escravos, homens e mulheres, pessoas de diferentes classes sociais, destruíram o recém-inaugurado Cemitério do Campo Santo, construído por uma empresa privada que ganhou o monopólio, por 30 anos, dos enterros realizados na cidade. Os enterros nas igrejas foram proibidos, o que fez um grande grupo de pessoas, em defesa da continuidade das práticas funerárias tradicionais, destruir o Campo Santo. João José Reis afirma que, em outras partes do Império, movimentos como esse não ocorreram, “mas as novas diretrizes não foram introduzidas sem oposição” e, “com ritmos diferentes, em todo o Império, mesmo no interior, as populações foram se adaptando ao novo regime funerário” (REIS, 1997, p. 139-140).

Os discursos dos médicos higienistas, com suas práticas racionalistas e secularizadas, com a normatização do espaço público mediante a construção de cemitérios distantes da cidade ou pelo menos da área central, ganharam mais força quando epidemias devastadoras passaram a assolar o Império do Brasil. Em 1855, através de um navio vindo de Portugal que aportou em Belém, capital da Província do Pará, o cólera morbo espalhou-se pelas demais províncias da região Norte, Nordeste, Sul e Sudeste do Império, vitimando, segundo algumas estimativas, cerca de 200.000 pessoas, sendo uma epidemia que

"[…] abateu-se com violência sobre as populações mais pobres e mal alimentadas, mais propensas à utilização de águas contaminadas, excluídas das mínimas condições de higiene que o progresso urbano no Brasil já assegurava às camadas sociais mais altas". (CASTRO SANTOS, 1994, p. 88).

Nesse mesmo ano, em um expediente do governo da Província do Amazonas publicado no jornal Estrella do Amazonas, autorizou-se a abertura de um crédito de dois contos de réis para cuidados médicos e higiênicos caso o cólera atingisse a província. O tenente Damazo de Souza Barriga, Subdelegado de Polícia de Serpa, nesse mesmo documento, pedia que o Presidente da província desse “prompta execução […] sobre a escolha de um lugar, em que d’ora em diante se faça os enterramentos, visto que o que até agora tem servido de Cemitério, é impróprio, e pode tornar-se prejudicial á saúde dos habitantes d’essa Freguezia” (ESTRELLA DO AMAZONAS, 21 de julho de 1855, p. 5). A escolha de um lugar apropriado para fazer os enterros, em Manaus, era uma questão de urgência, dada a ameaça do cólera, que já estava fazendo milhares de vítimas na província vizinha. Os gases expelidos dos cadáveres poderiam facilitar o contagio da doença. O Subdelegado também mandou que o Inspetor da Tesouraria da Fazenda dispendesse a quantia de duzentos mil réis para que a comissão formada pelo Presidente da Província, pelo Dr. Antonio D’ Aguiar e pelo Vigário pudesse ajudar os que fossem atacados pelo cólera com mantimentos e cuidados médicos.

Apesar de terem sido tomadas todas essas precauções, o cólera penetrou na Província do Amazonas. Casos foram verificados em Manaus, Vila Bela da Imperatriz, Serpa e Andirá. Em 1856, o número de coléricos, em Manaus, era de 46, 78 em Vila Bela, e 64 em Serpa e Andirá, totalizando 188 infectados, dos quais 3 vieram a óbito (AMAZONAS, 08 de Julho de 1856 - Relatorio apresentado á Assemblea Legislativa Provincial, Pelo Excelentissimo Senhor Doutor João Pedro Dias Vieira, Presidente Desta Província, p. 3-4). Apesar das estatísticas sobre o cólera no Amazonas mostrarem que o número de óbitos foi bastante inferior ao de outras províncias como a do Rio de Janeiro, uma outra epidemia, no mesmo período, seria devastadora na região: a de febre amarela. O primeiro caso foi registrado em 12 de fevereiro de 1856, tendo falecido, na capital, até junho daquele ano, 142 pessoas. Dada a dimensão da epidemia de febre amarela e o número de mortos, o Presidente João Pedro Dias Vieira tomou a seguinte medida em relação aos enterros e o cemitério provisório:

"Mandei vedar, depois de ouvido o parecer de pessoas profissionaes, os enterramentos no Cemiterio provisorio, existente no Bairro dos Remedios, e abrir outro em lugar apropriado na estrada da Caxoeira, que é o que actualmente esta servindo". (AMAZONAS, 08 de Julho de 1856 - Relatorio apresentado á Assemblea Legislativa Provincial, Pelo Excelentissimo Senhor Doutor João Pedro Dias Vieira, Presidente Desta Província, p. 5).

As epidemias foram a última pá de terra que sedimentou as relações de convivência entre vivos e mortos. Os ritos fúnebres, que em sua maioria demandavam contato direto com os cadáveres, foram sendo suprimidos para manter em segurança a saúde dos vivos. “Em primeiro lugar ficava agora”, diz João José Reis, “a saúde física dos vivos, não a saúde espiritual dos mortos”. “Entre as primeiras providências figurava a expulsão destes da cidade dos vivos, das igrejas e dos cemitérios intramuros” (REIS, 1997, p. 140-141). Claudia Rodrigues, que estudou as tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro do século XIX, afirma que é evidente a relação entre a criação dos cemitérios públicos e as epidemias e que,

"apesar de o discurso médico ter feito seus adeptos e as autoridades terem legislado a respeito do estabelecimento dos prédios mortuários, seria apenas com o advento de um surto epidêmico, com um alto índice de mortalidade, é que os mortos seriam definitivamente transferidos para longe dos vivos, para os cemitérios públicos". (RODRIGUES, 1997, p. 105). 

