sexta-feira, 20 de julho de 2018

Os antigos do meu bairro

Old People, pintura de George Siaba. 2011.

Ele já não estava mais lá, sentado e lendo o jornal, nem ela descansando em sua rede. Ninguém mais sentiu o aroma que exalava de seus frangos assados aos sábados e domingos, ou dos pastéis fritos na hora nos dias de semana. A caminhada diária com vidros nas costas já tinha cessado. Histórias facetas não foram mais inventadas, contadas ou aumentadas. Primeiro foi a Dona Maria Raimunda, minha bisavó, com sua bengala improvisada, depois o ‘Seu Amazonas’, senhor de poucas palavras. O tempo, o tempo implacável, anos depois passou para o seu Aristolino, o ‘Bilico’, vidraceiro; e para a dona Néia, companheira do seu Amazonas. Meses depois era a vez do ‘Seu João’, meu pai e avô. Cinco personagens, cinco diferentes trajetórias, algo em comum: Eram os antigos do bairro, do bairro São Lázaro, na zona Sul de Manaus, aqueles que o viram surgir em meio ao improviso gestado pela necessidade de moradia entre as décadas de 1950 e 1960.

As construções também apresentam as marcas do tempo. A casa da D. Maria Raimunda, já com cinco décadas de existência, está com alguns azulejos rachados e, dessas fendas imperfeitas, crescem plantas diversas; com as grades desgastadas, perdendo a cor azul, mas continua com os jardins sempre floridos, com diferentes animais, borboletas, joaninhas, pássaros de diferentes espécies e, vez ou outra, uma iguana. Do lado esquerdo, desde a década de 1970, continua de pé o antigo muro de concreto que demarcava o limite da rua Nova, no bairro de São Lázaro. No pátio ainda brincam crianças, suas bisnetas, as quais a maioria não conheceu. Na sala, renovada, uma máquina de costura singer de 1960, hoje um objeto de decoração. Lembro de suas palavras “mágicas” para afastar os temporais: “levanta, levanta, levanta. Espalha, espalha”; ou da vez que colocou, na testa da única bisneta que conheceu, um pedaço de pano vermelho umedecido para que esta parasse de soluçar.

A alguns passos da casa de D. Maria Raimunda moravam D. Néia e o Seu Amazonas. Tenho gravado em minhas memórias o bom humor de Dona Néia, marcado por sua risada contagiante. Era muito amiga de minha bisavó, visitando-a inúmeras vezes para colocar os assuntos em dia. Quando conheci o Seu Amazonas ele já estava debilitado pelo Mal de Parkinson. Quase não falava, mas esboçava reações como risos quando ouvia ou via algo engraçado. Foi colega de trabalho do marido de dona Raimunda, Zacarias Rodrigues Vieira, na COMARA (Comissão de Aeroportos da Região Amazônica).

Ainda é estranho passar na Travessa Maria Andrade (antiga São Vicente) e não dar bom dia ou boa tarde para o seu Aristolino Pereira, Bilico para os mais conhecidos, amigo de longa data do meu avô, sempre sentado ao lado de sua esposa em uma cadeira de embalo. Foi um dos primeiros moradores do bairro, um dos guardiões da Paróquia de São Lázaro, a qual sempre esteve de prontidão para ajudar quando necessário, seja para fazer seus vitrais, para atuar como catequista, coordenador do movimento do terço dos homens e ser agente da Pastoral do Batismo. Ele se interessou por meu projeto de escrever a História do bairro, marcamos um dia para eu entrevistá-lo, mas esse dia nunca chegava por causa de imprevistos acadêmicos. Quando tive a chance, já tinha chegado a hora desse entusiasta da História do Barro Vermelho partir, sem deixar que eu o visse uma última vez.

João Augusto de Carvalho, meu pai e avô. Foi comerciante, capitão e funcionário da Alfândega de Manaus. Terminou seus dias sem aceitar a aposentadoria, sempre fazendo algo para se manter na ativa. Vendeu por alguns anos pastéis e frangos assados na frente de casa, da antiga casa da sogra Maria Raimunda, na rua Nova. Partiu em um 14 de dezembro de 2016, deixando aquele final de ano marcado na família. Conversas não foram muitas, mas as que existiram estão bem guardadas, sobre as raízes familiares em Óbidos, no Pará, sobre os bisavós Alberto de Carvalho e Zeneide Buenano que não conheci, sobre os primeiros empregos e o dia em que chegou em Manaus. Materialmente restam algumas fotos, uma rara de 1943 quando tinha apenas um ano, com seus pais; ferramentas como um esquadro alemão do final da década de 1960, uma balança manual inglesa da marca Hughes, da mesma época, uma plaina de madeira; e uma pintura do dia do casamento, em 1970. Ficaram marcados os momentos em que chegava em casa trazendo pirarucus, tambaquis, tracajás, pacas, porcos do mato e outros animais de sabor inigualável.

