sábado, 7 de março de 2020

Anjinhos Inocentes: A Morte Infantil no Amazonas entre os séculos XIX e XX


Artigo publicado no volume 3 da Manduarisawa, Revista Eletrônica Discente do Curso de História da Universidade Federal do Amazonas. Link para a leitura do artigo na revista:



Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa


RESUMO:


As representações sobre a criança e a infância sofreram mudanças profundas no Ocidente. Passaram da indiferença medieval aos cuidados da modernidade burguesa. Essas mudanças tiveram como pano de fundo a mortalidade. Se no período medieval as crianças morriam em grandes quantidades, sendo logo substituídas por outras, no período moderno e na contemporaneidade, os avanços tecno científicos, a valorização da individualidade, da constituição da família burguesa, aumentaram a expectativa de vida. A morte de uma criança passou de fato corriqueiro à tragédia. No Brasil oitocentista e até meados do século XX, existia um rico universo simbólico sobre a morte infantil. As crianças eram vistas como anjos que rogariam por seus familiares no outro mundo, o que amenizava a perda física. No presente artigo busca-se apreender esse universo de crenças entorno da morte infantil no Amazonas. A partir da análise de diferentes fontes, documentos oficiais, publicações fúnebres em jornais e artefatos mortuários, foram apresentadas as concepções sobre a morte infantil no Amazonas, as permanências e rupturas de crenças e práticas entre os séculos XIX e XX.

Palavras-chaves: Morte; Infância; Amazonas.

ABSTRACT:

Representations of children and childhood have undergone profound changes in the West. They passed from medieval indifference to the care of bourgeois modernity. These changes had against the backdrop of mortality. If in the medieval period the children died in large quantities, and soon replaced by others, in the modern period and in the contemporaneity, the techno-scientific advances, the valorization of the individuality, of the constitution of the bourgeois family, increased the life expectancy. The death of a child has, in fact, passed by the tragedy. In nineteenth-century Brazil and until the mid-twentieth century, there was a rich symbolic universe about infant death. The children were seen as angels who would pray for their families in the other world, which softened the physical loss. In the present article we seek to apprehend this universe of beliefs surrounding infant death in Amazonas. From the analysis of different sources, official documents, funeral publications in newspapers and mortuary artifacts, the conceptions about infant death in Amazonas were presented, the permanences and ruptures of beliefs and practices between the nineteenth and twentieth centuries.

Keywords: Death; Childhood; Amazonas.


Concepções sobre a infância e a morte infantil no Ocidente

As representações sobre a criança e a infância, no Ocidente, sofreram mudanças significativas desde a Idade Média. Seu principal estudioso e expoente, o historiador francês Philippe Ariès, analisou essas transformações. No período medieval, a criança era vista como um adulto em miniatura, que logo que tivesse se constituído fisicamente e dado seus primeiros passos, era incorporada a sociedade, aos trabalhos manuais. Concorria para isso a alta taxa de mortalidade infantil no período. A sensibilidade, quando da morte de crianças, praticamente não existia, dada a quantidade de falecimentos. Nas palavras de Ariès, “[…] a arte medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a infância nesse mundo”1.

No entanto, Ariès afirma que existia um sentimento, só que superficial, o qual ele denominou de ‘paparicação’. Em seus primeiros anos a criança era tratada como um pequeno animal, um ser engraçado que a todos divertia. “Se ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois uma outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato”2.

A própria definição de um termo para essa fase da vida era imprecisa entre os sábios medievais. Não se chegava a um concesso de classe, gênero e outros elementos. De acordo com os historiadores Carlos Eduardo Ströher e Cássia Simone Kremer, isso se dava porque “[…] a própria noção de tempo, para os medievais, não era relevante”3. A preocupação com a delimitação de fases da vida, principalmente a infância, é tardia.

A ruptura, ainda que gestada lentamente, representada pela Modernidade, entre os séculos XVI e XVIII, faz surgir um novo tipo de mentalidade em relação à criança. Nas cidades, impregnadas agora por valores burgueses, pela valorização da individualidade, da privacidade e da racionalidade, a criança começa a receber cuidados, tanto referentes à instrução como à manutenção de sua vida. Os adultos, as famílias, percebem que elas possuem necessidades específicas. Começam a surgir os estágios da infância como conhecemos na contemporaneidade. Segundo a historiadora Beatriz de Moraes Salles Formigoni,

“Novos comportamentos familiares se estabelecerão devido ao novo interesse sobre si mesmo e à decadência do compromisso da linhagem (característico da Idade Média). Busca-se preservar a saúde, a vida, a personalidade, pois “meu corpo é meu”, porém perpetua-se a vida pelo nascimento dos filhos. Daí nasce a preocupação dos pais sobre a criança em amá-la como ela é”4.

É nesse período que surgem os primeiros manuais sobre como educar as crianças, destacando-se os trabalhos do teólogo e humanista holandês Eramos de Roterdã (1466-1536), De Pueris (Dos Meninos) e De Civilitate Morum Puerilium (A Civilidade Pueril). Erasmo via a educação como um meio de aperfeiçoar o ser humano, devendo ser incentivada desde tenra idade e jamais negligenciada, tanto no âmbito familiar quanto no escolar5.

O controle dos corpos, das atitudes, postos em prática pelo Estado e pela Igreja, principalmente pela administração da educação pública, sempre vigilantes a qualquer sinal de desvio, e os cuidados da nova família burguesa, vão surtindo efeito, mesmo que pelo controle, na sobrevida daqueles que, pelo menos um ou dois séculos antes, morriam em grandes quantidades.

A partir da segunda metade do século XIX, com a intensificação da industrialização, o crescimento e urbanização das cidades, da corrida capitalista por áreas de exploração e consumo, surgem novas descobertas que melhoram a vida de parte da população, possibilitando, se comparado com períodos anteriores, um aumento na qualidade e expectativa de vida. A historiadora italiana Claudia Pancino, em estudo sobre a criança e a morte na Idade Moderna, afirma que, graças a essas novas condições,

“Na família, a criança passará a ser considerada pouco a pouco mais importante, o batismo será celebrado alguns dias após o nascimento. Será preciso ainda um século para que melhores condições comecem a tornar a morte de uma criança cada vez mais excepcional, e insuportável”6.