Da mesma forma que ocorrera na Corte estudada por Claudia Rodrigues, os cemitérios públicos, que tomariam das igrejas o monopólio dos enterros, foram surgindo nas cidades de Norte a Sul do Império que foram atingidas pelas epidemias, fossem de cólera ou de febre amarela, no caso de Manaus.

O cemitério aberto na Estrada da Caxoeira (posteriormente Estrada de Epaminondas, Avenida Epaminondas), em Manaus, trata-se do Cemitério de São José, cuja construção, como foi citado, cogitava-se desde 1853, e que serviria de cemitério público da capital até sua desativação em 1891. O Cemitério dos Remédios, que já era considerado um local impróprio para os enterros, atingiu rapidamente sua capacidade de ocupação dada a quantidade de mortos pela epidemia de febre amarela em um curto espaço de tempo (fevereiro a junho de 1856), o que deu origem à nova necrópole, em região, naquele período, considerada distante do resto da cidade. Ainda no relatório de 1856, o Presidente informava que

"Para auxiliar a sua conclusão peço que consigneis algum quantitativo no orçamento, assim como que me habiliteis com o dinheiro necessario á manutenção permanente da Enfermaria, que para os indigentes mandei fundar n’ uma das salas do Hospital Militar de S. Vicente". (AMAZONAS, 08 de Julho de 1856 - Relatorio apresentado á Assemblea Legislativa Provincial, Pelo Excelentissimo Senhor Doutor João Pedro Dias Vieira, Presidente Desta Província, p. 5).

Recebeu seu primeiro inumado em 07 de março de 1856, João Fleury da Silva, vítima do cólera morbo (ESTRELLA DO AMAZONAS, 15 de março de 1856, p. 6). Pela constante falta de recursos, de materiais e de mão de obra, as obras do Cemitério de São José se arrastariam até 1859. Em 1857, João Pedro Dias Vieira informava ao 1° Vice-Presidente Manoel Gomes Corrêa de Miranda que, dada

"a falta de operarios, e por ultimo, as copiosas e continuadas chuvas, que tem cahido, vedaraõ-me de mandar construir a Capella e a respectiva muralha". (AMAZONAS, 26 de fevereiro de 1857 – Relatorio apresentado pelo Exm. Snr. Doutor João Pedro Dias Vieira, ao 1° Vice-Presidente da Provincia o Exm. Snr. Dr. Manoel Gomes Correa de Miranda, no acto de passar-lhe a administração, p. 2).

O Cemitério de São José foi concluído em 1859, com uma capela, e cercado por madeira do tipo acariquara. No dia 06 de maio do mesmo ano, transladou-se do Seminário para a capela da necrópole a imagem de São José, benzida pelo Vigário que depois celebrou uma missa pelo descanso das almas dos que ali já tinham sido sepultados. A construção da capela e a transladação de uma imagem sacra para o local possuem explicações profundas. Com os enterros em igrejas proibidos, homens e mulheres preocupavam-se com a perda do contato mais direto com o sagrado. O filósofo Mircea Eliade afirma que é

"desejo do homem religioso de mover-se unicamente num mundo santificado, quer dizer, num espaço sagrado. É por essa razão que se elaboraram técnicas de orientação, que são, propriamente falando, técnicas de construção do espaço sagrado". (ELIADE, 2010, p. 32).

Dessa forma, a construção de uma capela católica, com a imagem de um santo padroeiro, sacralizava o terreno do Cemitério de São José, tornando-o de fato um campo santo, eliminando assim a preocupação de não se ter sepultura em contato com o sagrado. A encomenda do corpo passaria a ser realizada nesse local. Esse era, pelo menos nos cristãos católicos do oitocentos, um dos maiores medos, o de não ser enterrado em solo sagrado.

Para o novo cemitério de Manaus foi criado um regulamento dividido em 5 capítulos, totalizando 46 artigos, que versavam desde o corpo de funcionários até as sepulturas e as inumações, que são as partes que mais interessam. A criação de um regulamento visava o estabelecimento de regras que padronizassem esse espaço público, bem como o que fosse praticado em seu interior. 

