terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Memória Afetiva da Cidade

CIDADE DA MEMÓRIA 

1° semestre de 2002

Por Otoni Moreira de Mesquita

Vista aérea do Centro de Manaus, 1960.

Ainda que aparentemente mergulhado em devaneio nostálgico, justifico esse meu passeio afetivo por uma cidade que mistura o vivido ao imaginado, e ainda que estejamos em outra época acredito ser possível compartilhar, mesmo com aqueles de memória mais recente. Não é preciso ter vivido aquele momento para encantar-se com seus elementos. Senão que validade teria fazer História e como explicaríamos o despertar das paixões pelas antigas civilizações; interesse pelas outras culturas, de que valeriam as reflexões que tentam, mas nem sempre evitam a repetição das mesmas ações equivocadas.

Mas o que me interessa nesse momento, é discutir que elementos despertam o interesse e encantam a imaginação, mantendo em nós a história uma coisa viva. Certamente não são as repetições de datas e nomes dos pontos decorados no grupo escolar. Penso que deve existir um momento ou um ato capaz de atiçar a fantasia e a memória, algo presente no ato de contar a história. Seria a narrativa em si, “o como”, apenas uma questão de talento que pode ser aperfeiçoado, ou algo natural e especial na postura, no timbre da voz, na sensualidade ou afeto contido gesto, não importando “o que” se conte - mentira ou verdade soam com a mesma intensidade. O certo é que há qualquer coisa que vibra e contagia, reverberando e gravado em nossa película interna. Por outro lado, penso que a imaginação é algo em nós guardado, como asas que ao receber um sopro qualquer ganham impulso e podem fazer voar.

Hoje, mesmo a academia, tende a escapar daquela história de narrativa insípida e fria, insossa para digerir, estimulando outras abordagens. A Nova História abre-se num grande leque de possibilidades: são as micros histórias, as questões regionais, situações que se restringiram a pequenos grupos locais e nem por isso deixaram de refletir o todo de uma realidade. A história oral com seus sons e tons, e as imagens trazendo momentos e personagens que já se foram. As idéias, as técnicas, a política. Indo ao tempo remoto ou vindo ao momento recente, tudo pode ser relevante. E como são tantas as lacunas, penso ser urgente recuperar tudo que nos for possível, os mais diversos aspectos da história da nossa cidade, mesmo que recente ou pessoal não importa. Ainda que pequena e aparentemente banal poderá ser algo vibrante e original. O tempo é como um grande incêndio, passa devorando tudo que não fica protegido, não basta reter em nossas memória, é preciso compartilhar, deixando para o futuro.
            
Penso assim por lembrar de significativos momentos passados no 4o ano primário, quando a professora Aurelina, uma gaúcha de longa trança negra nos fazia cantar: o “terra dos Barés, dos igarapés...”, falava dos rios colossais, contava do ciclo áureo da borracha, mostrando diferentes aspectos da cidade, lembrando da riqueza marcada na fachada dos prédios antigos; da instalação da eletricidade e dos bondes como uma novidade que chegou à poucas cidades.

Aqueles momentos não desbotaram, ficaram em mim gravado, e penso que modelaram uma espécie de arquétipo da cidade que fui construindo, misturando ao vivido e ao imaginado. Desde então, carrego e monto uma cidade cuja matéria, pode não corresponder precisamente à verdade que temos na razão. Nesse espaço abstrato, que é bem a cara da gente, guarda-se de tudo, coleções de pequeninos fatos, assim como fragmentos e traços do material. Arquivos que retém o cheiro da chuva no barro, o gosto das suculentas  pitanga do cemitério, o canto triste das cigarras nas pitombeiras do fim do dia. Não é um cenário que pode ser desmontado, ou somente uma montagem de diferentes temporalidades, nem esquema, nem réplica da cidade, são apenas representações, e mesmo que apontem para diferentes direções, funcionam como bússola a nos guiar.

Penso que a lembrança desse fato pode remeter diretamente ao papel assumido pelas narrativas na construção e permanência de mitos e heróis. Ciclicamente eles necessitam ser rememorados, remontados, ganham corpo e vontade, dando sentido à existência, sustentando e fortalecendo a cultura que os gerou. Caso contrário serão apagados e esquecidos como qualquer mortal. Parece-me que somente na circularidade do sistema adotado são capazes de existir essas entidades. Como aplicar isso à cidade? Será que apenas nossas imagens colecionadas e meia dúzia de significados são suficientes para dar sentido e manter viva a alma da cidade?


