Artigo originalmente publicado no sexto número da Revista Discente Ofícios de Clio, dos cursos de História da Universidade Federal de Pelotas (UFPel), com o título 'A terra dos mortos na cidade do Rio Negro: Mudanças nas práticas funerárias na cidade
de Manaus e a construção do Cemitério de São José (1848-1859)'.
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Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa, UFAM¹
Resumo
Até determinado período do oitocentos, vivos e mortos conviviam no mesmo espaço, mantendo
relações bastante diretas. Essa relação estava a séculos arraigada no cotidiano. Os discursos
higienistas e as práticas de normatização do espaço público, com a construção de cemitérios
públicos e a proibição do contato tradicional com os cadáveres, distanciaram cada vez mais
esses dois. Dessa forma, pretende-se analisar como se deram as mudanças nas práticas
funerárias na cidade de Manaus na segunda metade do século XIX, partindo das primeiras
discussões presentes no Código de Posturas Municipais de 1848. Nesse período os discursos
médicos penetraram na região, sendo reforçados pelas graves epidemias que atingiram a capital
entre 1855 e 1856, que culminaram na construção do Cemitério de São José (1856-59), que
marcou o início de uma nova forma da população manauara relacionar-se com a morte e os
mortos.
Palavras-chaves: Morte, Práticas Funerárias, Cemitério.
Abstract
Until a certain period of the eight hundred, living and dead lived in the same space, maintaining
fairly direct relations. This relationship was rooted in the centuries. The hygienist discourses
and practices of standardization of the public space, with the construction of public cemeteries
and the prohibition of the traditional contact with the corpses, have distanced more and more
these two. In this way, the aim is to analyze the changes in funeral practices in the city of
Manaus in the second half of the 19th century, starting from the first discussions in the Code of
Municipal Postures of 1848. During this period medical discourses penetrated the region and
were reinforced by the serious epidemics that hit the capital between 1855 and 1856,
culminating in the construction of the São José Cemetery (1856-59).
Keywords: Death, Funeral Practices, Cemetery.
Introdução
As atitudes dos vivos diante da morte e dos mortos, no Ocidente, sofreram grandes
variações ao longo dos séculos, ainda que operadas lentamente. De acordo com Philippe Ariès
(1989), autor do clássico História da Morte no Ocidente, no período da Alta Idade Média existia
uma relação de convívio com a morte, sendo ela considerada um processo natural para o qual
se preparava durante a vida. Aguardava-se a morte no leito, rodeado por familiares e
conhecidos. Enterrados no interior das igrejas ou em seus terrenos, os mortos faziam parte do
cotidiano de todas as classes sociais. A morte era domesticada.
A partir dos séculos XI e XII, começam a se verificar mudanças sutis. A morte, enquanto
um processo comum a todos os homens e mulheres, de diferentes faixas etárias e classes sociais,
passou a ser encarada do ponto de vista individual, isto é, surgiu a preocupação com o destino
da alma, com a prestação de contas em outro mundo. Esse é o Dogma católico do Purgatório,
local sobrenatural que o historiador francês Jacques Le Goff definiu como “[…] um além
intermédio onde certos mortos passam por uma provação que pode ser abreviada pelos sufrágios
– a ajuda espiritual – dos vivos” (LE GOFF, 1995, p. 18-19).
É entre os séculos XVIII e XIX que ocorrem as mudanças mais marcantes e que nos
interessam. No século XVIII, a morte torna-se romântica, envolta de dramas. Ela assusta e ao
mesmo tempo impressiona, chegando mesmo a ser exaltada. Interessa não a própria morte, mas
a do próximo, sobre o qual cria-se uma memória post-mortem, um verdadeiro culto à
personalidade do falecido. Essa é a morte do outro. Por último, surgida entre fins do século XIX
e verificada até os dias de hoje, está a morte interdita, medicalizada. A morte tornou-se um tabu,
assim como os mortos tornaram-se elementos repugnantes. Não se fala e nem se convive mais
com a morte, como se esse processo e seus resultantes (os mortos) tivessem tornado-se
indesejáveis.
O objeto de estudo do presente artigo, as práticas funerárias na cidade de Manaus, situa-se no século XIX, na transição entre a morte romântica e a morte interdita² . As atitudes diante
da morte e as práticas funerárias sofreram mudanças profundas a partir da segunda metade do
século XIX. Se até então vivos e mortos coexistiam no mesmo espaço, os primeiros utilizando
uma série de ritos para que estes tivessem um bom destino final, nesse período começa a se
verificar um distanciamento que se tornará cada vez maior entre os dois. Essa ruptura foi
gestada por discursos higienistas e práticas de normatização do espaço público, elementos que,
no Brasil, foram reforçados por epidemias verificadas em diferentes momentos - e com
variações regionais - do século XIX.