No artigo 4 do capítulo 2, que versa sobre as sepulturas, enterros e exumações, ficou estabelecido que cada sepultura teria 10 palmos de profundidade, 3 e meio de largura e 7 de comprimento para adultos, 5 para crianças, com a distância de 2 palmos nas laterais e nas cabeças. Em cada sepultura seria enterrado apenas um cadáver, “salvo o caso de grande epidemia, que torne indispensavel sepultarem-se os cadaveres em vallas, as quaes teraõ a maior profundidade possivel” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 1). As sepulturas eram individualizadas, no entanto, em caso de epidemias como as de 1855 e 1856, os cadáveres seriam enterrados em valas comuns profundas, evitando assim o rápido esgotamento do terreno. O fantasma da epidemia rondava a capital. Determinou-se, no artigo 7 desse capítulo, que as sepulturas de pessoas vitimadas por epidemias só seriam reabertas após 8 anos, com “as cautelas exigidas pela sciencia” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 1)

Apesar dos ritos fúnebres que versavam sobre o destino da alma do morto estarem quase que inteiramente suprimidos, surge a preocupação com o cadáver, mas não a preocupação espiritual. Interessa o estado físico do corpo, a causa mortis. Como determinou o artigo 5, nenhum cadáver poderia ser enterrado sem ter se passado 24 horas, exceto em casos de epidemia. Em casos normais, quem descumprisse a medida receberia uma “multa de 10 á 20$000 réis” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 1). Em caso de morte suspeita ou violenta, o corpo só seria enterrado depois de um exame de “corpo de delicto pela autoridade competente, declarando-se no assento de obito essa circumstancia” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 1).

No artigo 12 ficou estabelecido que, somente por determinação da Câmara Municipal, com aprovação do Presidente da Província, seriam concedidas sepulturas distintas para “o cadaver de pessoa de alta jerarchia”. Os escravos, pelo artigo 38, seriam enterrados em sepulturas comuns, “nos quarteirões para isso destinados” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 3). No que diz respeito às atitudes, aos ritos e, principalmente, ao local de sepultamento, o espaço cemiterial, ela é o último estágio onde é concretizada a reprodução de diferenças sociais que acompanham homens e mulheres desde o início da vida.

Os preços praticados no Cemitério de São José, conforme o artigo 15, eram:

"Por sepultura commum – 2:000 
Reservada – 6:000
A perpetuidade – 60:000". (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 2).

Os jazigos perpétuos teriam limite para 4 cadáveres, não podendo ser negociados com outras pessoas e podendo ser utilizados apenas por ascendentes ou descendentes em linha reta (art. 13, 15). Nestes poderiam ser erguidos mausoléus e carneiros cemiteriais (art. 14). Teriam direito a sepulturas gratuitas, estabelecidos no artigo 16, os seguintes grupos:

"§ 1° Os cadaveres de pessoas indigentes, mediante attestado do Parocho, ou da autoridade policial. 
§ 2° Os das praças de pret. 
§ 3° Os dos presos pobres precedendo attestado da autoridade policial. 
§ 4° Os dos suppliciados, quando naõ reclamados por seos parentes e amigos. 
§ 5° Os cadaveres encontrados em qualquer logar publico, quando não haja quem lhes dê sepultura, precedendo attestado do Parocho, do da autoridade policial". (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 2).  

Conforme o artigo 44, nenhum cadáver poderia ser sepultado sem a “previa sciencia do Parocho; afim de que possa este fazer os assentos, ecumprir os deveres, que as leis civis e eclesiásticas lhe impõe” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 3). Por mais que os enterros não fossem mais realizados no interior dos templos, todos os diferentes estágios da vida do brasileiro do oitocentos, nascimento (batismo), casamento e morte, continuavam passando pelo crivo da Igreja Católica, situação que mudaria a partir de 1891, quando Estado e Igreja se separam.


Conclusão 

Os tradicionais enterros no interior de igrejas Católicas, intra muros, prática comum aos luso-brasileiros desde o período colonial, passaram a declinar no século XIX. Os discursos médicos criados na Europa, com medidas médicas e sanitaristas, passaram a criticar e repreender veementemente essa antiga prática funerária em nome da saúde pública, tendo início a separação entre vivos e mortos, que mantinham uma relação secular. No Brasil, as epidemias ocorridas em diferentes momentos do século XIX deram força e amplificaram esses discursos, introduzidos nas falas dos dirigentes e da imprensa. Na capital da Província do Amazonas, conforme concluiu-se na pesquisa, não foi diferente. 

Em Manaus, atingida por duas epidemias entre 1855 e 1856, os enterros tiveram fim nas igrejas e no cemitério provisório, localizado no centro da cidade, em terreno da Igreja dos Remédios, sendo os mortos levados para o Cemitério de São José, criado em decorrência da mortandade gerada pela epidemia de febre amarela, em área distante das habitações, com normas para o funcionamento e para os enterros.

Não foram apenas os mortos os sepultados. O Cemitério de São José não foi apenas mais uma construção, mas o reflexo de uma época. No bojo dessas transformações características do século XIX, sepultaram-se também práticas, costumes e tradições antigas, sendo esfriadas as relações entre vivos e mortos.


Notas:

¹ Graduando em Licenciatura Plena em História na UFAM.

² A morte romântica corresponde à sentimentalização do processo, fazendo surgir a preocupação com a finitude do próximo e a memória em torno de sua figura. A morte interdita é a negação desse processo e dos elementos a ele associados, como os mortos, que se tornam motivo de tabu.


Fontes utilizadas 


Jornal Estrella do Amazonas, 13 de maio de 1854. 

Jornal Estrella do Amazonas, 24 de junho de 1854.

