Cachoeira do Tarumã. Cartão postal de 1975. FONTE: Acervo pessoal.
A
relação do homem com a natureza é ambígua. Ao mesmo tempo em que
dela necessita para a manutenção do meio em que vive, também lhe
destrói em nome da satisfação material. Foram poluídos ou
desapareceram nessa onda de devastação os igarapés e balneários
de Manaus, elementos que por muitas décadas fizeram parte do
cotidiano de seus habitantes, que neles encontravam um refúgio para
o descanso e lazer nos finais de semana.
O
igarapé, do tupi ygara
(canoa), apé
(caminho), como revela sua origem etimológica, foi o caminho do
habitante primitivo do que viria a ser a cidade. Em suas igarités,
os indígenas de diferentes etnias cortavam esses pequenos cursos
d’água que serpenteavam o terreno pelo interior das matas.
Posteriormente, deles se apropriaram os espanhóis, ingleses,
franceses e portugueses, neles
transitando intensamente em busca das drogas do sertão. Já
no século XIX, serviu ao regatão, comerciante das águas.
Na
planta 'croquis' de Manaus de 1852, feita no governo do presidente da
Província do Amazonas João
Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, além dos limites urbanos,
pode-se observar que a pequena cidade era dominada pelos igarapés de
São Vicente, da Ribeira, da
Bica, do
Espírito Santo, do Aterro, da
Cachoeirinha, da
Cachoeira Grande, de
Manaus, da Castelhana e de Monte Cristo,
que cortavam seus poucos bairros (Remédios, República, Espírito
Santo, Campina e São Vicente) e
arrabaldes.
Eles
determinavam o traçado das ruas, o sentido das construções,
abasteciam os moradores de água potável. Em síntese, eram de vital importância
para o funcionamento da cidade.
Igarapé da Cachoeira Grande. Gravura de Emmanuel Bocher, 1860. FONTE: Brasiliana Fotográfica/Instituto Moreira Salles.
Em
visita a Manaus no ano de 1865, o casal viajante
Louis
e Elizabeth Agassiz não pôde
deixar de visitar
o Igarapé da Cachoeira Grande, por eles descrito como "uma
Niágara em miniatura",
em referência à pequena cascata (AGASSIZ, 2000,
p. 266). Registraram,
ainda, que nos igarapés
da cidade se reuniam "[…] os
pescadores, as lavadeiras, os banhistas, os homens que pegam
tartarugas" (AGASSIZ, 2000,
p.
274). Os
igarapés
eram
pontos
de encontro e locais
de onde se tirava o sustento. Essas características fizeram
com que fossem protegidos pelos Códigos de Posturas.
Dos cinco artigos do Código de Posturas de 1868, por exemplo, quatro tinham
esse fim:
"Art.
1°. - Fica proibido o corte de arvores, varas arbustos maiores de 5
palmos em todos os riachos ou igarapés que ficarem dentro dos
limites da cidade e nos seos subúrbios, em uma zona de 60 palmos de
largura a partir do leito dos mesmos riachos, ou igarapés. O
infractor ocorrerá na pena de 20$000 réis de multa ou 4 dias de
prisão.
Art.
2° - Nesta mesma pena incorrerão aquelles que fizerem escavações
nesses lugares, revolverem lamas, deitarem lixo, páos, couzas
pútridas ou qualquer outra materia que possa alterar a pureza das
águas.
Art.
3° - Também fica prohibido
o côrte de arvore nas margens dos igarapes, das cachoeiras grande e
pequena continuas a esta cidade, maxime aos lugares que servem de
logradouros públicos.
O
infractor incorrerá na multa de 30$000 réis ou 8 dias de prisão.
Art.
4° - Fica proibido d’ora em diante tirar-se agoa no Igarapé do
Aterro para ser vendida a população, e bem assim lavar-se roupa,
cavallos e outros quaesquer animaes. O infractor será punido com
5$000 réis ou a 2 dias de
prisão"
(‘CÓDIGO DE POSTURAS MUNICIPAES DE 1868’, Apud SÁ, 2012, p.
54-55).
Os
banhos em igarapés eram uma tradição que resistia às proibições
que iam surgindo, cada vez mais rígidas. Se por um lado elas eram
criadas para manter a integridade desses lugares, por outro, ao qual
era dada mais ênfase, eram mecanismos de controle de hábitos
considerados impróprios e atrasados. Eram frequentes as denúncias
e prisões. Em 1892, Manoel Bento Gama
foi preso por estar tomando banho no “Igarapé
de Manáos”
(AMAZONAS, 31/08/1892). O jornal humorístico A
Marreta, em 1912, recebeu a denúncia de que "[…] uma
marafona de noma Alzira, vulgo Cegueta", tinha "o habito de a altas
horas da noite tomar banho no igarapé (de Educandos) em trajes de
Eva acompanhada de diversos rapazes, fazendo uma algazarra tremenda" (A MARRETA, 01/12/1912). Em 1913, moradores da Cachoeirinha, por meio
da coluna ‘Queixas do Povo’, do Jornal do Comércio, pediam
providências à polícia para solucionar o problema de "um
grupo de indivíduos que costuma diariamente tomar banho no igarapé
das imediações da Avenida Canaçary",
pois essa situação era “um
desrespeito às famílias que ali têm residência”
(JORNAL DO COMÉRCIO, 14/01/1913).