Dessa forma, buscou-se analisar como se deram as mudanças nas práticas funerárias na
cidade de Manaus na segunda metade do século XIX, quando os discursos médicos penetraram
na região, estes corroborados pelas graves epidemias de cólera morbo e febre amarela que
atingiram a capital entre 1855 e 1856 (BOTELHO, 1987), culminando na construção do
Cemitério de São José (1856-59). Como fontes foram utilizadas falas de administradores locais, leis, decretos e jornais. Como referenciais teóricos, os estudos de Philippe Ariès (1989, 2012),
João José Reis (1997) e Claudia Rodrigues (1997) foram de extrema importância.
Miasmas, epidemias e o Cemitério de São José
Antigo Cemitério de São José (1856-1891). FONTE: Álbum O Estado do Amazonas (1899)/Instituto Durango Duarte.
Na Europa, no século XVII, foi desenvolvida pelos médicos Thomas Sydenham e
Giovanni Maria Lancisi a teoria miasmática, segundo a qual os odores expelidos de matérias
putrefatas poderiam causar graves doenças (SILVA; LINS; CASTRO, 2017, p. 174). Ao longo
de todo o século XIX, a teoria miasmática dominaria as discussões sobre a urbanização das
cidades, não sendo diferente no Império: No inciso 2 do artigo 66 da Lei Imperial de 1° de
Outubro de 1828, que reformulou as Câmaras Municipais, foram proibidos os enterros nas
igrejas, assim como ficou a cargo da polícia a vigilância sobre
"[…] o esgotamento de pantanos, e qualquer estagnação de aguas infectas;
sobre a economia e asseio dos curraes, e matadouros publicos, sobre a
collocação de cortumes, sobre os depositos de immundices, e quanto possa
alterar, e corromper a salubridade da atmosphera" (LEI IMPERIAL DE 1° DE
OUTUBRO DE 1828).
Percebe-se que, para o Estado, o contato com os mortos poderia trazer sérios riscos para
a saúde e salubridade públicas, dada a emissão de odores na “atmosphera”.
Os enterros nas igrejas, no Ocidente, foram uma tradição com origem na Antiguidade
Tardia. Philippe Ariés, em sua História da Morte no Ocidente, afirma que esse costume teve
início nos cemitérios extra urbem (fora das cidades), onde foram enterrados os primeiros
mártires cristãos. Templos foram sendo construídos onde esses santos eram enterrados, e a
população cristã, de forma a se associar a esses “mortos especiais”, passou a querer ser enterrada
ao lado destes. Deve-se destacar que, na Antiguidade greco-romana, existiam locais específicos
para os vivos e os mortos, sendo estes últimos destinados aos cemitérios fora das cidades,
construídos em zonas distantes. No entanto, destaca Ariés, “chegou um momento em que a
distinção entre os subúrbios onde se enterrava ad sanctos, porque se estava extra urbem, e a
cidade, sempre interdita às sepulturas, desapareceu” (ARIÈS, 1989, p. 26-27). As cidades
absorveram os subúrbios e, dessa forma, entraram em contato com os mortos.
A nível regional, as mudanças nas relações entre vivos e mortos chegaram ao Norte
primeiro na Província do Grão-Pará, que se transformava no contexto de crescimento das
atividades ligadas à extração do látex, passando por um intenso processo de urbanização em
diferentes administrações provinciais. Os enterros nas vilas e cidades paraenses eram práticas
que começavam a ser questionadas pelos médicos higienistas e pelas autoridades públicas, pois além de oferecerem perigo à saúde, não estavam de acordo com a civilização e a modernidade,
dada a importância que a Província ganhava no cenário nacional e internacional. Em 1850 é
inaugurado o primeiro cemitério público de Belém, o Cemitério de Nossa Senhora da Soledade.
De acordo com a historiadora Érika Amorim da Silva, que estudou o cotidiano da morte e a
secularização dos cemitérios da capital paraense entre 1850 e 1891, “este cemitério foi
construído em razão da epidemia de febre amarela de 1850, sendo que uma das medidas para
se combater a doença foi a proibição expressa de se sepultar as vítimas no interior das igrejas”
(SILVA, 2005, p. 74).