Jornal Estrella do Amazonas, 21 de julho de 1855.

Jornal Estrella do Amazonas, 15 de março de 1856.

Jornal Estrella do Amazonas, 07 de março de 1857. 

Jornal Estrella do Amazonas, 27 de julho de 1859. 

Relatorio apresentado ao Illm e exm. Snr. Conselheiro Herculano Ferreira Pena, Presidente da Provincia do Amazonas, pelo 1° Vice-Presidente o Illm.e Exm. Snr. Dr. Manoel Gomes Corrêa de Miranda, em 09 de Maio de 1853.

Relatório apresentando a Assemblea Legislativa Provincial, pelo Excelentissimo Senhor Doutor João Pedro Dias Vieira, Presidente da Província do Amazonas, 08 de julho de 1856.

Relatorio apresentado pelo Exm. Snr. Doutor João Pedro Dias Vieira, ao 1° Vice-Presidente da Provincia o Exm. Snr. Dr. Manoel Gomes Correa de Miranda, no acto de passar-lhe a administração, no dia 26 de Fevereiro do corrente anno. Publicado em Estrella do Amazonas, 07 de março de 1857.

Regulamento N° 11 de 26 de Maio de 1859. Publicado em Estrella do Amazonas, 27 de julho de 1859.

Lei Imperial de 1° de Outubro de 1828. Dá nova fórma ás Camaras Municipaes, marca suas attribuições, e o processo para a sua eleição, e dos Juizes de Paz. Disponível em: http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38281-1-outubro-1828-566368- publicacaooriginal-89945-pl.html. Acesso em 24/05/2018.

Considerações sobre alguns objectos relativos a’ hygienne publica, pelo Dr. José Pereira Rego. Revista Médica Fluminense, N° 6. Vol. 6. Setembro de 1840. 


Referências bibliográficas 


ARIÈS, Philippe. Sobre a História da Morte no Ocidente desde a Idade Média. Tradução de Pedro Jordão. Lisboa: Teorema, 1989. 

ARIÈS, Philippe. História da Morte no Ocidente: da Idade Média aos nossos dias. Tradução de Priscila Viana de Siqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012. 

BOTELHO, João Bosco. O Cólera no Pará e Amazonas. Revista do Instituto de História da Medicina do Amazonas, Manaus, v. 1, n.1, p. 11-14, 1987. 

CASTRO SANTOS, Luiz Antonio de. Um século de Cólera: Itinerário do Medo. Physis. Revista de Saúde Coletiva, vol. 4, no. 1. p. 79-110, 1994. 

COE, Agostinho Júnior Holanda. “Nós, os ossos que aqui estamos, pelos vossos esperamos”: A higiene e o fim dos sepultamentos eclesiásticos em São Luís (1828-1855). (Dissertação de Mestrado em História Social). Universidade Federal de Fortaleza (UFC), Fortaleza, 2008. 

ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano. 3° ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. (Biblioteca do pensamento Moderno). 

LE GOFF, Jacques. O nascimento do Purgatório. 2° Ed. Lisboa (PT): Editorial Estampa, 1995. 

REIS, João José. O cotidiano da morte no Brasil Oitocentista. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (org). História da Vida privada no Brasil – vol. 1 – São Paulo: Cia. das Letras, p. 96-141, 1997. 

RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997. 

SAMPAIO, Patrícia Melo (org.). Posturas Municipais – Amazonas (1838-1967). Manaus: EDUA, 2016. 

SILVA, E. S. ; LINS, G. A. ; CASTRO, E. M. N. V. . Historicidade e olhares sobre o processo saúde-doença: uma nova percepção. Sustinere: Revista de Saúde e Educação, v. 4, p. 171- 186, 2017.

SILVA, Érika Amorim da. O cotidiano da morte e a secularização dos cemitérios em Belém na segunda metade do século XIX (1850-1891). Dissertação (Mestrado em História Social). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC), São Paulo, 2005.

domingo, 1 de dezembro de 2019

Uma Breve História da Aids no Amazonas


"Surge no Amazonas o 1° caso de Aids". FONTE: Jornal dos Sports, RJ, 21.07.1986.

Em 1981, o Centro de Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, localizado em Atlanta, na Geórgia, notificou que entre outubro de 1980 e maio de 1981, 5 homens jovens, todos homossexuais, foram diagnosticados com Pneumocistis Carinii, um tipo grave de pneumonia que atingia pessoas com o sistema imunológico debilitado (CDC, Pneumocystis pneumonia. Los Angeles. MMWR 1981;30:250-2). Pouco tempo depois surgiram casos de Sarcoma de Kaposi, um câncer de pele raro que geralmente acometia apenas idosos do Mediterrâneo e que existia de forma endêmica nas Áfricas Oriental e Central. Tinha início uma das epidemias mais mortais do século XX, a epidemia de Aids, como ficou conhecida a doença no ano seguinte (SIDA – Síndrome da Imunodeficiência Adquirida). O causador da síndrome, o vírus HIV, só foi descoberto entre 1983-1984.