Permeia essas mudanças, o surgimento de sentimentos de afetividade em relação a criança, como pôde ser visto, a morte. Tais transformações, no entanto, não ocorreram de forma unificada ao redor do mundo. No Brasil oitocentista, e até mesmo mais tardiamente, no século XX, existia um rico universo de ritos fúnebres e atitudes diante da morte com origens no período colonial. Homens e mulheres de diferentes estratos sociais, mergulhados em um catolicismo popular que mesclava crenças ameríndias e africanas, cuidavam de seus mortos, participando de todos os processos (preparação do corpo, escolha da roupa, velório e enterro) para que fosse feita uma passagem sem problemas para o outro mundo, ou para que a estadia no Purgatório resultasse na entrada no Paraíso. A morte de uma criança ainda não havia se transformado em uma tragédia como passara a ser encarada em meados do século XX.

A criança, no Brasil colonial, assim como ocorria na Europa, era vista como um pequeno adulto. As crianças escravas, órfãs, abandonadas e pobres logo adquiriam um ofício, atuando como trabalhadores compulsórios nos meios urbano e rural. Os filhos da elite recebiam uma educação erudita, pois dessa forma poderiam se apropriar de trabalhos burocráticos e aumentar o patrimônio familiar. Apesar dessa enorme diferença de realidades, ambas eram tratadas com indiferença. Se a vida apresentava-se árdua, na morte essas crianças recebiam um melhor tratamento, sendo associadas e idealizadas como anjinhos.

De acordo com o historiador e sociólogo Gilberto Freyre, em Casa Grande & Senzala, a crença de que as crianças batizadas que morriam tornavam-se anjos têm origem com os jesuítas no primeiro século da colonização. Diante da alta mortalidade infantil, principalmente entre indígenas, os padres jesuítas “[…] talvez para atenuar entre os índios o mau efeito do aumento da mortalidade infantil que se seguiu ao contato ou intercurso em condições disgênicas, entre as duas raças, tudo fizeram para enfeitar ou embelezar a morte da criança”7. É considerável o peso do catolicismo no surgimento dessa crença que teve uma longa sobrevida. Em 1825, o viajante francês Du Petit Thouars registrou o seguinte sobre o velório de uma criança em Santa Catarina:

“[…] Vi, no fundo da sala, um estrado sobre o qual estava disposta no altar uma criancinha, cercada de lírios e vasos com flores; tinha o rosto descoberto e estava ricamente vestida, tendo na cabeça uma coroa de sempre-vivas e um ramo na mão”. Em volta do altar com o meninozinho morto, esteiras; e ajoelhadas sobre as esteiras, mulheres em trajos de festa, cantando. Depois houve até danças alegres”8.

No presente artigo busca-se apreender esse universo de crenças entorno da morte infantil no Amazonas. A partir da análise de diferentes fontes, documentos oficiais, publicações fúnebres em jornais e artefatos mortuários, foram apresentadas as concepções sobre a morte infantil no Amazonas, as permanências e rupturas de crenças e práticas entre os séculos XIX e XX.


Morte infantil no Amazonas nos séculos XIX e XX


Em 1869, o Capitão e Inspetor da Tesouraria da Fazenda Provincial José Justiniano Braule Pinto e sua esposa, D. Carolina de Lemos Braule Pinto, perderam a filha Carolina. A romaria até o cemitério público de Manaus, mesmo sob forte chuva, foi bastante concorrida, tendo sido acompanhada pela música dos alunos do Instituto dos Educandos Artífices. Os articulistas do jornal Amazonas publicaram uma nota de pesar, associando-se “á dôr funda que lhe punge o coração”, e lembravam o casal de que deveriam ficar resignados “pela gloria de levarem ao Throno do Eterno mais esse cherubim, que vai gozar no céo da bemaventurança ao lado de Deos”9. As crianças, incapazes de pecar e por isso puras, eram vistas como pequenos anjos que, ao morrer, eram logo incorporados ao reino divino. Não é de se estranhar, conforme assinala o historiador José Carlos Reis, que estudou o cotidiano da morte no Brasil oitocentista, que fosse comum “[…] considerar positivo que as famílias contassem com anjos familiares que as protegessem”10.

O historiador Luiz Lima Vailati, em estudo comparativo sobre as representações da morte infantil no Rio de Janeiro e na Inglaterra no século XIX, vai mais além, buscando outras explicações para essa ideia de aceitação em torno da morte infantil, listando três elementos para a sua compreensão:

“Em primeiro lugar, encontra-se o entendimento de que a morte infantil é um privilégio, pois ao morrer na condição de criança esta tem sua salvação garantida. Em segundo, aparece a convicção de que lamentar a morte de crianças é protestar contra a vontade de Deus que, como lembrou no texto sagrado, tem especial preferência na companhia destas. Por fim, há a ideia de que a criança morta é uma intercessora entre aqueles que a amaram aqui na terra e as potências celestes, significando assim um trunfo inestimável para a proteção dos familiares em vida e salvação destes na morte”11.

Luís da Câmara Cascudo, historiador e folclorista, identifica essa tradição, no Brasil, como sendo de origem portuguesa, pois em terras lusitanas, além dos aspectos elencados por Vailati, a morte infantil era encarada até mesmo com festividades. Câmara Cascudo denominou essa tradição de “uma sime indiferença conformada pela morte das crianças”12.

No município de Tauapessassu, em 1885, o inocente João da Matta, filho de Bruno da Costa Fonseca, após passar alguns dias doente, “voou ao céo cheio de alegria á abraçar outros anjos, que de braços abertos o encontrarão”, sendo “mais um anjo que irá ter com Deus rogar pela felicidade de seus pais cá na terra”. O autor desse informe fúnebre pediu “bastante resignação com a vontade do Altíssimo13, o que nos lembra da passagem de Vailati, segundo a qual deveria ser respeitada a vontade divina. Esses aspectos também apareciam em ocasiões inusitadas, como em uma nota cômica publicada no jornal Comércio do Amazonas em 1900. A irmã de uma criança que tinha morrido perguntou da mãe para onde a tinham levado. A mãe explicou que ela tinha ido para o cemitério, pois tinha se tornado um anjinho de Deus. A criança, ainda com dúvidas, disse “então, mamãe, quando Deus precisa de anjinhos no céo encommenda ao doutor?”14.