As primeiras discussões acerca da construção de um cemitério público em Manaus
aparecem no primeiro capítulo do Código de Posturas Municipais de 1848, quando a cidade era
capital da Comarca do Alto Amazonas, subordinada à Província do Grão-Pará. No 2° artigo
ficou estabelecido que as câmaras municipais que não cumprissem a Lei de 1° de Outubro de
1828, ou seja, que não construíssem cemitérios, seriam multadas em trinta mil réis por cada um
de seus membros caso não o fizessem até 1852. No 4° artigo, as câmaras que não possuíssem
terrenos para a construção de seus cemitérios deveriam propor ao governo da Província as
formas para obtê-los. O 5° artigo determinou que, assim que fossem erguidos os cemitérios,
seriam proibidos os enterros nas igrejas ou em seus átrios, com penalidades de multa de 20 mil
réis ou oito dias de prisão (SAMPAIO, 2016, p. 18).
O cemitério da capital não se concretizou com o Código de 1848. A abertura de um
cemitério público em Manaus passou a ser cogitada desde os primeiros anos da nascente
Província. Em 1853, o Presidente Herculano Ferreira Pena o elencou como uma das obras de
urgência para a capital. O 1° Vice-Presidente Manoel Gomes Corrêa de Miranda informava que
“a falta de materiaes, e mesmo de pessoas, que se proponhão a tomal-as por arrematação, tem
sido a cauza porque se não tem dado andamento a muitas obras de muita urgencia, como a
Matriz, Cemiterio, Pontes etc” (AMAZONAS, 09 de Maio de 1853 – Relatorio apresentado ao
Illm e exm. Snr. Conselheiro Herculano Ferreira Pena, Presidente da Provincia do Amazonas,
pelo 1° Vice-Presidente o Illm.e Exm. Snr. Dr. Manoel Gomes Corrêa de Miranda, p. 6). A
construção de um cemitério público na capital deixaria o Amazonas em consonância com a
Província vizinha e as demais de outras regiões em que estivessem sendo gestadas mudanças
nas práticas funerárias representadas pela construção de cemitérios públicos.
Apesar da proibição estabelecida na Lei de 1828, os enterros em igrejas, no Império,
ainda perdurariam por um bom tempo. Dada as dificuldades materiais, optou-se pelo
cercamento, em 1854, do terreno da Igreja dos Remédios que servia, há décadas, como
cemitério. Após o cercamento desse terreno, que serviria de cemitério provisório em Manaus, Manoel Gomes Corrêa de Miranda, Juiz de Direito da Comarca do Amazonas e Chefe de Polícia
da Província, informava que no artigo 5° do Código de Posturas Municipais ficava estabelecido
que, “logo que hajao cemiterios será prohibido enterrar-se cadaveres nos templos, ou atrios
destes, sob pena de ser multado o infractor em vinte mil réis, ou oito dias de prizão”
(ESTRELLA DO AMAZONAS, 24 de junho de 1854, p. 2-3). Repetia-se o 5° artigo do Código
de Posturas Municipais de 1848. Esse documento, assim como o Código de Posturas Municipais
de 1848, nos oferece um indício da prática dos tradicionais enterros em igrejas na capital da
Província do Amazonas.
João José Reis nos informa que, no século XIX, era de extrema importância ser
enterrado em solo sagrado, seja no interior das igrejas ou nas proximidades do terreno em que
elas foram construídas:
"[…] ter sepultura na igreja era como tornar-se inquilino na Casa de Deus. A
proximidade física entre cadáver e imagens de santos e anjos representavam
arranjo premonitório e propiciador da proximidade espiritual entre a alma e os
seres divinos no reino celestial". (REIS, 1997, p. 124).