Otoni Moreira Mesquita nasceu em Autazes-AM, em 27 de junho de 1953. É artista plástico e professor da Universidade Federal do Amazonas. Formado em jornalismo (1979 - UFAM) e em Gravura (1983 - Escola de Belas Artes - UFRJ). É mestre em Artes Visuais e História e Crítica da Arte (1992 - UFRJ). De março de 1997 a dezembro de 1998, atuou como coordenador do Patrimônio Histórico, da Secretaria de Cultura e Estudos Amazônicos. É doutorado em História Social pela UFF, concluido em 2005 com o trabalho O Mito de progresso na refundaçao da cidade de Manaus: 1890/ 1900. Livros publicados: La Belle Vitrine: Manaus entre dois tempos - 1890/1900 (2009) e Manaus: História e arquitetura - 1852/1910 (3 edições. 1997, 1999 e 2006).







CRÉDITO DA IMAGEM: www.manausdeantigamente.blogspot.com.br


domingo, 2 de fevereiro de 2014

A Família Romana

Família Romana. Lawrence Alma-Tadema.

A vida familiar na Roma Antiga era bastante conturbada. As separações entre casais eram comuns, e geralmente as crianças ficavam com o pai. Durante toda a vida, uma pessoa poderia se casar inúmeras vezes, como indicam várias inscrições funerárias da época.

Os romanos não tinham um termo específico para designar o que chamamos “família”. A palavra familia englobava todos aqueles que viviam sob a autoridade do pater familias, crianças e adultos, homens e mulheres, livres e escravos. Empregavam também a palavra domus (casa) que representava todos que moravam em uma mesma habitação.

Em Roma existiam três estruturas distintas: a família nuclear, a tríade pai-mãe-filho; a família ampliada – várias gerações que coabitavam sob a autoridade do patriarca; e finalmente a família múltipla, que congregava pessoas e outras famílias nucleares unidas por contratos de casamento.

Nas classes médias e populares as famílias eram muito mais estáveis do que na aristocracia. Nas inscrições funerárias há elogios freqüentes às mulheres que viveram em paz com seus maridos durante 20, 30, até 60 anos. Mas também existiram famílias reconstituídas. A morte de um dos cônjuges levava o sobrevivente a assumir uma nova união. Alguns documentos mencionam mulheres que foram casadas várias vezes.

Já nas classes dominantes, o casamento era equivalente a um acordo político. Não significava uma aliança afetiva, mas obedecia, na maior parte das vezes, às flutuações táticas das forças atuantes. Muitos dos homens (e das mulheres) influentes de Roma tiveram várias uniões. Sylla, Pompeu e Antônio esposaram cada um cinco mulheres; os imperadores Calígula e Cláudio se casaram cada um quatro vezes. Entre as mulheres, o recorde parece pertencer a Vistilia, mãe do grande general da época de Nero, Corbulão: ela teve sete filhos de sete maridos em um período de 20 anos.

A mulher podia pedir o divórcio sem ter de se justificar. O divórcio tornou-se uma prática tão banal na alta sociedade romana que Sêneca estigmatizou suas concidadãs: “Elas se casam para se divorciarem, e se divorciam para se casarem”. Messalina aproveitou a ausência do marido, o imperador Cláudio, para se declarar divorciada e celebrar seu casamento com o amante Silius.

Algumas vezes essas uniões firmadas em uma contingência política provocaram situações escabrosas. Pompeu esposou em terceiro matrimônio a nora de Sylla, Aemilia, que estava grávida de seu primeiro marido, Acilius Glabrio. Mas isso não impediu que ela se instalasse na casa de seu novo marido. Pouco depois, morreu ao dar à luz um menino, que foi imediatamente transferido para a casa de seu pai natural. Augusto, cuja mulher Escribônia estava grávida, apaixonou-se loucamente por Lívia, que também estava grávida, e era casada com Nero. Augusto esperou que Escribônia desse à luz sua filha Júlia para repudiá-la no próprio dia de seu parto. Em seguida, casou-se com Lívia que deu à luz em sua casa.