A ideia de um reino divino formado por vários anjinhos é vista em outras publicações fúnebres como as que foram dedicadas à filha de José Justiniano e Carolina de Lemos e ao filho de Bruno da Costa, assemelhando-se a uma contabilidade espiritual. O comerciante James Baird, em 1885, “passou […] pelo desgosto de perder um seu interessante filhinho”, que foi “[…] mais um anjo que sobe ás regiões celestes”15. Mais um, mais dois. Esses anjinhos diariamente iam para essas regiões celestes, sendo representados da forma como são imaginados os anjos, seres alados. Assim fizeram o inocente Elyseo, que às 3:30 da madrugada de 09 de outubro de 1893, “voou à Mansão Celestial”16; e, anos antes, a pequena América, que em 1885 “passou á celestial mansão para entoar o harmonioso côro divino”17.

O historiador paranaense Juarez José Tuchinski dos Anjos, que estudou as representações da infância na imprensa periódica da Província do Paraná (1854-1889), afirma que na imprensa era comum o repertório de adjetivos que representavam as crianças como seres dóceis, inteligentes, amáveis e inocentes. Elas não eram inocentes apenas por terem morrido, explica Tuchinski,

“[…] mas porque morreram na infância, antes de alcançar a vida adulta [...]. Era esse tempo da vida que lhes conferia em particular essa qualidade que as tornava prontas a desenvolverem todas as demais virtudes que, agora, por meio da redação do jornal, ornavam suas mimosas coroas fúnebres”18.

Foi com adjetivos semelhantes a esses citados por Tuchinski que Carolina foi lembrada pelo jornal Amazonas em 1869, uma criança com um “angelico typo de espirito, meiguice e doçura”. Outra forma de expressão encontrada pelos jornais eram os poemas, como o que foi dedicado ao pequeno Alcides, de Parintins, em 1890:

“Alcides querido.
Creança mimosa.
Perdida esperança
De Mãe carinhosa.

Botão de açucena
(No seio plantada
De mãe extremosa
De pranto orvalhada)

Que o vento da morte
Tão cedo arrancou;
Mas cujo perfume
No ceo trescalou.

Lá entre os anginhos
No throno de Deus,
Supplica ventura
E paz para os teus”19.

Esse imaginário também está representado na cultura material, nesse caso nos artefatos funerários. Na quadra 04 do Cemitério São João Batista, onde estão enfileirados os túmulos do antigo Cemitério de São José (1856-1891), o túmulo das crianças Antonio Nery da Fonseca (1851-1861) e Lucrecia (1876-1876) é bastante significativo a esse respeito. Em seu epitáfio lê-se o seguinte: “Aqui jazem os frios restos dos dois innocentes. Antonio Nery da Fonseca, filho do Ten. Cel. João Evangelista Nery da Fonseca e de D. Maria Leopoldina Nery da Fonseca. Nascido a 30 de […] de 1851. Fallecido a 9 de janeiro de 1861. E Lucrecia, nascida em 1 e fallecida a 22 de fevereiro de 1876. Filha do Cap. de Mar e Guerra Nuno Alves Pereira de Mello Cardoso e de D. Maria Leopoldina de Mello Cardoso. Suas almas no céu oram a Deus por seus paes”. No topo desse monumento funerário, as esculturas de dois pequenos anjos, sentados em nuvens, rogam aos céus por seus pais. Além disso, chamam a atenção os laços familiares. João Evangelista Nery da Fonseca era sogro de Nuno Alves Pereira de Mello Cardoso, este casado com a filha de João, Maria Leopoldina de Mello Cardoso. Dessa forma, Lucrecia era neta de João Evangelista. Antonio Nery da Fonseca, filho de João Evangelista, era irmão de Maria Leopoldina de Mello Cardoso, cunhado de Nuno Alves Pereira e tio de Lucrecia.

Imagem 01: Túmulo de Antonio Nery da Fonseca (1851-1861) e Lucrecia (1876). FOTO: Fábio Augusto, 2019.

Essas concepções acerca da morte infantil, características do Brasil no século XIX, chegaram ao século XX. É de Lábrea uma interessante publicação fúnebre sobre a morte de uma criança, com características (modelo, adjetivos etc) de textos da segunda metade do século XIX:

“Um anjo que evola

Envolvido em diaphanos véos de neve, subio ao empyreo a innocentinha – Almerinda – dilecta filha do Coronel Manoel C. Paiva e D. Almerinda A. Paiva. Bem sabemos que no coração de sua desolada mãe, abrio-se uma chaga de difficil cicatrisação; seu pai, ferido com a perda sensível de um pedaço de sua alma chora no intimo, cujo reflexto se manifesta exteriormente em sua phisionomia abatida.

Nós que lhes dirijimos estas sentidas linhas, compartilhando dessa dôr, só temos palavras de conforto para os pais desse anjinho, que formando côro, entôa hymnos a Deus, ao tom de notas divinas proferidas por clarins seraphicos.

Labrea, 26-05-09.

José Tote”20.

Os articulistas do jornal O Javary, de Benjamin Constant, em 1916, dedicaram o texto Para o Zenith a menina Cecília, filha de Candido Clóvis de França, gerente do periódico, morta em 22 de agosto daquele ano. A criança foi descrita da seguinte forma: “Cecilia era uma creancinha meiga, inteligente e bella, deixou, pois, o seu inopinado desapparecimento um vacuo irremediavel, uma saudade eterna”. Nesse texto são inexistentes quaisquer resquícios de uma possível compensação espiritual diante da morte da criança, pois no texto não existem tentativas de amenizar a partida de Cecília. No máximo

“os corações de seus queridos paes sentiram a lembrança suave e ao mesmo tempo triste da pequenina creatura que lhes era cara, a saudade mais pungente, a dor mais angustiosa porque o riso leve e silencioso da linda e graciosa pequenita era o raio de sol vivificador daquelle tecto feliz, o effluvio radioso que lhes illuminava a vida”21.

A preparação do corpo da criança, assim como dos mortos em geral, para o velório e sepultamento, era uma preocupação constante, pois acreditava-se que a forma como seria enterrado seria a mesma em que se chegaria no outro mundo. “Essa concepção estava de tal modo enraizada, que muitos, ao elaborarem seus testamentos, procuravam informar qual seria sua última roupa”. As crianças não escreviam testamentos, mesmo assim não eram enterradas de qualquer forma. Predominava nas vestimentas fúnebres a cor branca, que segundo Vailati, além de simbolizar a cor a que eram associados os mártires nos primeiros tempos do Cristianismo (posteriormente substituída pela cor vermelha), também era o símbolo da alegria, “[…] da inocência e da pureza virginal”22.