Ambos viram o bairro nascer e crescer. Andaram por caminhos tortuosos, de barro, mas puderam ver o asfalto e a energia chegar; viram e utilizaram as carroças utilizadas no transporte de madeira e palha, assim como os ônibus que mais tarde surgiram. Eles partiram sem avisar. Atravessaram o Rio Negro deixando fragmentos de épocas diversas em quem os pode escutar. Fui um dos atingidos por esses estilhaços temporais, brevemente registrados nesse texto.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Fine Art America

quinta-feira, 12 de julho de 2018

Resenha: Carros e Carroças de Bois, de Mário Ypiranga Monteiro (1984)

Carros e Carroças de Bois, de Mário Ypiranga Monteiro. Manaus, 1984.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Carros e Carroças de Bois: Subsídios para a história social do Amazonas. Manaus, Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1984.

Carros e Carroças de Bois: Subsídios para a história social do Amazonas é um trabalho do historiador e folclorista Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004) publicado em 1984, sendo uma de suas produções voltadas para a história social do Amazonas, assim como O Aguadeiro (1947) e O Regatão (1958). Diferente de seus trabalhos anteriores, Mário Ypiranga enfrentou a dificuldade da escassez de fontes, de fontes que levassem pelo menos a uma origem remota da introdução desses veículos no Amazonas e em outros territórios, a qual atribuiu à "[...] característica singular da própria geografia regional, de vez que as estradas batidas são irrisórias" (MONTEIRO, 1984, p. 17). No entanto, ele afirma que essa característica singular "[...] condicionou o veículo ao estreito âmbito das sedes municipais e a um regime rural pobre de referências" (MONTEIRO, 1984, p. 17).

É nos interiores, nos interiores mais ou menos povoados na época em que o autor escrevia (apesar de ter sido publicado em 1984, as pesquisas de Mário Ypiranga ocorreram em diferentes momentos entre as décadas de 1940 e 1950), que foram encontrados registros materiais vívidos, ainda que de forma modesta, e alguns na capital. O autor estuda esses transportes em Manaus, Janauari, Coari, Manicoré, Tefé, Itacoatiara, Rondônia e Rio Branco. São 11 pequenos capítulos no total. Seus informantes e colaboradores foram os

"[...] senhores prefeitos capitão Alexandre Montoril, de Quari; Lourival Santana, de Manicoré; Francisco Antônio de Lima, antigo morador em Tefé; dr. Otaviano Soriano de Melo, Juiz de Direito em Tefé; Lúcio de Araújo Lima, os três últimos já falecidos; sr. Sebastião Lima, padre dom Atanásio de Aguiar e outros que porventura haja esquecido e que serão lembrados no texto" (MONTEIRO, 1984, p. 15).

Aos poucos documentos escritos soma, ainda que não seja um completo apreciador, a história oral. Sobre os dados oferecidos por um informante, diz o seguinte: "Todavia não aceito a lição histórica e por motivos também de natureza histórica, embora não me seja possível, no momento, apresentar documentos" (MONTEIRO, 1984, p. 83). Em alguns momentos recorre às memórias de sua infância, sobre os carros e carroças que viu em Manaus, no Centro ou na Aparecida, seu bairro de nascimento, e aos relatos de seu pai. 

A metodologia empregada na produção de Carros e Carroças de Bois pode ser caracterizada como uma história antropológica. Mário Ypiranga foi a campo, em todas as cidades e territórios em que soube da utilização desses veículos. Não fez simples descrições. Analisou os tipos de madeiras utilizados na confecção das carroças e carros, os bois empregados (de raça, importados ou naturais), seus nomes pitorescos, os preços do transporte, das carroças e dos bois, e os comandos utilizados pelos carroceiros para comandar as ações dos animais. Ainda mais detalhadas são as descrições das peças, os canzis, as cangas, os tampais, as brochas e as rodas. Da população das cidades e territórios por onde passou apreendeu um rico folclore sobre os carros e carroças de bois, com cantos e ditos populares. Em Rio Branco (Território Federal de Roraima, 1962) recolheu a seguinte letra de uma toada:

"Meu carro de madrugada
vai chegando perto de casa...
Esquenta o eixo para o patrão acordar
com o canto do boi estimado...
Desperta meu patrão,
que eu vou chegando em casa..." (MONTEIRO, 1984, p. 82)

Por que escrever sobre carros e carroças de bois? Mário Ypiranga enfrentou esse questionamento enquanto fazia suas pesquisas em Rondônia. Um funcionário da prefeitura, de forma irônica, surpreendeu-se ao saber da existência de um "doutor em carrologia bovina" (MONTEIRO, 1984, p. 53). Apesar de toda a fragmentação, das origens incertas, o autor conseguiu mostrar como os carros e carroças de bois formavam um universo cultural amplo e diversificado. Um carro de Itacoatiara não era igual ao de Coari, nem o de Manaus ao de Rio Branco. Em suas palavras, "o carro de bois conserva, portanto, um traço de união, que diríamos mágica, entre o homem e a terra" (MONTEIRO, 1984, p. 14).