Igarapé do Espírito Santo. Foto de Albert Frisch, 1865. FONTE: Brasiliana Fotográfica/Instituto Moreira Salles.
No
final do século XIX e ao longo do século XX, boa parte desses
igarapés foi aterrada para dar lugar a vias públicas. Ainda
no período imperial, o Igarapé da Ribeira foi aterrado para a
construção do Cais da Imperatriz, na entrada da cidade. O
Igarapé do Espírito Santo deu lugar à Avenida Eduardo Ribeiro. O
Igarapé dos Remédios à Avenida 13 de Maio, posteriormente Avenida
Getúlio Vargas, e à Avenida Floriano Peixoto. O
Igarapé de São Vicente foi aterrado para ligar o antigo bairro de
mesmo nome ao restante da cidade. Dava-se
adeus,
nas palavras do historiador e artista plástico Otoni Moreira
Mesquita, à "Veneza
Amazônica",
apagando,
em nome do progresso, o passado nativo de Manaus (MESQUITA, 2006, p. 166).
Apesar
do aterro desses igarapés, sobreviveram os
que se tornariam bastante populares entre os manauaras, dos quais
hoje restam, atualmente, apenas fotografias e o saudosismo de tempos
mais amenos. Na coluna ‘Onde a Cidade se Diverte’ do Jornal do Comércio, de 30 de julho de 1959, recomendava-se três igarapés e seus
respectivos balneários públicos: "Parque
10 de Novembro, Ponte da Bolívia e Tarumã" (JORNAL DO COMÉRCIO, 30/07/1959).
Parque 10 de Novembro. Cartão postal da década de 1950. FONTE: Manaus de Antigamente.
As
obras do Balneário do Parque 10 de Novembro tiveram início
em 10/11/1938 por ocasião do aniversário de um ano do Estado Novo,
na administração municipal de Antônio Botelho Maia (1937-1940),
irmão do Interventor Federal Álvaro Botelho Maia. As obras foram
continuadas na administração de Paulo de La Cruce Grana Marinho
(1940-1942), tendo o Balneário sido inaugurado em 19 de abril de
1943, dia do aniversário do Presidente Getúlio Dornelles Vargas,
pelo prefeito Antóvila Mourão Vieira (1942-1944).
Ocupando uma área de 50 hectares ao
norte da Vila Municipal (Adrianópolis),
era recortado pelas águas do Igarapé do Mindu, possuindo
uma piscina grande para adultos, uma para crianças, um
‘bar-dancing’, restaurante,
quadras de tênis, basquete e vôlei e um playground. Foi
por muitas décadas considerado o melhor balneário da região Norte.
O
que restou dele, nos dias de hoje, está coberto pelo mato, em
ruínas, com o igarapé poluído.
Balneário da Ponte da Bolívia. Cartão postal de 1977. FONTE: Manaus de Antigamente.
A Ponte da Bolívia foi construída em 1958 na administração estadual de Plínio Ramos Coelho (1955-1959) sob o Igarapé da Bolívia, na Avenida Torquato Tapajós, AM-010.
Esse
trecho passou a ser frequentado nos finais de semana, ficando
conhecido como Balneário da Ponte da Bolívia. Também
foram construídas, assim como no Parque 10 de Novembro, algumas
instalações para os frequentadores, embora mais modestas, como um
pavilhão e alguns quiosques de madeira e palha. A
construção de um aterro sanitário pela Prefeitura em meados da
década de 1980 pôs fim, aos poucos, ao igarapé. Em 1994 o Jornal
do Comércio publicava, na coluna ‘Linhas Cruzadas’, que "o
aterro sanitário do quilômetro 17 da Manaus-Itacoatiara" estava "poluindo tremendamente o Igarapé da Bolívia, aquele que passa por
baixo da ponte de mesmo nome" (JORNAL DO COMÉRCIO, 10/06/1994). O chorume dos dejetos penetrava na
terra e atingia o igarapé, tornando-o um perigo à saúde pública.
Igarapé do Tarumã. Gravura de 1847. FONTE: Manaus Sorriso.