Prática recorrente na sociedade, alvo de proibições desde o final da década de 20 do
século XIX, tornou-se tema de estudos de médicos brasileiros, que passaram a publicar
inúmeras teses criticando essa proximidade entre vivos e mortos, entre a área urbana e os
cadáveres, sempre citando os miasmas. O médico José Pereira Rego, o Barão do Lavradio,
publicou, em 1840, na Revista Médica Fluminense, interessantes considerações sobre a higiene
pública e os enterros nas igrejas. Para esse médico, existia a necessidade de se estabelecerem
no país os cemitérios fora das cidades, que já eram uma realidade na Europa. Considerava um
dever moral e religioso dar sepultura aos mortos, bem como uma questão de saúde. Se não fosse
assim, questiona, “o que seria o homem que se habituasse com a imagem da morte, e visse
constantemente os progressivos estragos de nossa destruição material?”. Essa é uma das
características do medo da morte no século XIX que Philippe Ariès destaca, “a repugnância
[…] em imaginar o morto e seu cadáver” (ARIÈS, 2012, p. 151). José Pereira Rego continua
suas considerações, afirmando que os enterros, na Corte, eram feitos quase que exclusivamente
nas igrejas, em suas catacumbas e carneiros. Uma passagem de seus escritos é bastante
esclarecedora para compreender a dimensão do ideário médico da época:
"Iie sem duvida difficil destruir certos usos e costumes enraizados em qualquer
povo, ainda mesmo quando de sua pertinacia nenhum bem resulte á sociedade,
e antes prejuizos mais ou menos consideraveis; e isto tanto mais difficil se
torna, quanto taes usos dizem respeito a objectos relativos ás crenças
religiosas, por isso que o fanatismo e a superstição, achando sempre muitos proselytos nos indivíduos nimiamente credulos, e na classe mais ignorante da
sociedade, fazem com que tudo quanto tenda a acabar com taes abusos e
costumes, e a introduzir outros que mais conducentes sejão ao bem estar della,
fique sem effeito, de modo que taes usos continuão e se perpetuão, tanto pelo
que acabamos de expender, como tambem pela má intenção de certas pessoas
que, de qualquer ensejo favoravel, se aproveitão para promovera desordem e
conseguir seus fins particulares". (REVISTA MÉDICA FLUMINENSE, 06 de
setembro de 1840, p. 245-246).
Para José Pereira Rego, a prática dos enterros nas igrejas, além de ser um perigo para a
saúde pública, era o reflexo de uma sociedade cujas crenças religiosas estavam fortemente
arraigadas no cotidiano, dominando todos os aspectos da vida, do nascimento à morte. As
atitudes e práticas de uma sociedade majoritariamente católica estavam em conflito com
costumes cada vez mais secularizados que se tentava importar para o país, no caso a construção
de cemitérios fora dos limites das cidades e o consequente enterramento dos cadáveres nesses
locais, longe do contato com os vivos. Essas rupturas extrapolavam os limites das questões de
higiene pública, penetrando no campo da cultura e das tradições populares. De acordo com o
historiador Agostinho Júnior Holanda Coe, que analisou as mudanças ocorridas nos
enterramentos na cidade de São Luís (MA) entre 1828 e 1855, “tais práticas cotidianas, com o
desenvolvimento da ideia de que o ar da cidade podia ser contaminado pelos vapores
cadavéricos, foram paulatinamente se tornando objetos de censuras” (COE, 2008, p. 22). Esses
discursos foram absorvidos pelos dirigentes políticos de Manaus.
Até o cercamento do terreno perto da Igreja dos Remédios, o cemitério provisório, os
enterros eram feitos no interior das igrejas e no largo da antiga Matriz. Manoel Gomes Corrêa
de Miranda, Juiz de Direito da Comarca do Amazonas e Chefe de Polícia da Província, em um
anúncio público de 1854, escrevera que para o bem da salubridade pública os enterros nesses
lugares deveriam acabar, pois além de não serem propícios para o descanso dos finados, as
covas eram mal feitas, pouco profundas, deixando os corpos expostos aos transeuntes e à ação
de animais como porcos e cachorros. Também existiam outras questões, “como estar este lugar
no centro da Cidade, e o continuado vento, que necessariamente hade conduzir os miasmas para
os vivos” (ESTRELLA DO AMAZONAS, 13 de maio de 1854, p. 7). Percebe-se, através das
falas de autoridades públicas da Província, a penetração dos discursos higienistas no tocante
das práticas funerárias locais.
Sobre um possível choque, em Manaus, entre a prática dos enterros nas igrejas e os
costumes secularizados, um trecho da fala de Manoel Gomes Corrêa de Miranda chamou a
atenção. No início de seu texto, ele afirma que “A algumas pessoas temos ouvido que o – povo
– vê com desgosto os preparos que ora se fazem para um Cemiterio no terreno próximo á Igreja dos Remedios”. E continua dizendo que “Não sabemos se taes pessoas são verdadeiros órgãos
do publico, ou se exprimem apenas uma opinião individual” (ESTRELLA DO AMAZONAS,
13 de maio de 1854, p. 7). Teria tido, por parte da população de Manaus, resistência ao
cercamento do cemitério e o consequente fim dos enterros no largo da antiga Matriz e no interior
das igrejas? Seria o descontentamento de pessoas ligadas ao poder eclesiástico, para quem o
enterro nos templos e terrenos eclesiásticos provavelmente garantia ganhos financeiros? Ou
seria essa parte da fala de Manoel Gomes apenas um artifício criado para argumentar à favor
do cemitério provisório? Não se sabe ao certo, mas possivelmente essas transformações das
práticas funerárias não passaram despercebidas.