Desde o fim da República, a antiga fórmula de casamento que submetia a esposa ao marido caíra em desuso. A mulher casada continuava legalmente independente, até mesmo no campo financeiro. O dote, que consistia em moedas, jóias, prataria, mobiliário, terras e escravos, era confiado ao marido, mas somente sua renda podia ser empregada para a vida do casal. Em caso de divórcio ou viuvez, a mulher recuperava integralmente seu dote. Ela também tinha o direito de legar seus bens a quem desejasse. Só quando o adultério era o motivo do divórcio o marido ficava com uma parte do dote.

As crianças eram as que mais sofriam com as sucessivas uniões de seus pais. Em caso de divórcio, geralmente elas eram separadas da mãe, ficando sob guarda paterna. As madrastas deviam garantir a educação de seus enteados, muitas vezes tão jovens quanto elas. Os irmãos e irmãs nascidos de um mesmo pai eram educados juntos, mas não mantinham vínculos com os filhos que suas mães tinham de outras uniões.

As crianças órfãs de pai se encontravam em uma situação ainda pior: deveriam ficar com a família paterna ou poderiam se unir à de sua mãe? Com 3 anos, o pequeno Nero perdeu seu pai enquanto sua mãe estava exilada em Roma. Morou com sua tia paterna, Domitia Lépida, que se desinteressou da criança e a confiou a dois escravos, um dançarino e um barbeiro. Quando Agripina retornou do exílio, casou-se com Sallustius Crispus, e em seguida com o imperador Cláudio, trazendo o filho para morar com eles. Mas a sorte de Nero não melhorou: novamente sua educação foi entregue a dois escravos.

No entanto, há casos de reagrupamentos familiares mais felizes. A irmã do imperador Augusto, Otávia, cuidou ao mesmo tempo de seus próprios filhos e dos que seu marido Antônio teve de outras uniões. A “família” de Otávia se compunha de três filhos de seu primeiro casamento, de suas duas filhas nascidas de Antônio, dos dois filhos de Antônio e de Fúlvia e dos três filhos de Antônio e Cleópatra.

O concubinato era uma forma de casamento inferior entre uma mulher livre que vivia com um homem sem ser sua esposa. Era proibido ter ao mesmo tempo uma esposa e uma concubina. Mesmo assim, o concubinato era freqüente, sobretudo entre escravas libertas e seus antigos donos. Muitas vezes os homens das classes superiores uniam-se a uma concubina após terem sido casados regularmente uma ou duas vezes.

Outra forma de união, o contubernium ou “coabitação”, ocorria quando um dos membros era de origem servil. Era, em particular, o caso das uniões entre escravos, que podiam ser tão estáveis quanto os casamentos dos homens livres. Além disso, sempre existiram relações entre o patrão e as mulheres escravas, consentidas ou não. O mesmo acontecia entre mulheres livres e homens escravos.

A criança nascida dessas relações não era reconhecida pelo pai. Seguia a condição da mãe: o filho de uma escrava era escravo, de uma mãe livre, era livre. O pai não tinha nenhuma obrigação de alimentá-la e a excluía de sua herança. O único modo de o pai obter o pátrio poder era adotando-a.

pater familias tinha o direito de modificar a composição da família suprimindo as crianças que não desejava ou adotando um filho para sucedê-lo. Muitas razões, em particular para os pobres, que enfrentavam dificuldades para alimentar muitas bocas, podiam levar o pai a não reconhecer um filho, mesmo legítimo. Isso era praticado em todas as classes sociais e atingia principalmente as filhas. O futuro imperador Cláudio abandonou sua filha Cláudia, pois suspeitava que ela era fruto dos amores adúlteros da mulher com seu escravo liberto Boter. Uma criança abandonada podia ser recolhida para ser adotada. Na maioria das vezes, no entanto, estava destinada à escravidão. Essa prática só foi revogada no século IV.

Uma família precisava de um filho homem para receber em herança os bens do pai e garantir a permanência do culto das divindades da casa. Na ausência de filhos, era necessário recorrer à adoção de um rapaz que, na maioria das vezes, já tivesse atingido a idade adulta. 
Nos meios mais populares, os homens que não tinham descendentes adotavam, muitas vezes, um de seus escravos libertos.