Descobriu-se que a transmissão ocorria através do contato sexual e também pelo sangue. O pânico estava instalado. Qualquer sinal de cansaço, alguma mancha no corpo e dores estomacais eram motivos para uma ida ao médico, sempre se pensando no pior dos diagnósticos. Usar utensílios de portadores da doença, jamais, nem mesmo apertos de mão ou beijos. Enfermeiros e até mesmo médicos se recusavam a atendê-los, com medo de contaminar-se. A desinformação, por muito tempo, foi uma das faces da epidemia.

Como a maioria das vítimas eram homossexuais, a doença, nos primeiros anos, era pejorativamente conhecida como câncer gay ou praga gay. O termo Aids foi proposto depois que surgiram casos em usuários de drogas intravenosas, em hemofílicos, profissionais do sexo e heterossexuais. Mesmo assim, o estigma da doença recaiu sobre os homossexuais, que passaram a sofrer ainda mais com restrições e perseguições. Era comum serem publicadas em jornais matérias e charges os ridicularizando, como a reproduzida abaixo, de 1983:

Charge sobre a "Peste Gay". FONTE: A Luta Democrática, RJ, 17.06.1983.

No Brasil os primeiros casos surgiram em 1982 no Estado de São Paulo (boletins médicos rastrearam um primeiro caso em 1980). Posteriormente foram identificados casos no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Paraná, Minas Gerais, Pernambuco etc. As medidas tomadas pelas autoridades públicas, naquele momento, foram mínimas. Como eram poucos os casos quando comparados aos de outros países, afirmava-se que a Aids não era prioridade, mas sim doenças como a dengue e a tuberculose e problemas sociais como a fome.

No entanto, em pouco tempo os casos aumentaram de forma assustadora, dobrando ou triplicando a cada ano. Se em 1982, ano do surgimento do primeiro caso no Brasil, haviam sido reportados apenas 10 casos, 3 anos depois, em 1985, eles já eram 573 (GALVÃO, 2002, p. 9-10). “Nesse ano, através da Portaria do Ministério da Saúde n° 236, de 02 de maio, são estabelecidas as diretrizes para o programa de controle da Síndrome de Imunodeficiência Adquirida, SIDA ou AIDS” (GALVÃO, 2001, p. 10). Tinha início a resposta brasileira à Aids.

As recomendações médicas se estenderam pelos jornais, revistas, televisão, rádio e outros meios de comunicação. Vejamos o que diz sobre a Aids e seus “grupos de risco” uma enciclopédia escolar brasileira de 1987:

“As pessoas que compõe os principais grupos de risco da doença são as seguintes:

– homossexuais e bissexuais masculinos;
– viciados em drogas;
– pessoas que recebem sangue contaminado;
– parceiros sexuais de qualquer pessoa de um dos grupos de risco;
– bebês, filhos de mulheres contaminadas.

Sintomas – Os principais sintomas são: caroços (gânglios) nas axilas, pescoço e virilha, manchas avermelhadas na pele, dores musculares, aumento do baço e do fígado.

A AIDS ainda não tem cura e por isso, recomenda-se a sua prevenção das seguintes maneiras:

– esterilização de qualquer material que entre em contato com o sangue (bisturis, lâminas de barbear etc);
– uso de seringas e agulhas descartáveis;
– fazer testes de detecção do vírus nos sangues usados em transfusões;
– evitar o uso de drogas;
– usar camisinha de Vênus (preservativo) nas relações sexuais;
– reduzir, ao mínimo, o número de parceiros sexuais” (Enciclopédia Pesquisando na Escola, 1987, p. 84).

O primeiro caso de Aids do Amazonas surgiu em 1986. A vítima era uma jovem manauara que tinha feito uma transfusão de sangue no Rio de Janeiro, pois era hemofílica, uma condição rara em mulheres (Jornal dos Sports, RJ, 21.07.1986). A hematologista Joyce A. Bizzacchi, em entrevista à Revista Superinteressante, explica que, para que uma mulher nasça com hemofilia

“[…] é necessário que a mãe seja portadora de um cromossomo deficiente e o pai hemofílico, também com o X alterado […] Se, na hora da fecundação, o cromossomo X defeituoso da mãe se une com o cromossomo X do pai, também anômalo, nascerá uma menina hemofílica” (Revista Superinteressante, 31/01/1994).

Antes desse primeiro caso, os jornais amazonenses já vinham noticiando a emergência dessa doença em outros países e Estados brasileiros. Por exemplo, em 1983 foi publicado na coluna científica do Jornal do Comércio o artigo ‘SIDA: A Nova Peste do Século’ (Jornal do Comércio, 09.10.1983). Acreditava-se, como mais tarde foi comprovado, que a doença em breve chegaria ao Estado do Amazonas.

Como foi mostrado no início, as autoridades públicas amazonenses consideravam que, por serem poucos os casos, a Aids “[…] era um problema menor entre outras doenças sanitárias, muito mais preocupantes”, declarou em entrevista o Diretor da Fundação de Medicina Tropical do Amazonas na época (Diário do Amazonas, 08.03.1987 In KADRI; SCHWEICKARDT, 2016, p. 309). Com o avanço da epidemia, não tardou para que fossem tomadas as primeiras medidas de enfrentamento.