A resistência mais forte à imposição da construção de um cemitério público ocorreu em
1836 em Salvador, na Bahia, ficando conhecida como Revolta da Cemiterada. Escravos,
homens e mulheres, pessoas de diferentes classes sociais, destruíram o recém-inaugurado
Cemitério do Campo Santo, construído por uma empresa privada que ganhou o monopólio, por
30 anos, dos enterros realizados na cidade. Os enterros nas igrejas foram proibidos, o que fez
um grande grupo de pessoas, em defesa da continuidade das práticas funerárias tradicionais,
destruir o Campo Santo. João José Reis afirma que, em outras partes do Império, movimentos
como esse não ocorreram, “mas as novas diretrizes não foram introduzidas sem oposição” e,
“com ritmos diferentes, em todo o Império, mesmo no interior, as populações foram se
adaptando ao novo regime funerário” (REIS, 1997, p. 139-140).
Os discursos dos médicos higienistas, com suas práticas racionalistas e secularizadas,
com a normatização do espaço público mediante a construção de cemitérios distantes da cidade
ou pelo menos da área central, ganharam mais força quando epidemias devastadoras passaram
a assolar o Império do Brasil. Em 1855, através de um navio vindo de Portugal que aportou em
Belém, capital da Província do Pará, o cólera morbo espalhou-se pelas demais províncias da
região Norte, Nordeste, Sul e Sudeste do Império, vitimando, segundo algumas estimativas,
cerca de 200.000 pessoas, sendo uma epidemia que
"[…] abateu-se com violência sobre as populações mais pobres e mal alimentadas, mais propensas à utilização de águas contaminadas, excluídas
das mínimas condições de higiene que o progresso urbano no Brasil já
assegurava às camadas sociais mais altas". (CASTRO SANTOS, 1994, p. 88).
Nesse mesmo ano, em um expediente do governo da Província do Amazonas publicado
no jornal Estrella do Amazonas, autorizou-se a abertura de um crédito de dois contos de réis
para cuidados médicos e higiênicos caso o cólera atingisse a província. O tenente Damazo de
Souza Barriga, Subdelegado de Polícia de Serpa, nesse mesmo documento, pedia que o Presidente da província desse “prompta execução […] sobre a escolha de um lugar, em que
d’ora em diante se faça os enterramentos, visto que o que até agora tem servido de Cemitério,
é impróprio, e pode tornar-se prejudicial á saúde dos habitantes d’essa Freguezia” (ESTRELLA
DO AMAZONAS, 21 de julho de 1855, p. 5). A escolha de um lugar apropriado para fazer os
enterros, em Manaus, era uma questão de urgência, dada a ameaça do cólera, que já estava
fazendo milhares de vítimas na província vizinha. Os gases expelidos dos cadáveres poderiam
facilitar o contagio da doença. O Subdelegado também mandou que o Inspetor da Tesouraria da
Fazenda dispendesse a quantia de duzentos mil réis para que a comissão formada pelo
Presidente da Província, pelo Dr. Antonio D’ Aguiar e pelo Vigário pudesse ajudar os que
fossem atacados pelo cólera com mantimentos e cuidados médicos.
Apesar de terem sido tomadas todas essas precauções, o cólera penetrou na Província
do Amazonas. Casos foram verificados em Manaus, Vila Bela da Imperatriz, Serpa e Andirá.
Em 1856, o número de coléricos, em Manaus, era de 46, 78 em Vila Bela, e 64 em Serpa e
Andirá, totalizando 188 infectados, dos quais 3 vieram a óbito (AMAZONAS, 08 de Julho de
1856 - Relatorio apresentado á Assemblea Legislativa Provincial, Pelo Excelentissimo Senhor
Doutor João Pedro Dias Vieira, Presidente Desta Província, p. 3-4). Apesar das estatísticas sobre
o cólera no Amazonas mostrarem que o número de óbitos foi bastante inferior ao de outras
províncias como a do Rio de Janeiro, uma outra epidemia, no mesmo período, seria devastadora
na região: a de febre amarela. O primeiro caso foi registrado em 12 de fevereiro de 1856, tendo
falecido, na capital, até junho daquele ano, 142 pessoas. Dada a dimensão da epidemia de febre
amarela e o número de mortos, o Presidente João Pedro Dias Vieira tomou a seguinte medida
em relação aos enterros e o cemitério provisório:
"Mandei vedar, depois de ouvido o parecer de pessoas profissionaes, os
enterramentos no Cemiterio provisorio, existente no Bairro dos Remedios, e
abrir outro em lugar apropriado na estrada da Caxoeira, que é o que
actualmente esta servindo". (AMAZONAS, 08 de Julho de 1856 - Relatorio
apresentado á Assemblea Legislativa Provincial, Pelo Excelentissimo Senhor
Doutor João Pedro Dias Vieira, Presidente Desta Província, p. 5).