Esses cuidados com o corpo da criança após a morte poderiam até mesmo virar caso de polícia. Os articulistas do jornal O Pimpão, em 1911, denunciaram um homem, em Manaus, por abandono de incapaz. Além deixar a criança, uma menina de nome Nenê, abandonada, os repórteres desse jornal descobriram que “a innocente morreu pagã, sem registro civil e sem o embellezamento de anjo”23.

É nesse mesmo período, no século XX, de pesadas intervenções sanitárias nas cidades brasileiras, que contribuem para a diminuição dos índices de mortalidade24, principalmente a infantil, que a criança vai aos poucos deixando de ser representada como um ser celeste. As notícias sobre o falecimento delas tornam-se cada vez mais resumidas, sem os adjetivos e modelos textuais característicos da segunda metade do século XIX. A morte infantil, finalmente, assume o tom único de tragédia. Em 1935, o governo do Estado do Amazonas observou, “em gelada perplexidade”, que no Cemitério São João Batista, em Manaus, foram sepultadas de 1891 a 1935, 35.903 crianças com idade até 9 anos, “percentagem aterrorisante numa cidade de media de 50.000 habitantes”25. (Por algum motivo, talvez erro na formatação da versão para publicação final, esse parágrafo foi suprimido no artigo da revista. Aviso aos editores da revista).

A mudança também fica evidente na arte funerária. Nos túmulos as crianças deixam de ser representadas como anjos que rogam a Deus por seus familiares. As esculturas de anjos que as acompanham estão em posição de proteção, como se rogassem pela proteção das próprias crianças. A associação com a figura do anjo, no entanto, continua, como se fosse um resquício da crença antiga. É um exemplar interessante o túmulo de Cleomenes Borges, nascido em 8 de julho de 1912 e falecido em 9 de janeiro de 1913. A criança, entre cortinas abertas, é representada em alto-relevo em seu leito de morte. Ao seu lado, um criado-mudo sustenta um candelabro com uma vela que acabou de se apagar, simbolizando o fim daquela vida. Do topo do túmulo projeta-se um anjo adulto, segurando um ramo de palma sobre o relevo de Cleomenes Borges.

Imagem 02: Parte inferior do túmulo de Cleomenes Borges (1912-1913). FOTO: Fábio Augusto, 2019.

Imagem 03: Parte superior do túmulo de Cleomenes Borges (1912-1913). FOTO: Fábio Augusto, 2019.

CONCLUSÃO

Portanto, as concepções e visões de mundo sobre a morte infantil, no Amazonas, sofreram profundas mudanças entre a segunda metade do século XIX e o século XX. A partir da leitura de fontes escritas, principalmente dos anúncios fúnebres, necrológios e outros tipos de homenagens publicados em jornais da capital e do interior, constatou-se que o sentimento ambíguo de perda física e compensação espiritual (anjos protetores da família), dentro da crença popular fortemente arraigada na população no século XIX, com origens no período colonial através do catolicismo popular, deu lugar à tragédia pela perda de um ente que não teve a oportunidade de atravessar todas as fases da vida, evidenciada nos anúncios cada vez mais resumidos e sem idealizações espirituais positivas e nas falas dos administradores públicos, que começaram a encarar o assunto como um problema a ser enfrentado dentro do contexto das transformações urbanas e avanços científicos que passaram a prolongar a expectativa de vida.

Isso também ficou evidente na análise dos artefatos mortuários infantis (túmulos e jazigos) existentes no antigo Cemitério de São José (1856-1891) e no Cemitério São João Batista (1891), cujas formas e inscrições acompanharam tal mudança. Deve-se pontuar, no entanto, que a associação com a figura do anjo permanece, pelo menos nas esculturas que representam as crianças falecidas como tal ou nas esculturas dos anjos que as protegem nos túmulos e jazigos, sendo um indício de como as mentalidades são resistentes às mudanças.


FONTES

PERIÓDICOS:

Amazonas, 21/10/1869.
Jornal do Amazonas, 06/11/1885.
Comércio do Amazonas, 25/11/1900.
Jornal do Amazonas, 04/01/1885.
Amazonas, 10/10/1893.
A Província, 27/09/1885.
Amazonas, 23/09/1890.
Correio do Purus, 30/05/1909.
O Javary, 29/08/1916.
O Pimpão, 20/08/1911.

DOCUMENTOS OFICIAIS:

Estado do Amazonas. Mensagem lida perante o Congresso dos srs. Representantes por occcasião da Abertura da 2° Sessão ordinaria da 4° Legislatura pelo Exm. Sr. Dr. Governador do Estado Silverio José Nery em 10 de julho de 1902.

Estado do Amazonas. Mensagem do Governador Álvaro Botelho Maia á Assembléa Legislativa, na abertura da sessão ordinaria, em 3 de Maio de 1936.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

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__________________. As fotografias de anjos no Brasil do século XIX. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N° Sér. v. 14. n. 2. 51-71. jul.-dez. 2006.


NOTAS:

1 ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Tradução de Dora Flaksman. 2° ed. Rio de Janeiro: Guanabara, 1986, p. 50.

2 Ibidem, p. 10.

3 STRÖHER, Carlos Eduardo; KREMER, Cássia Simone. A Infância na Idade Média (séc. XIV ao XVI): Discussões Pertinentes. Unioeste. Revista Travessias: Pesquisas em Educação, Cultura, Linguagem e Arte. v.1, n. 1, 2007, p. 4.

4 FORMIGONI, Beatriz de Moraes Salles. Da idade média a idade moderna: um panorama geral da história social e da educação da criança. Temas em Educação e Saúde, [S.l.], v. 6, mar. 2017. ISSN 2526-3471. Disponível em: <https://periodicos.fclar.unesp.br/tes/article/view/9523/6313>. Acesso em: 20 de abril de 2019. doi: https://doi.org/10.26673/tes.v6i0.9523.

5 ROTERDÃ, Erasmo de. De Pueris (Dos Meninos) e A Civilidade Pueril. Tradução de Luiz Feracine. São Paulo: Editora Escala, 2006.

