quarta-feira, 15 de janeiro de 2014

Recife nos Tempos da Cólera

Rua da Cruz, Recife, 1855.

O primeiro caso de cólera na capital de Pernambuco foi registrado em 28 de janeiro de 1856. A vítima faleceu em apenas 24 horas. Todos os esforços empreendidos por médicos e autoridades locais para deter o avanço da doença foram inúteis. Isso foi só o começo: nos três primeiros meses daquele ano, o cólera matou 3.338 moradores do Recife, o equivalente a cerca de 5% da população.
Desde 1849 até então, haviam sido registrados 11 surtos epidêmicos na cidade do Recife, sendo os mais graves os de febre amarela (de 1849 a 1852) e esse de cólera. A constância das epidemias denunciava a insalubridade do ambiente urbano, que se tornou alvo dos higienistas e das autoridades provinciais de Pernambuco ao longo de todo o século XIX.
Os caminhos que o cólera seguiu pelo mundo desde a sua origem revelam a insalubridade das cidades e a falta ou a precariedade dos serviços públicos de esgoto e de abastecimento de água como principais fatores de proliferação da doença. O delta do Rio Ganges, na Índia, é considerado o local de origem das pandemias de cólera ocorridas nos séculos XIX e XX. Suas águas serviam de cenário para rituais de purificação ligados à vida e à morte, que criavam as condições propícias para a disseminação da doença.
Mesmo banhado por dois rios, o Capibaribe e o Beberibe, o Recife ainda não era provido de água potável suficiente para toda a população, já que ambos os rios são invadidos pelo mar até duas léguas – aproximadamente 12 quilômetros – acima de sua foz, além de sofrerem com o despejo de dejetos. Assim, os habitantes da cidade consumiam água das cacimbas e dos poços ou mandavam buscá-la no Monteiro ou em Beberibe, de onde era transportada por escravos em canoas reconhecidamente desprovidas de higiene.
O acesso limitado às redes de esgoto, a destinação imprópria dada ao lixo e a oferta insuficiente de água tratada formavam um quadro de má gestão do ambiente, contribuindo para a epidemia de cólera. Muitas medidas foram tomadas para evitar que a doença se alastrasse nessas condições tão propícias. Uma delas foi o controle do movimento portuário. A Provedoria de Saúde do Porto do Recife sugeriu ao governo provincial que os navios vindos de lugares infectados fossem submetidos a uma quarentena de observação, devendo os passageiros seguir para o lazareto da Ilha do Pina – estabelecimento destinado ao controle sanitário que abrigava pessoas que podiam ser portadoras de moléstias contagiosas. Lá, elas disporiam de acomodação e assistência médica.
Essa medida não foi bem-aceita pelos viajantes e pela população. Por isso a Vigilância Sanitária do Porto pediu a colaboração da força policial para que fosse posta em prática. O local permaneceu guardado por sentinelas, para evitar que possíveis infectados deixassem o lazareto e circulassem pelas ruas da cidade antes do término do tempo previsto para o isolamento. Outra medida adotada foi a exigência de apresentação de uma carta de saúde no ato da entrada do navio, comprovando o estado do porto de onde ele procedia.
Mas essas providências não impediram a chegada da epidemia,obrigando o governo provincial a decretar “estado de peste”. Cerca de 15 hospitais provisórios exclusivos para coléricos foram instalados em toda a cidade, evitando os riscos de contágio advindos do deslocamento e da concentração de muitos doentes em um espaço confinado. A preocupação com o contágio também levou à criação de uma companhia de desinfetadores, que deveriam se deslocar para os lugares onde aparecessem novos casos da doença com utensílios e agentes químicos necessários para realizar uma desinfecção imediata.
Outro problema era a resistência da população à hospitalização, o que levou a Comissão de Higiene a pôr em prática uma campanha de isolamento dos doentes em suas próprias casas e de desinfecção. Os agentes de saúde contavam com o apoio da polícia para garantir o cumprimento das medidas sanitárias e das quarentenas impostas.Contudo, os focos de contágio, sobretudo dos mocambos – habitações mais humildes e rústicas –, estavam espalhados pelo Recife inteiro, inclusive pelos bairros mais urbanizados. Isso levou as autoridades a adotar um plano de higienização da cidade, com o objetivo de limpar as ruas, as praias, as praças, os mercados, o cais e todos os locais públicos onde houvesse entulhos e alagados. As fontes de água potável também passaram a ser rigorosamente policiadas, sendo proibida a lavagem de roupas e de animais. 
Durante a epidemia de 1856, os sepultamentos, antes cercados de pompas fúnebres, eram realizados rapidamente, por sugestão da própria Comissão de Higiene. Na capital e no interior da província, a população foi tomada pelo pânico. Muitos fugiam na tentativa de evitar a contaminação. Em meio ao desespero, abandonavam os parentes doentes à própria sorte e, por vezes, chegavam a deixar os cadáveres insepultos. A epidemia não só matava como provocava medo e desordem.
Em todo o Brasil, nos anos de 1855 e 1856, cerca de 200.000 vidas foram ceifadas pela doença. Até então, nenhuma epidemia vitimara tanta gente no Brasil. Revisitar esse passado permite repensar a falta de compromisso das autoridades com seu dever de propiciar a infraestrutura necessária à manutenção de um meio ambiente mais salubre e livre de doenças como o cólera, sinônimo de subdesenvolvimento.  

FONTE: Revista de História da Biblioteca Nacional. Recife nos tempos do cólera. Texto de Rosilene Gomes Farias. Ano 7. N* 82. Julho de 2012.


CRÉDITO DA IMAGEM:  http://www.gibanet.com

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