As epidemias foram a última pá de terra que sedimentou as relações de convivência
entre vivos e mortos. Os ritos fúnebres, que em sua maioria demandavam contato direto com
os cadáveres, foram sendo suprimidos para manter em segurança a saúde dos vivos. “Em
primeiro lugar ficava agora”, diz João José Reis, “a saúde física dos vivos, não a saúde espiritual
dos mortos”. “Entre as primeiras providências figurava a expulsão destes da cidade dos vivos,
das igrejas e dos cemitérios intramuros” (REIS, 1997, p. 140-141). Claudia Rodrigues, que estudou as tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro do século XIX, afirma que é
evidente a relação entre a criação dos cemitérios públicos e as epidemias e que,
"apesar de o discurso médico ter feito seus adeptos e as autoridades terem
legislado a respeito do estabelecimento dos prédios mortuários, seria apenas
com o advento de um surto epidêmico, com um alto índice de mortalidade, é
que os mortos seriam definitivamente transferidos para longe dos vivos, para
os cemitérios públicos". (RODRIGUES, 1997, p. 105).
Da mesma forma que ocorrera na Corte estudada por Claudia Rodrigues, os cemitérios
públicos, que tomariam das igrejas o monopólio dos enterros, foram surgindo nas cidades de
Norte a Sul do Império que foram atingidas pelas epidemias, fossem de cólera ou de febre
amarela, no caso de Manaus.
O cemitério aberto na Estrada da Caxoeira (posteriormente Estrada de Epaminondas,
Avenida Epaminondas), em Manaus, trata-se do Cemitério de São José, cuja construção, como
foi citado, cogitava-se desde 1853, e que serviria de cemitério público da capital até sua
desativação em 1891. O Cemitério dos Remédios, que já era considerado um local impróprio
para os enterros, atingiu rapidamente sua capacidade de ocupação dada a quantidade de mortos
pela epidemia de febre amarela em um curto espaço de tempo (fevereiro a junho de 1856), o
que deu origem à nova necrópole, em região, naquele período, considerada distante do resto da
cidade. Ainda no relatório de 1856, o Presidente informava que
"Para auxiliar a sua conclusão peço que consigneis algum quantitativo no
orçamento, assim como que me habiliteis com o dinheiro necessario á
manutenção permanente da Enfermaria, que para os indigentes mandei fundar
n’ uma das salas do Hospital Militar de S. Vicente". (AMAZONAS, 08 de Julho
de 1856 - Relatorio apresentado á Assemblea Legislativa Provincial, Pelo
Excelentissimo Senhor Doutor João Pedro Dias Vieira, Presidente Desta
Província, p. 5).
Recebeu seu primeiro inumado em 07 de março de 1856, João Fleury da Silva, vítima
do cólera morbo (ESTRELLA DO AMAZONAS, 15 de março de 1856, p. 6). Pela constante
falta de recursos, de materiais e de mão de obra, as obras do Cemitério de São José se
arrastariam até 1859. Em 1857, João Pedro Dias Vieira informava ao 1° Vice-Presidente Manoel
Gomes Corrêa de Miranda que, dada
"a falta de operarios, e por ultimo, as copiosas e continuadas chuvas, que tem
cahido, vedaraõ-me de mandar construir a Capella e a respectiva muralha".
(AMAZONAS, 26 de fevereiro de 1857 – Relatorio apresentado pelo Exm.
Snr. Doutor João Pedro Dias Vieira, ao 1° Vice-Presidente da Provincia o Exm.
Snr. Dr. Manoel Gomes Correa de Miranda, no acto de passar-lhe a
administração, p. 2).
O Cemitério de São José foi concluído em 1859, com uma capela, e cercado por madeira
do tipo acariquara. No dia 06 de maio do mesmo ano, transladou-se do Seminário para a capela
da necrópole a imagem de São José, benzida pelo Vigário que depois celebrou uma missa pelo
descanso das almas dos que ali já tinham sido sepultados. A construção da capela e a
transladação de uma imagem sacra para o local possuem explicações profundas. Com os
enterros em igrejas proibidos, homens e mulheres preocupavam-se com a perda do contato mais
direto com o sagrado. O filósofo Mircea Eliade afirma que é
"desejo do homem religioso de mover-se unicamente num mundo santificado,
quer dizer, num espaço sagrado. É por essa razão que se elaboraram técnicas
de orientação, que são, propriamente falando, técnicas de construção do
espaço sagrado". (ELIADE, 2010, p. 32).