6 PANCINO, Claudia; SILVERIA, Lygia. “Pequeno demais, pouco demais”. A criança e a morte na Idade Moderna. Cad. hist. ciênc., São Paulo, v. 6, n. 1, Julh. 2010. Disponível em: <http://periodicos.ses.sp.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1809-76342010000100010&lng=en&nrm=iso>. Acesso em: 22 de abril de 2019.

7 FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala: Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal. 48° ed. São Paulo: Global, 2003, p. 203.

8 ________________. Sobrados e mucambos: Decadência do patriarcado rural e desenvolvimento do urbano. 15° ed. São Paulo: Global, 2004, p. 178.

9 Amazonas, 21/10/1869.

10 REIS, José Carlos. “O Cotidiano da Morte no Brasil Oitocentista”. In: ALENCASTRO, Luiz Felipe de (Org.). História da Vida Privada no Brasil. 2. São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 113.

11 VAILATI, Luiz Lima. Representações da Morte Infantil durante o século XIX no Rio de Janeiro e na Inglaterra: Um esboço comparativo preliminar. Revista de História, São Paulo, n° 167, p. 261-294, julho/dezembro 2012, p. 275.

12 CASCUDO, Luís da Câmara. Superstição no Brasil. São Paulo: Global Editora e Distribuidora Ltda, 2015, p. 27. Nesse livro Câmara Cascudo analisa diferentes superstições existentes na sociedade brasileira, dentre elas as que se referem aos mortos, ainda bastante fortes no interior das regiões Norte e Nordeste, onde o processo de completa ruptura com as práticas funerárias ainda não se concretizou.

13 Jornal do Amazonas, 06/11/1885.

14 Comércio do Amazonas, 25/11/1900.

15 Jornal do Amazonas, 04/01/1885.

16 Amazonas, 10/10/1893.

17 A Província, 27/09/1885.

18 ANJOS, Juarez José Tuchinski dos. Anjinhos e Diabinhos: Representações da Infância na Imprensa Periódica do Paraná Provincial (1854-1889). XIV Encontro Regional de História. Unespar, 2014, p. 1373.

19 Amazonas, 23/09/1890.

20 Correio do Purus, 30/05/1909.

21 O Javary, 29/08/1916.

22 VAILATI, Luiz Lima. As fotografias de anjos no Brasil do século XIX. Anais do Museu Paulista. São Paulo. N° Sér. v. 14. n. 2. 51-71. jul.-dez. 2006, p. 58-60.

23 O Pimpão, 20/08/1911.

24 Em 1900 faleceram em Manaus 2.519 pessoas. Em 1901, 1.309. “Pela comparação entre os numeros dos fallecidos em 1900 e 1901 vê-se que nesse ultimo anno em muito foram melhoradas as nossas condições de salubridade, o que nos induz crêr que em grande parte tem influido a execução das medidas sanitarias postas em vigor”. Estado do Amazonas. Mensagem lida perante o Congresso dos srs. Representantes por occcasião da Abertura da 2° Sessão ordinaria da 4° Legislatura pelo Exm. Sr. Dr. Governador do Estado Silverio José Nery em 10 de julho de 1902, p. 68.

25 Mensagem do Governador Álvaro Botelho Maia á Assembléa Legislativa, na abertura da sessão ordinaria, em 3 de Maio de 1936, p. 128.

domingo, 16 de fevereiro de 2020

Ária Paraense Ramos (1896-1915)

Ária Paraense Ramos (1896-1915). Data desconhecida. FONTE: Acervo da família Ramos, cedida à escritora Sayonara Melo, autora de 'Bairro de São Geraldo, uma História em duas conjugações: Passado e Presente (2008)'.

No dia 17 de fevereiro de 1915, na antiga sede do Ideal Club, então localizado na esquina da Avenida Eduardo Ribeiro com a rua Henrique Martins, a jovem violinista Ária Paraense Ramos era vítima de um disparo acidental, vindo a falecer horas depois na Santa Casa de Misericórdia por conta de uma hemorragia. Sua morte encerrou de forma trágica o Carnaval daquele ano, até aquele momento divulgado pela imprensa como um dos mais alegres já realizados.

Quem foi Ária Paraense Ramos? Como se deu sua morte? No presente texto tentarei esboçar brevemente sua trajetória até aquele fatídico 17 de fevereiro de 1915.


VIDA E MORTE DE UMA ÁRIA


Ária Paraense Ramos nasceu em 12 de agosto de 1896 no Estado do Pará (Jornal do Commercio, 18/02/1915 e O Paiz, RJ, 15/03/1915). Era filha de Carlota de Souza Ramos e do Major Lourenço Ramos. Tinha duas irmãs, Pátria Amazonense Ramos e Celeste Luso Ramos; e dois irmãos, Alyrio Ramos e Horizonte Ramos. Lourenço Ramos era português, tendo se mudado para o Pará no final do século XIX. Lá casou-se com Carlota. Posteriormente a família veio para Manaus, passando a residir na Avenida Joaquim Nabuco, no lugar conhecido como Canto do Quintela. Ária costumava apresentar-se em espetáculos e casas de família com a irmãs Pátria e Celeste, pianistas e professoras. Ária também fazia parte da orquestra do Cinema Odeon.

Dizer que Ária Ramos era uma mulher a frente de seu tempo por tocar um instrumento musical ou afirmar que esta era feminista é algo que não condiz com aquele contexto. Era algo comum que as jovens da classe média e da elite aprendessem a tocar algum tipo de instrumento, sobretudo o violino e o piano. Era uma questão de status social, de demonstração de poder aquisitivo e refinamento cultural. Pátria e Celeste, por exemplo, como foi dito, eram musicistas, dando aulas particulares, conforme consta em anúncio de 1913 publicado no Jornal do Commercio:

“PROFESSORAS – Celeste e Patria Ramos, diplomadas pelos Conservatorios e Lyceu de Lisbôa, comunicam aos srs. Chefes de família que, desejem tomar professoras, que acabam de installar na casa á avenida Joaquim Nabuco 75 (predio dr. Linhares), aulas de harmonia, piano, violino, bandolim, francez e portuguez, onde suas exmas.filhas poderão aprender mediante modica remuneração. Ainda por preços muito rasoaveis, acceitam alumnas que desejem ser leccionadas na própria residência” (Jornal do Commercio, 07/07/1913).