Fundação Alfredo da Matta, 1980. FONTE: Acervo do Irmão Pedro (Toyo Miida)/Fundação Alfredo da Matta.

A Fundação Alfredo da Matta, localizada no bairro Cachoeirinha, foi a pioneira, em Manaus, no tratamento ambulatorial de pessoas infectadas pelo HIV. Os casos suspeitos eram encaminhados para o HEMOAM, onde eram realizados os testes de sorologia. Caso fosse necessária a internação, o hospital referência era o Hospital Universitário Getúlio Vargas, da Fundação Universidade do Amazonas (Jornal do Comércio, 04.10.1987). Em 1989 foi criado o Programa Estadual de DST e Aids. Para auxiliar o trabalho realizado na Fundação Alfredo da Mata, foi construída uma ala de isolamento para atender soropositivos na Fundação de Medicina Tropical do Amazonas (KADRI; SCHWEICKARDT, 2016, p. 310). Esta instituição tornou-se referência – e ainda é nos dias de hoje – no tratamento de pessoas infectadas pelo vírus HIV.

Na maioria das vezes essas duas instituições enfrentavam diferentes tipos de problemas, como os de ordem política, com a falta de verba para otimizar suas estruturas e expandir o atendimento aos soropositivos; e os logísticos, pois muitas vezes o Estado, pela distância, ficava de fora das campanhas nacionais de prevenção, mais focadas no eixo Sudeste-Sul.

Na primeira década da epidemia no Estado do Amazonas, isto é, de 1986 a 1996, foram registrados cerca de 380 casos de Aids, sendo a maior parte na capital (Vigilância Epidemiológica em HIV/Aids e Hepatites Virais). A doença mudou práticas e formas de sociabilidade. O preservativo, antes utilizado apenas por questões contraceptivas, passou a ser utilizado como proteção contra doenças venéreas. Casas de prostituição, da capital e do interior, viram sua clientela diminuir a cada dia.

A sociedade civil, com apoio por alguns profissionais da área da saúde, passou a organizar-se para auxiliar no combate à Aids no Amazonas. Em 01 de dezembro de 1989 é criado o Movimento de Luta Contra a Aids (AMAVIDA), a primeira ong amazonense contra a doença. A AMAVIDA, com apoio da Fundação Alfredo da Matta, tratava e orientava as profissionais do sexo da capital sobre como se prevenir. Em 20 de fevereiro de 1992 surge o Grupo Gay do Amazonas, que além de lutar pelos direitos dos homossexuais, promovia ações de prevenção entre o grupo. Posteriormente surge a ASAM, Associação dos Soropositivos do Amazonas. Em 2002, antigos membros da ASAM criam a Associação Katiró, que até hoje promove ações de combate, educação e assistência jurídica aos portadores de HIV do Amazonas. No mesmo período, em 1996, é criada, no interior da Fundação de Medicina Tropical do Amazonas, a Rede de Amizade e Solidariedade às Pessoas com HIV/AIDS (SCHWEICKARDT et al. 2017, p. 175-176). Em 1999 é criada a ong Associação de Apoio à Criança com HIV, Casa Vhida, contando com o apoio de profissionais do Instituto de Medicina Tropical do Amazonas.

Passados 38 anos do início da epidemia, a Síndrome da Imunodeficiência Adquirida permanece incurável. De 1986 a 2016 foram registrados 15.149 casos no Amazonas, sendo 12.179 em Manaus, 265 em Parintins, 248 em Tabatinga, 157 em Itacoatiara e 155 em Tefé (A Crítica, 24.05.2017). Felizmente, novos tratamentos permitem que as pessoas infectadas pelo vírus HIV vivam normalmente. As campanhas de educação e prevenção devem ser contínuas. Deve-se julgar menos e se colocar mais no lugar do outro, pois além do amparo físico, é necessário o amparo psicológico.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


CDC. Pneumocystis pneumonia. Los Angeles. MMWR 1981;30:250-2.

ENCICLOPÉDIA Pesquisando na Escola. São Paulo: Ícone Editora, 1987.

GALVÃO, Jane. 1980-2001: uma cronologia da epidemia de HIV/AIDS no Brasil e no mundo. Rio de Janeiro: ABIA, 2002.

KADRI, Michele Rocha; SCHWEICKARDT, Júlio César. A emergência da Aids no Amazonas. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.23, n.2, abr.-jun. 2016, p.301-319.

Revista Superinteressante, 31/01/1994.

SCHWEICKARDT, Júlio César et al. História e Política Pública de Saúde na Amazônia. Porto Alegre: Rede UNIDA, 2017.


FONTES:


A Luta Democrática, RJ, 17.06.1983.

Jornal do Comércio, AM, 09.10.1983.

Jornal dos Sports, RJ, 21.07.1986.

Jornal do Comércio, AM, 04.10.1987.

Vigilância Epidemiológica em HIV/Aids e Hepatites Virais, 2012.

A Crítica, AM, 24.05.2017.


sexta-feira, 22 de novembro de 2019

O dia em que a Santa Casa de Misericórdia de Manaus fechou

O prédio da Santa Casa de Misericórdia de Manaus em 1994, 10 anos antes do fechamento. FONTE: Comissão da Santa de Misericórdia.