Dessa forma, a construção de uma capela católica, com a imagem de um santo padroeiro,
sacralizava o terreno do Cemitério de São José, tornando-o de fato um campo santo, eliminando
assim a preocupação de não se ter sepultura em contato com o sagrado. A encomenda do corpo
passaria a ser realizada nesse local. Esse era, pelo menos nos cristãos católicos do oitocentos,
um dos maiores medos, o de não ser enterrado em solo sagrado.
Para o novo cemitério de Manaus foi criado um regulamento dividido em 5 capítulos,
totalizando 46 artigos, que versavam desde o corpo de funcionários até as sepulturas e as
inumações, que são as partes que mais interessam. A criação de um regulamento visava o
estabelecimento de regras que padronizassem esse espaço público, bem como o que fosse
praticado em seu interior.
No artigo 4 do capítulo 2, que versa sobre as sepulturas, enterros e exumações, ficou
estabelecido que cada sepultura teria 10 palmos de profundidade, 3 e meio de largura e 7 de
comprimento para adultos, 5 para crianças, com a distância de 2 palmos nas laterais e nas
cabeças. Em cada sepultura seria enterrado apenas um cadáver, “salvo o caso de grande
epidemia, que torne indispensavel sepultarem-se os cadaveres em vallas, as quaes teraõ a maior
profundidade possivel” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 1). As sepulturas
eram individualizadas, no entanto, em caso de epidemias como as de 1855 e 1856, os cadáveres
seriam enterrados em valas comuns profundas, evitando assim o rápido esgotamento do terreno.
O fantasma da epidemia rondava a capital. Determinou-se, no artigo 7 desse capítulo, que as
sepulturas de pessoas vitimadas por epidemias só seriam reabertas após 8 anos, com “as cautelas
exigidas pela sciencia” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 1)
Apesar dos ritos fúnebres que versavam sobre o destino da alma do morto estarem quase
que inteiramente suprimidos, surge a preocupação com o cadáver, mas não a preocupação
espiritual. Interessa o estado físico do corpo, a causa mortis. Como determinou o artigo 5,
nenhum cadáver poderia ser enterrado sem ter se passado 24 horas, exceto em casos de
epidemia. Em casos normais, quem descumprisse a medida receberia uma “multa de 10 á
20$000 réis” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 1). Em caso de morte suspeita
ou violenta, o corpo só seria enterrado depois de um exame de “corpo de delicto pela autoridade
competente, declarando-se no assento de obito essa circumstancia” (REGULAMENTO N° 11
de 26 de Maio de 1859, p. 1).
No artigo 12 ficou estabelecido que, somente por determinação da Câmara Municipal,
com aprovação do Presidente da Província, seriam concedidas sepulturas distintas para “o
cadaver de pessoa de alta jerarchia”. Os escravos, pelo artigo 38, seriam enterrados em
sepulturas comuns, “nos quarteirões para isso destinados” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de
Maio de 1859, p. 3). No que diz respeito às atitudes, aos ritos e, principalmente, ao local de
sepultamento, o espaço cemiterial, ela é o último estágio onde é concretizada a reprodução de
diferenças sociais que acompanham homens e mulheres desde o início da vida.
Os preços praticados no Cemitério de São José, conforme o artigo 15, eram:
"Por sepultura commum – 2:000
Reservada – 6:000
A perpetuidade – 60:000". (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859,
p. 2).
Os jazigos perpétuos teriam limite para 4 cadáveres, não podendo ser negociados com
outras pessoas e podendo ser utilizados apenas por ascendentes ou descendentes em linha reta
(art. 13, 15). Nestes poderiam ser erguidos mausoléus e carneiros cemiteriais (art. 14). Teriam
direito a sepulturas gratuitas, estabelecidos no artigo 16, os seguintes grupos:
"§ 1° Os cadaveres de pessoas indigentes, mediante attestado do Parocho, ou
da autoridade policial.
§ 2° Os das praças de pret.
§ 3° Os dos presos pobres precedendo attestado da autoridade policial.
§ 4° Os dos suppliciados, quando naõ reclamados por seos parentes e amigos.