Também afirmar que Ária Ramos foi morta por “incomodar” a sociedade da época não é correto. Os periódicos e os textos memorialísticos dão nota de uma moça estimada pelo grande talento, beleza e elegância que possuía. Em 1914 ficou em segundo lugar em um concurso promovido pelo jornal A Lanceta sobre qual era a “[…] senhorita mais chic de Manáos” (A Lanceta, 07/10/1914).

Horas antes de sua morte, no dia 16 de fevereiro, uma terça-feira, Ária Ramos desfilava na Avenida Eduardo Ribeiro e adjacências em um carro alegórico dos Paladinos da Galhofa, bloco musical do qual fazia parte, acompanhada de sua irmã Celeste. Logo depois, já na parte da noite, o Ideal Club realizava o seu famoso baile de Carnaval, um dos mais aguardados pela alta sociedade naquela época.

Muitos jovens da elite manauara, incluindo Ária e os Paladinos, fantasiados, divertiam-se nos salões do clube. Em um deles estavam Mario Travassos de Souza, 16 anos incompletos, Ilydio de Carvalho Barroco, 25 anos, e outras pessoas. Ilydio Barroco, em uma brincadeira, tomou as luvas da fantasia de Mario Travassos, retirando-se daquele salão. Depois que terminou de conversar, Travassos procurou Ilydio para que devolvesse suas luvas. Já passava da meia-noite. Ilydio, que conversava com Ária, disse que ele poderia retirá-las da cartucheira de sua fantasia de cow-boy, onde as havia guardado. Ao colocar a mão na cartucheira, Travassos encontrou um revólver, o retirando da mesma. Ao tentar abri-lo para ver se estava carregado e desconhecendo seu mecanismo, acidentalmente efetuou um disparo. A bala atingiu Ária Ramos na artéria femoral, ficando alojada em seu baixo-ventre.

Deve-se destacar que, conforme matéria de 18/02/1915 do Jornal do Commercio, Ária Ramos não foi atingida enquanto executava a valsa ‘Subindo aos Céus’, estando conversando, como foi dito no parágrafo anterior, com Ilydio Barroco. Ela pediu, sim, mas bem antes do acidente, que a orquestra presente no Ideal executasse a música, lhe acompanhando. Textos memorialísticos posteriores, em uma tentativa de mitificar o acontecimento, distorcendo as fontes contemporâneas ao fato, insistem na afirmação de que ela tocava essa valsa no violino quando recebeu o disparo.

O pânico se instalou no Ideal, com pessoas correndo e gritando. A polícia fechou o clube, proibindo a saída dos foliões e prendendo Mario Travassos e Ilydio Barroco. Ária Ramos, com uma grave hemorragia, foi socorrida pelos médicos Turiano Meira e Xavier de Albuquerque, presentes na festividade. Este último realizou a compressão da artéria femoral. Uma ligação foi feita para o médico Jorge de Moraes, que se dirigindo ao local e vendo que o sangramento havia cessado, recomendou a remoção de Ária para a Santa Casa de Misericórdia para que fosse feita a ligação da artéria atingida.

No hospital, Ária Ramos foi operada pelos médicos Jorge de Moraes, Theogenes Beltrão, Xavier de Albuquerque e Turiano Meira. Sua artéria femoral foi ligada a cerca de 2 centímetros do lugar de origem e a 6 do projétil. No entanto, o sangue que perdera no Ideal Clube foi suficiente para que viesse a falecer, às 5 da manhã do dia 17, durante as intervenções médicas. Tinha 18 anos. Estavam presentes em seu leito seus pais, membros do bloco Paladinos da Galhofa e outras pessoas que acompanharam sua remoção para a Santa Casa. Seu corpo foi levado para a residência da família, onde grande número de pessoas começou a afluir.

Após o velório o cortejo fúnebre em direção ao Cemitério de São João Batista saiu às 16 horas. O caixão, azul-claro, confeccionado pela casa Neves & Correia e oferecido pelo Major Almir Neves, foi carregado até o coche fúnebre por amigas da falecida. Posteriormente o coche foi deixado de lado, sendo o caixão carregado a mão. O cortejo passou pela rua Municipal, Avenida Eduardo Ribeiro, rua 10 de Julho, Avenida Joaquim Nabuco, Estrada Dr. Moreira, Praça de São João e Avenida 13 de Maio. 40 veículos (carros, charretes etc) acompanharam o cortejo, sendo vistas as seguintes coroas fúnebres:

“A Aria, gratidão dos Paladinos da Galhofa; Saudades de Longa; A’ Aria, em testemunho da profunda dor, saudades do Ilydio; Saudades de sua madrinha; A’ Aria, saudades de Fontenelle & Cia; Saudades de Cecilia e Diniz; Saudades de Conrado Garcia e família, e “Affectueux souvenir” (O Paiz, 15/03/1915).

Ao chegar no Cemitério de São João Batista, a encomendação do cadáver foi realizada pelo Monsenhor Antero José de Lima. Discursaram os senhores Generino Maciel, pelos Paladinos da Galhofa, José Francisco de Araújo Lima e Ildefonso Pereira pelos musicistas da cidade. O Jornal do Commercio foi representado por Abelardo Araújo e Serafim Sobrinho. O corpo de Ária Ramos foi sepultado às 18 horas. Todas as despesas do funeral foram pagas pelos membros do Paladinos da Galhofa. O Cinema Odeon, em sua homenagem, não abriu as portas.

Mario Travassos (N° 10), então acadêmico de Odontologia na Universidade de Manáos. Foto de 1917. FONTE: A Capital, 27/11/1917.

Como tratou-se de uma morte acidental, um homicídio culposo, Mario Travassos (1900-1928) e Ilydio Barroco (1890-1916) foram julgados e considerados “inocentes”. Descobriu-se que em 1917 Mario Travassos era aluno do curso de Odontologia da Universidade de Manáos (A Capital, 27/11/1917). Também atuou como jogador de futebol do Atlético Rio Negro Clube (Jornal do Commercio, 21/10/1917). Faleceu em 1928 (Jornal do Commercio, 11/08/1928). Ilydio Barroco, de naturalidade portuguesa, era funcionário e sócio da firma Adrião Barroco & Cia e também jogador do Atlético Rio Negro Clube. Faleceu em 12 de agosto de 1916 aos 26 anos vítima de uma “congestão cerebral” (Jornal do Commercio, 13/08/1916).