No dia 21 de novembro de 2019, o prédio da antiga Santa Casa de Misericórdia de Manaus, localizado na rua 10 de Julho, no Centro, foi comprado, em leilão, pelo Grupo Ceuni Fametro, que se comprometeu em preservá-lo e transformá-lo em hospital universitário. Aparentemente um novo capítulo, mais feliz, começa a ser escrito. Vamos nos lembrar, no presente texto, de como se deu o fechamento desse hospital.

Construída entre 1873 e 1880, a Santa Casa de Misericórdia de Manaus funcionou até 2004. A partir de seu fechamento, o histórico prédio onde várias gerações de amazonenses -  da capital e do interior, - foram atendidas, entrou em processo de deterioração, transformando-se em abrigo para pessoas em situação de rua, usuários de drogas e criminosos.

Desde a década de 1990 a Santa Casa de Misericórdia de Manaus sofria com problemas financeiros. Em 1999 a dívida com fornecedores, funcionários e previdência já era de 700 mil reais. Mesmo com inúmeras dificuldades, em 2002 o hospital realizou 2.905 cirurgias, 5.723 partos, 3.123 internações de adultos e 540 internações de crianças (JORNAL DO COMÉRCIO, 08/10/2003). 

Em 2003, um ano antes do fechamento, no Governo de Amazonino Armando Mendes, a Santa Casa de Misericórdia perdeu o convênio com o Governo do Estado, convênio esse que lhe garantia um repasse mensal de 300 mil reais (JORNAL DO COMÉRCIO, 27/01/2004). O hospital possuía cerca de 450 funcionários, mas à medida em que a crise se agravava, foram ocorrendo demissões voluntárias. No fim, restaram apenas 260.

A justificativa do Governo do Estado do Amazonas para dar fim ao convênio foi de que a administração da Santa Casa teria apresentado irregularidades na prestação de contas, o que motivou o fim do acordo (TRIBUNAL DE CONTAS DA UNIÃO, 2016). Tinha início o fim da Santa Casa de Manaus. Até a decisão pelo encerramento de suas atividades, ela se manteve através de doações de empresários, shows beneficentes e bazares, o que já vinha ocorrendo desde fins dos anos 90. A Provedoria da Santa Casa tentou um empréstimo junto a Caixa Econômica Federal, mas este foi recusado pelo órgão. Em 2003 foi realizada uma campanha, Santo de Casa faz Milagre, destinada às pessoas interessadas em contribuir financeiramente para a sua manutenção. Poderiam ser doados 10, 20 e 30 reais através de ligações (JORNAL DO COMÉRCIO, 08/10/2003).

Pensava-se que aquela seria uma crise passageira, pois problemas financeiros eram recorrentes na área da saúde. No entanto, daquela vez, a crise veio para ficar.

Sem remédios no estoque e sem ter dinheiro pagar os funcionários, em outras palavras, sem ter como continuar suas atividades, no dia 7 de dezembro de 2004 a Santa Casa de Misericórdia de Manaus fechou as portas. Terminou seus dias com uma dívida estimada em 4 milhões de reais (ESTADÃO, SP, 07/12/2004). Como última alternativa, o Governo do Estado do Amazonas, já no mandato de Eduardo Braga, em 2005, tentou assumir a Santa Casa e administrá-la através do contrato de comodato para contornar a situação, mas nada foi acertado. 

Seu fechamento representou diferentes perdas. A perda do patrimônio histórico do século XIX, símbolo das transformações da área da saúde naquele período. Perda da dignidade, tanto de pacientes quanto de funcionários, abandonados e sem receber seus vencimentos. Em síntese, uma tragédia de grandes proporções. 

Que venham dias melhores...


FONTES:

Jornal do Comércio, 08/10/2003.

Jornal do Comércio, 27/01/2004.

Estadão, SP, 07/12/2004.

Tribunal de Contas da União, TC 015.588/2009-7, 2016.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Comissão da Santa Casa de Misericórdia. Disponível em: https://www.santacasamanaus.com.br/

quinta-feira, 14 de novembro de 2019

A Datilografia em Manaus


Bartyra Pucú Aguiar, 2° lugar no Concurso de Datilografia da Escola Remington, em Manaus. FONTE: A Capital, 27/07/1917.

Apesar da máquina de escrever ter sido inventada no século XVIII e aperfeiçoada no XIX, a datilografia se popularizou apenas no início do século XX. As empresas e repartições públicas daquele período procuravam cada vez mais a rapidez e a eficiência. Gastava-se um tempo precioso no preenchimento de notas e emissão de documentos escritos a mão. A datilografia possibilitou a produção de documentos através da digitação, uma forma bem mais rápida que a tradicional.

As máquinas de escrever começaram a ser comercializadas em Manaus no início do século XX. As máquinas das marcas Royal, Underwood e Remington eram anunciadas, nos periódicos, como as mais elegantes e modernas do gênero.

Anúncio da máquina de escrever 'Underwood'. FONTE: Jornal do Comércio, 21/08/1909.