§ 5° Os cadaveres encontrados em qualquer logar publico, quando não haja
quem lhes dê sepultura, precedendo attestado do Parocho, do da autoridade
policial". (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 2).
Conforme o artigo 44, nenhum cadáver poderia ser sepultado sem a “previa sciencia do
Parocho; afim de que possa este fazer os assentos, ecumprir os deveres, que as leis civis e
eclesiásticas lhe impõe” (REGULAMENTO N° 11 de 26 de Maio de 1859, p. 3). Por mais que os enterros não fossem mais realizados no interior dos templos, todos os diferentes estágios da
vida do brasileiro do oitocentos, nascimento (batismo), casamento e morte, continuavam
passando pelo crivo da Igreja Católica, situação que mudaria a partir de 1891, quando Estado e
Igreja se separam.
Conclusão
Os tradicionais enterros no interior de igrejas Católicas, intra muros, prática comum aos
luso-brasileiros desde o período colonial, passaram a declinar no século XIX. Os discursos
médicos criados na Europa, com medidas médicas e sanitaristas, passaram a criticar e
repreender veementemente essa antiga prática funerária em nome da saúde pública, tendo início
a separação entre vivos e mortos, que mantinham uma relação secular. No Brasil, as epidemias
ocorridas em diferentes momentos do século XIX deram força e amplificaram esses discursos,
introduzidos nas falas dos dirigentes e da imprensa. Na capital da Província do Amazonas,
conforme concluiu-se na pesquisa, não foi diferente.
Em Manaus, atingida por duas epidemias entre 1855 e 1856, os enterros tiveram fim nas
igrejas e no cemitério provisório, localizado no centro da cidade, em terreno da Igreja dos
Remédios, sendo os mortos levados para o Cemitério de São José, criado em decorrência da
mortandade gerada pela epidemia de febre amarela, em área distante das habitações, com
normas para o funcionamento e para os enterros.
Não foram apenas os mortos os sepultados. O Cemitério de São José não foi apenas
mais uma construção, mas o reflexo de uma época. No bojo dessas transformações
características do século XIX, sepultaram-se também práticas, costumes e tradições antigas,
sendo esfriadas as relações entre vivos e mortos.
Notas:
¹ Graduando em Licenciatura Plena em História na UFAM.
² A morte romântica corresponde à sentimentalização do processo, fazendo surgir a preocupação com a finitude
do próximo e a memória em torno de sua figura. A morte interdita é a negação desse processo e dos elementos a
ele associados, como os mortos, que se tornam motivo de tabu.
Fontes utilizadas
Jornal Estrella do Amazonas, 13 de maio de 1854.
Jornal Estrella do Amazonas, 24 de junho de 1854.
Jornal Estrella do Amazonas, 21 de julho de 1855.
Jornal Estrella do Amazonas, 15 de março de 1856.
Jornal Estrella do Amazonas, 07 de março de 1857.
Jornal Estrella do Amazonas, 27 de julho de 1859.
Relatorio apresentado ao Illm e exm. Snr. Conselheiro Herculano Ferreira Pena, Presidente da
Provincia do Amazonas, pelo 1° Vice-Presidente o Illm.e Exm. Snr. Dr. Manoel Gomes Corrêa
de Miranda, em 09 de Maio de 1853.
Relatório apresentando a Assemblea Legislativa Provincial, pelo Excelentissimo Senhor Doutor
João Pedro Dias Vieira, Presidente da Província do Amazonas, 08 de julho de 1856.
Relatorio apresentado pelo Exm. Snr. Doutor João Pedro Dias Vieira, ao 1° Vice-Presidente da
Provincia o Exm. Snr. Dr. Manoel Gomes Correa de Miranda, no acto de passar-lhe a
administração, no dia 26 de Fevereiro do corrente anno. Publicado em Estrella do Amazonas,
07 de março de 1857.
Regulamento N° 11 de 26 de Maio de 1859. Publicado em Estrella do Amazonas, 27 de julho
de 1859.
Lei Imperial de 1° de Outubro de 1828. Dá nova fórma ás Camaras Municipaes, marca suas
attribuições, e o processo para a sua eleição, e dos Juizes de Paz. Disponível em:
http://www2.camara.leg.br/legin/fed/lei_sn/1824-1899/lei-38281-1-outubro-1828-566368-
publicacaooriginal-89945-pl.html. Acesso em 24/05/2018.
Considerações sobre alguns objectos relativos a’ hygienne publica, pelo Dr. José Pereira Rego.
Revista Médica Fluminense, N° 6. Vol. 6. Setembro de 1840.
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