O MAUSOLÉU


O mausoléu de Ária Ramos nos dias atuais. FOTO: Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa, 15/02/2019.

A morte de Ária Ramos comoveu a sociedade manauara. De forma a perpetuar sua memória, uma comissão formada pelos senhores João Maranhão, Celino Menezes e Abelardo Araújo tratou de angariar, entre fins de fevereiro e início de março, fundos para a construção de um mausoléu no Cemitério de São João Batista. O dinheiro foi arrecadado através da exibição de filmes e espetáculos no Cine Polytheama.

A sepultura de Ária Ramos foi declarada perpétua pela Prefeitura, estando isentos de pagamento de impostos os construtores do monumento fúnebre. Quando o valor necessário à construção foi arrecadado, o trabalho foi encomendado à Marmoraria Ítalo-Amazonense, de Cesare Veronesi. A escultura em tamanho natural de Ária Ramos foi produzida em Carrara, na Itália, pelo professor Augusto Franzoni, natural de Carrara, membro da Academia de Belas Artes daquela cidade e da Comissão de Arqueologia de Roma (Jornal do Commercio, 23/07/1916). Por conta de dificuldades de navegação entre Gênova, de onde a estátua seria embarcada, para Lisboa, o mausoléu não foi inaugurado na data prevista pela comissão, 17 de fevereiro de 1916.

Primeira imagem do mausoléu de Ária Ramos. FONTE: Jornal do Commercio, 23/07/1916.

A inauguração ocorreu às 9 horas do dia 23 de julho de 1916. Um grande número de populares compareceu à cerimônia. O Major Lourenço Ramos retirou o manto que cobria o mausoléu, e Abelardo Araújo o declarou inaugurado. O professor e médico Adriano Jorge fez um discurso em memória de Ária Ramos. Uma orquestra dirigida pelo professor João Donizetti executou a marcha fúnebre composta por Mozart Donizetti.

O mausoléu de Ária Ramos foi construído com mármores de Carrara e Cintra. A jovem foi representada segurando seu violino, trajando as vestes e a cruz no pescoço que utilizava no dia de sua morte, apoiada sobre um tronco de árvore, tendo atrás uma grande cruz sustentada por duas colunas (Jornal do Commercio, 24/07/1916). Seu túmulo possui dois epitáfios: “Diante de sua graça, que a doce alegria de viver tornava ainda mais radiosa, em face do genio que no explendor de sua mocidade alvorescia, a própria morte estacou, maravilhada, e, em vez de a prostrar com a arma sinistra e brutal que traz ao hombro a tocou de leve, subtilmente, com um beijo fulminador...” e “A Aria Ramos nascida a 12 de agosto de 1896 e fallecida por effeito de um accidente em 17 de fevereiro de 1915. Commovida homenagem posthuma da sociedade manauense”.

A História de Ária Ramos, como supõe alguns, não é repleta de mistérios. Ao longo de mais de 100 anos de sua morte foram criadas versões fantasiosas, como as que dizem que ela foi morta por um ex-namorado, ou que tinha dois companheiros ao mesmo tempo. Essas versões não se sustentam diante da documentação existente. Tratou-se apenas de uma morte acidental, um trágico acontecimento que deixou lembranças nos que estavam presentes naquele Baile de Carnaval de 1915 e também nos que apenas ouviram boatos, dando asas à imaginação popular.


FONTES:

Jornal do Commercio, AM, 07/07/1913.

A Lanceta, 07/10/1914.

Jornal do Commercio, AM, 18/02/1915.

O Paiz (RJ), 15/03/1915.

A Capital, 27/11/1917.

Jornal do Commercio, 13/08/1916.

Jornal do Commercio, 23/07/1916.

Jornal do Commercio, 24/07/1916.

Jornal do Commercio, 21/10/1917.

Jornal do Commercio, 11/08/1928.

quarta-feira, 12 de fevereiro de 2020

O Carnaval Manauara de 1905


Um dos vários registros do Carnaval manauara de 1905. FONTE: Acervo do pesquisador Ed Lincon.

O Carnaval manauara de 1905 foi um dos mais famosos da História da cidade, sendo amplamente divulgado e elogiado em jornais locais e também de outros Estados. O Jornal do Commercio, a par dos preparativos, afirmou que “[…] não houve até hoje carnaval assim em Manáos, nem tão rico, nem tão espirituoso, nem tão artístico” (Jornal do Commercio, 08/02/1905).

Os carros alegóricos encomendados de Paris foram a grande novidade. Eles eram montados em charretes, tendo diferentes formatos, indo de pássaros à dirigíveis (zeppelins). O ‘Club dos Terríveis’, sob a Presidência do Superintendente Adolpho Guilherme de Miranda Lisboa, contratou para a montagem de seus carros os artistas Dionísio e Centofanti, famosos pelo trabalho que faziam no Carnaval do Rio de Janeiro.

As festividades ocorriam na Avenida Eduardo Ribeiro, a principal artéria da cidade naquele período e onde por muitas décadas seria realizado o Carnaval de Manaus. O Club dos Terríveis se organizava na Avenida de forma que um grupo de foliões fosse acompanhado por um carro alegórico de forma sucessiva: “1° grupo: Banda de clarins. 1° carro: Euterpe. 2° grupo: Guarda de Couraceiros Nubios. 2° carro: Mephistopheles” (Jornal do Commercio, 25/02/1905). O ponto alto era a Batalha de Flores, ao estilo francês e austríaco, em que uma comissão de jurados julgava os melhores e mais floridos carros alegóricos. Na avenida obedecia-se uma rigorosa organização para o trânsito de carros alegóricos e foliões:

"De ordem do exm. sr. coronel superintendente municipal da capital, faço publico para conhecimento dos interessados, que toda a especie de vehiculos durante as horas de movimentos carnavalescos na avenida Eduardo Ribeiro, nos 2 domingos proximos, segunda e terça-feira de carnaval, só poderão sahir pelo lado occidental, lado esquerdo, e descer pelo lado opposto, sendo linha divisoria a que é formada pelos postes de illuminação do centro da mesma avenida.