Percebida a importância dessa técnica, logo ela foi incorporada ao currículo escolar. Em 1914 a Datilografia tornou-se uma disciplina do Instituto Benjamin Constant, na rua Ramos Ferreira (MENSAGEM, 10/07/1914, p. 32). Em 1918 é criada oficialmente a Cadeira de Datilografia na Escola Normal (MENSAGEM, 10/07/1918, p. 140). O público-alvo dessa disciplina seria o feminino. Desde o início essa técnica ficou associada às mulheres. Sobre a importância do ensino de datilografia às órfãs do Instituto Benjamin Constant, o Diretor Desembargador Gaspar Vieira Guimarães afirmou que era seu propósito:

“[…] desenvolver efficazmente o ensino da dactylographia ás educandas que terminem o Curso Medio Complementar, habilitando-as a ganhar a vida no commercio, como auxiliares de escripta, emprego bastante remunerado na actualidade, precisando esta Directoria, para o alcance desse objectivo, apenas do credito indispensavel para a aquisição de seis machinas de escrever de typos diversos”. (MENSAGEM, 14/07/1923, p. 140).

Como escreveu o Diretor do Instituto Benjamin Constant, o curso de datilografia poderia garantir uma vaga no comércio. Ter um certificado nessa área era um requisito para assumir algum cargo nas instituições e repartições que iam sendo criadas na cidade. Em 1916, quando foi aberta uma agência do Banco do Brasil em Manaus, uma de suas exigências era que os candidatos interessados em uma vaga de emprego deveriam

“Sujeitar-se a exame, perante uma commissão nomeada pelo Banco, de portuguez, francez, inglez, geographia commercial, arithmetica, escripturação mercantil e dactylographia” (JORNAL DO COMÉRCIO, 29/07/1916).

A escola de datilografia mais famosa de Manaus no início do século passado foi a Escola Remington, criada em 1916 pelos proprietários da Livraria Palais Royal, localizada na rua Municipal (Avenida Sete de Setembro). Posteriormente foram criadas as escolas Royal e Underwood, ambas na Avenida Sete de Setembro. Não devem ser esquecidos os cursos de Datilografia da Santo Antônio Commercial School, na Avenida Sete de Setembro, e da Escola de Comércio Solón de Lucena. Dois interessantes registros fotográficos sobre alunas de datilografia foram publicados no jornal A Capital em 1917. Neles temos as jovens Bartyra Pucú Aguiar e Aracy Ferreira de Souza, alunas da Escola Remington, durante concurso realizado na mesma em 26 de julho daquele ano. O 1° lugar ficou com Amenaid Durand, enquanto Bartyra foi classificada em 2° lugar e Aracy em 3°, ambas recebendo os diplomas de competência profissional.

Aracy Ferreira de Souza, 3° lugar no Concurso de Datilografia da Escola Remington, em Manaus. FONTE: A Capital, 27/07/1917.

Como eram realizadas as provas de datilografia? A esse respeito é bastante elucidativo um informe de 1947 do concurso da Caixa Econômica Federal do Amazonas:

“DATILOGRAFIA – A prova de datilografia na qual serão exibidas condições de velocidade e correção, constará de cópia, durante 15 minutos, de trecho impresso, contendo mil e duzentos toques, nestas computados – letras, acentos, números e pontuação, e, também, os espaços entre as palavras e os paragrafos.

Sera atribuida a nota CEM, ao candidato que fizer cópia sem erro, dentro dos 15 minutos estabelecidos.

Os candidatos que não puderem executar a cópia dentro desse prazo, poderão prosseguir na prova, durante mais dez minutos, caso em que a graduação da nota de velocidade decrescerá até ZERO, na razão inversa do tempo utilisado.

A nota final sera dada deduzindo-se dos pontos referentes à velocidade, o total dos pontos negativos, correspondentes aos erros cometidos.
Será considerado habilitado nesta prova o candidato que obtiver nota igual ou superior a CINQUENTA pontos (50)”. (JORNAL DO COMÉRCIO, 20/11/1947).

Anúncio de 1938 da máquina de escrever 'Royal'. FONTE: Jornal do Comércio, 30/01/1938.

Diploma de Datilografia de 1942 do Advogado Dr. Eros Pereira da Silva (1923-2008), aluno da Escola Royal de Manaus. FONTE: Cedido gentilmente por Eros Augusto Pereira da Silva, seu filho.

Além dos cursos particulares, geralmente voltados para pessoas com maior poder aquisitivo, podia-se aprender datilografia em escolas públicas (eram poucas), igrejas e centros comunitários. A datilografia atinge o seu auge nos anos 1970. Entre as décadas de 1980 e 1990, com o surgimento e difusão dos computadores, essa técnica foi desaparecendo. Chegou um momento em que os cursos pararam de ser ofertados, restando apenas lembranças impressas em forma de diplomas ou fotografias.


FONTES:

Mensagem do Governo do Estado do Amazonas, 10/07/1914.

Mensagem do Governo do Estado do Amazonas, 10/07/1918.

Mensagem do Governo do Estado do Amazonas, 14/07/1923.

Jornal do Comércio, 29/07/1916.

Jornal do Comércio, 20/11/1947.