Mário Ypiranga, à maneira do ensaísta, historiador e antropólogo Gilberto Freyre (1900-1987), deu importância à cultura, à cultura material, aos elementos dispersos no espaço mas com significados importantes para a compreensão do homem amazônico, do meio em que vive, do espaço que criou, que se sujeitou, ao longo dos séculos. É na cultura e pela cultura que se compreende o sentido de sua obra.

terça-feira, 10 de julho de 2018

Anúncios de escravos em jornais da Província do Amazonas (1857-1880)

Hoje, 10 de julho, comemora-se a abolição da escravidão no Amazonas, decretada em 10 de julho de 1884 pelo então presidente da Província do Amazonas Theodureto Carlos de Faria Souto. O movimento pela libertação dos escravos da Província e o fim dessa prática já vinha sendo desenvolvido por sociedades abolicionistas de senhoras, pela Maçonaria, por estudantes e intelectuais da região. Em 1884 surgiu o jornal O Abolicionista do Amazonas, gerido por senhoras que propagavam os ideais de libertação uma ou mais vezes na semana através desse periódico. No presente texto apresento alguns anúncios de venda e de recompensas para a captura de escravos publicados em jornais da Província do Amazonas entre 1857 e 1880.

José Piranga, escravo negro e oficial de calafate, humilde e com 32 anos, fugiu do domínio de José Joaquim de França, no dia 09 de abril de 1857, levando consigo seu filho de nome Cipriano, com 13 anos de idade. Percebam como funcionava a circulação de escravos: José Piranga foi escravo do Capitão Thomaz, de Villa Bella, sendo posteriormente comprado por José Coelho do Itaituba, que o vendeu para José Joaquim de França, o anunciante. O proprietário oferecia uma gratificação a quem os capturasse, assim como se manifestaria contra os que lhes dessem abrigo. Serpa (Itacoatiara), 10/04/1857.

Mesquita & Irmãos, grandes comerciantes da época, estabelecidos na antiga rua do Imperador (Marechal Deodoro), anunciam para aluguel um escravo que entendia de cozinha. O aluguel de escravos garantia uma boa renda aos proprietários. Manaus, 1866.

Com um grande título escrito 'Gratifica-se', Amorim & Irmãos, propriedade do Comendador Alexandre de Paula de Brito Amorim (1831-1881), oferecia uma gratificação a quem capturasse o escravo Bernardino, 'molato folo', que pertenceu ao capitão Antonio Lebo de Macedo, que o vendeu a João José Ferreira, que depois o vendeu a Custódio Pires Garcia, de quem foi comprado pelos anunciantes. Assim como Mesquita & Irmãos, manifestaria-se contra quem desse abrigo ao fugitivo. Manaus, 18/12/1867.

Alguns anúncios eram extensos, nos oferecendo mais detalhes sobre os proprietários e o escravo fugido. Antonio José Lopes Braga, procurador de seu irmão Luiz Antonio Lopes Braga, este herdeiro de Hermenegildo Lopes Braga, procurava um antigo escravo de Hermenegildo, em fuga desde 1868, cujo nome era Tristão, de mais ou menos 25 anos de idade, de cor "mulata atapuiado", de cabelos meio crespos, altura normal. Detalhes, muitos detalhes. Com essas descrições facilitava-se o reconhecimento e a captura. Sabia-se que estava em Silves, no interior. Caso fosse capturado, poderia ser entregue em três endereços: Em Manaus; no Pará, na firma Francisco Joaquim Pereira & Cia; e na Ilha das Araras, no rio Madeira, ao Capitão Antonio Lopes Braga. As despesas feitas durante a captura e a viagem seriam pagas pelo anunciante. O mesmo afirmava que não seria aplicado no escravo qualquer forma de castigo. Sobre a recompensa, esta ficaria em cem mil réis. Da mesma forma que outros anunciantes, manifestaria-se contra os que lhe dessem abrigo. Manaus, 31/08/1870.

Tratados como mercadorias, os escravos, importados ou já nascidos nessa condição, iam e viam, utilizados em casas comerciais, em afazeres domésticos e serviços públicos. Nesse anúncio a firma Debusine & Levy, estabelecida na rua Brasileira (Avenida Sete de Setembro), informava necessitar de um escravo. Quem tivesse algum disponível para a venda deveria levá-lo até a sede da mesma. Manaus, 29/05/1880. 


FONTES (PERIÓDICOS):

Estrella do Amazonas, 10/04/1857.
Amazonas, 1866.
Jornal do Rio Negro, 18/12/1867.
Amazonas, 31/08/1870.
Amazonas, 29/05/1880.