Outrosim não será permettido o transito e ajuntamento de pessoas no local do movimento dos carros e sobretudo nos cantos da avenida com a rua municipal.

Manáos, 20 de fevereiro de 1905. O Fiscal geral. Joaquim Antunes da Silva" (Jornal do Commercio, 25/02/1905).

Carro alegórico do Sr. Dr. Arthur Araújo. Lembrança do Carnaval de 1905 em Manáos. FONTE: Cartão postal.

Na rua o Carnaval era aberto à população, participando ricos e pobres. Os bailes à fantasia tinham caráter mais elitista, sendo realizados no Ideal Club, no Club dos Terríveis, no Club Internacional, no Philoscenica Amazonense e no Triumvirato Club, ambos organizados por membros da alta sociedade local. Além dos clubes, também eram realizados bailes em casas particulares.

Além da diversão, a economia também era movimentada. Os estabelecimentos comerciais especializados em roupas importavam máscaras, fantasias, lança-perfumes e confetes da França, Alemanha, Londres e Rio de Janeiro. Madame Schianetti, modista estabelecida na rua Joaquim Sarmento, informava ter recebido “[…] um grande sortimento de pellucia de todas as cores, próprio para o Carnaval. Vende-se a preços baratissimos” (Jornal do Commercio, 28/02/1905).

Anúncio de roupas para Carnaval. FONTE: Jornal do Commercio, 28/02/1905.

Como já vinha ocorrendo desde o século XIX, o Carnaval era fiscalizado através dos Códigos de Posturas Municipais. Brincadeiras como o entrudo eram proibidas, sob pena de prisão ou multa. No Carnaval de 1905 algumas pessoas foram multadas por estarem reaproveitando confetes usados, pegando-os do chão, embalando novamente e vendendo como se fossem novos (Jornal do Commercio, 28/02/1905).

Com exceção de algumas ocorrências, o Carnaval de 1905 foi, nas palavras de um articulista do Jornal do Commercio, "animadissimo e civilisado" (Jornal do Commercio, 08/03/1905). O entrudo dos tempos da Província só aparecia esporadicamente, não oferecendo mais tantos riscos quanto em outros tempos. A civilização, aparentemente, vencera o que era considerado a "barbárie".

O Carnaval de 1905 deixou fortes lembranças em seus foliões. O empresário português Francisco Vieira da Rocha (1887-1966), em entrevista concedida ao Jornal do Commercio em 1948, lembra dele da seguinte forma: “[…] até as roupas das moças vieram de Paris. Foi uma coisa nunca vista. Verdadeiro sonho ou conto de fadas. O dinheiro rolava como rolam […] as águas eternas do rio Amazonas” (Jornal do Commercio, 18/07/1948).


FONTES:

Jornal do Commercio, 08/02/1905.

Jornal do Commercio, 25/02/1905.

Jornal do Commercio, 28/02/1905.

Jornal do Commercio, 08/03/1905.

Jornal do Commercio, 18/07/1948.

terça-feira, 11 de fevereiro de 2020

O avião DC-3 da Praça da Saudade, em Manaus

O avião DC-3 da Praça da Saudade, em Manaus, no ano de 1981. FOTO: Hélio Bastos Salmon (Airlainers.net).

Quem viveu entre o final da década de 1970 e o início da de 1980, em Manaus, deve se lembrar do avião que existia na Praça da Saudade, no Centro da cidade.

O avião, modelo DC-3 doado pela Varig/Cruzeiro (Viação Aérea Rio-Grandense), foi colocado na Praça da Saudade no dia 24 de dezembro de 1977 durante a administração do Prefeito Jorge Teixeira de Oliveira. Nele existia uma placa com as seguintes inscrições:

"A presença discreta e silenciosa desta aeronave na principal Praça de Manaus, com a sua prôa significativamente voltada para os céus, servirá também para lembrar o sentido mais alto das realizações que não só a Cruzeiro mais também as suas co-irmãs Varig e Tropical de Hotéis, igualmente vindas do sul longínquo, fizeram na Amazônia, o sentido que tem os atos de amor e solidariedade humana, tão propícios de serem evocados. Nesta véspera de natal, data com felicidade escolhida pela dinâmica administração da Prefeitura de Manaus, para a solenidade desta inauguração. Da mensagem da diretoria da Cruzeiro na entrega do DC-3, em 24 de dezembro de 1977". (A Crítica, 24/05/1984).

Jorge Teixeira tinha como objetivo tornar o avião uma atração turística, como ocorria com o mesmo modelo exposto desde o início de 1970 no Aterro do Flamengo, no Rio de Janeiro (Jornal do Commercio, 25/08/1977).

O objetivo foi alcançado, pois o avião tornou-se a principal atração daquela praça do Centro. Nos finais de semana o local ficava lotado de crianças, jovens e adultos interessados em conhecer o DC-3, entrar nele e tirar fotos.

Apesar do sucesso, o avião e a praça começaram a sofrer com problemas típicos das metrópoles brasileiras das décadas de 1970 e 1980: o crescimento desordenado e o aumento da violência. A atração da praça começou a ser danificada e pilhada por vândalos (os principais alvos eram as poltronas e algumas peças). Nos momentos mais extremos a entrada deixou de ser permitida.

Em 1984, na administração municipal de Amazonino Armando Mendes, a Varig/Cruzeiro, em acordo com a Prefeitura de Manaus, decidiu retirar o avião da Praça da Saudade, pois a cada ano, por conta dos danos causados à aeronave, a manutenção tornava-se mais dispendiosa. Foi estimado que o custo ao longo de 1984 seria de 3 a 4 milhões de cruzeiros (Jornal do Commercio, 04/05/1984).

Que fim levou o DC-3 da Praça da Saudade? Foi vendido pela Varig para a empresa Rio Táxi Aéreo, que aproveitou somente o trem de aterrissagem e as rodas. O avião foi retirado da praça a base de marretadas e machadadas por cerca de 10 homens contratados por oficinas de ferro velho, conforme matéria do jornal A Crítica (A Crítica, 24/05/1984). Tinha fim, após 7 anos, a principal atração da Praça da Saudade, deixando inúmeras lembranças naqueles que puderam lhe ver de perto.


FONTES:

Jornal do Commercio, 25/08/1977.

Jornal do Commercio, 04/05/1984.

Jornal A Crítica, 24/05/1984 (via Blog do Durango Duarte).