Por múltiplas razões, a família nuclear em Roma estava ameaçada por rupturas e reconstituições constantes. As crianças eram as principais vítimas dessa situação. Felizmente para elas, a estabilidade era garantida por aqueles a quem eram confiadas, as amas e os nutritores (pais babás) que não as deixavam durante todo o período da infância. Eles eram chamados pelas crianças de tata (papai) e mama (mamãe), e muitas vezes esses pais substitutos ficavam toda a vida ao lado de seus antigos protegidos.

O surgimento do cristianismo modificou a concepção romana de família e rompeu com as práticas matrimoniais do mundo pagão. Apoiandose em textos dos Evangelhos (“Que o homem não separe o que Deus uniu”) e das epístolas paulinas (“Que a mulher não se separe de seu marido... e que o homem não repudie sua mulher”), os Pais da Igreja declararam a obrigação da monogamia e a indissolubilidade do casamento, proibindo o divórcio.

Durante o primeiro milênio, o casamento permaneceu um assunto no qual a Igreja não intervinha. Foi somente em 1215, quando do concílio de Latrão IV, que o casamento se tornou o sétimo sacramento da Igreja católica e se transformou em um ato público efetuado em uma igreja diante de um religioso.

No entanto, com a queda do Império Romano no início do século V, o direito germânico se sobrepôs ao romano e introduziu novas práticas entre as famílias. A poligamia era muito arraigada entre os germânicos: ao lado da esposa legítima, geralmente o homem tinha esposas secundárias, as friedlehe (promessas de paz) e concubinas escravas.

Carlos Magno teve cinco esposas legítimas e ao menos quatro concubinas oficiais. Todas essas mulheres lhe deram 17 filhos ou mais. Esse pai tão afetuoso nunca se separou de sua numerosa prole: quando viajava, todos os filhos cavalgavam a seu lado e as filhas seguiam acompanhadas por guardacostas. Carlos Magno amava tanto suas filhas que não conseguia decidir- se a concedê-las em casamento. Desse modo, permitiu que se tornassemfriedlehes de amantes que moravam com elas. A mais velha, Rotrude, vivia com Orgon, duque do Maine, com quem teve um filho. No palácio de Aix-la-Chapelle, coabitavam, sob a autoridade de Carlos Magno, várias mulheres e concubinas, filhos legítimos e bastardos, amantes das filhas, netos, sem esquecer sua mãe Berta, que morreu com idade avançada. Todo esse pequeno mundo viveu mais ou menos em harmonia, sem suscitar reprovação pública especial.

Podemos nos perguntar como, em uma época em que o cristianismo determinava a indissolubilidade do casamento, as separações eram tão freqüentes. Os divórcios, muitas vezes decididos para que se concluíssem alianças mais vantajosas, eram disfarçados em anulações por esterilidade ou adultério da mulher. Outros casais utilizavam habilmente “o obstáculo proibitivo do parentesco”: o direito germânico proibia o casamento entre pessoas até o sétimo grau de parentesco. Não era muito difícil provar que se tinha uma ligação de parentesco distante com a mulher de que se buscava a separação.

As crianças nascidas de uniões paralelas tinham o status de bastardos e eram afastadas da herança paterna, mas viviam com o pai. Essa ilegitimidade não impedia que muitas delas fizessem uma bela carreira. Carlos Magno nasceu quando a mãe, Berta, era apenas a concubina de seu pai Pepino, o Breve. Foi legitimado mais tarde, quando os dois se casaram.

Durante a segunda metade do primeiro milênio, enquanto a religião cristã impunha a monogamia e a indissolubilidade do casamento, a poligamia ainda era comum. A partir do século X, essa situação tornou-se pouco a pouco obsoleta. No final do primeiro milênio, de fato, a Igreja ocupou uma posição preponderante na sociedade e impôs seus princípios primeiramente ao povo, depois à nobreza.


FONTES: Adaptado de - Famílias nada tradicionais. Texto de Catherine Salles. História Viva. n. 59. set. 2008.

CRÉDITO DA IMAGEM: http://www.pedagogia.com.br/