O
mais marcante, sem dúvidas, foi o Igarapé do Tarumã, afluente
do rio Tarumã, localizado
entre as zonas Oeste e Leste da cidade,
que já aparece em gravuras
e fotografias desde a segunda metade do século XIX,
chamando a atenção de viajantes e turistas. Também
são afluentes os igarapés do Tarumãzinho e da Cachoeira Alta e
Baixa, tão famosos quanto o do Tarumã. Ambos, já na década de 1990, estavam impróprios o banho público. A cada diz toneladas de lixo se acumulam nesses cursos d'água.
Também
existiam balneários particulares, como o Maringá,
criado entre o final da década de 1950 e o início da década de
1960, antigamente localizado no quilômetro 06 da Rodovia AM-010, em
frente a entrada da boate Saramandaia. Era propriedade particular do
casal de comerciantes Alfredo Raposo e Messody Sabbá Raposo. Esse
era um balneário de luxo frequentado por pessoas da alta sociedade
manauara da época, amigos íntimos do casal Raposo. No local, uma
residência, uma grande piscina, um campo de futebol e muitos pés de
goiaba e caju. Encerrou suas atividades na década de 1980, quando
foi adquirido pela extinta PORTOBRÁS (Empresa de Portos do Brasil).
O
mais refinado deles foi o Balneário do Bosque Clube, instalado na
antiga Estrada de Flores, este cortado pelo Igarapé dos Franceses.
Era, no início do século passado, ponto de encontro da colônia
inglesa de Manaus, sempre a fazer, nos finais de semana, seus famosos
‘picnics’. O memorialista Luiz de Miranda Corrêa, em seu 'Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro', cita os banhos "Tucunaré, Casablanca e Bancrévea" (CORRÊA, 1969, p. 88).
Maruja Ceballos Gomes, candidata do Balneário Maringá. Foto de 1960. FONTE: Jornal do Comércio, 19/11/1960.
A
futura degradação dos igarapés e balneários de Manaus já se
anunciava desde a década de 1960. A destruição da Cidade
Flutuante, favela fluvial existente na orla da cidade desde a década
de 1920, feita com pouco planejamento, fez com que inúmeras famílias
passassem a ocupar os leitos dos igarapés da cidade, erguendo
habitações irregulares. No fim desse período e ao longo da década
de 1970, com
a intensificação da industrialização, mediante a instalação da
Zona Franca, bem como o crescimento desordenado da cidade, recebendo
milhares de imigrantes, os igarapés tornaram-se os locais de despejo
dos esgotos residencial e industrial. Os danos foram tamanhos que, em
1981, o Presidente da Associação Amazonense de Proteção
Ambiental, Francisco Braga, afirmou categoricamente que “todos
os igarapés de Manaus estão sendo poluídos pelos esgotos
residenciais e industriais”
(JORNAL DO COMÉRCIO, 05/11/1981).
Há
mais de 20 anos o cenário desses espaços que um dia fizeram a
alegria dos manauaras é desolador. As gerações mais novas foram
privadas desse divertimento, tendo como referenciais mais próximos
as fotografias, os cartões-postais e os relatos dos mais velhos.
Faltou
consciência dos que passaram a ocupar suas margens, faltou
planejamento dos administradores públicos no
tocante à habitação.
Ambos são
problemas
históricos que acompanham nossa sociedade. Caso não ocorram mudanças, corre-se o risco de que a degradação chegue ao Rio Negro e aos rios do interior do Amazonas.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
AGASSIZ,
Jean Louis Rodolph. Viagem ao Brasil 1865-1866. Trad. de Edgar
Süssekind de Mendonça. Brasília: Senado Federal, Conselho
Editorial, 2000.
CORRÊA, Luiz de Miranda. Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro. Manaus: Artenova, 1969.
MESQUITA,
Otoni Moreira. Manaus, História e Arquitetura (1852-1910), 3°
ed, Manaus: Editora Valer, Prefeitura de Manaus e Uninorte, 2006.
SÁ,
Jorge Franco de. Manaus: higiene, meio ambiente e segurança do
trabalho na época áurea da borracha. Manaus: Edua, 2012.
FONTES:
Amazonas,
31/08/1892.
A
Marreta, 01/12/1912.
Jornal
do Comércio, 14/01/1913.
Jornal
do Comércio, 30/07/1959.
Jornal
do Comércio, 10/06/1994.
Jornal
do Comércio, 05/11/1981.
CRÉDITO DAS IMAGENS:
Manaus de Antigamente.
Manaus Sorriso.
Brasiliana Fotográfica/Instituto Moreira Salles.
Jornal do Comércio.
Parabéns mano, abraço forte!
ResponderExcluirMuito obrigado amigo, volte para mais leituras.
ExcluirUma pena saber que, tal como as praias daqui do Rio de Janeiro, os igarapés da Amazônia também vão se perdendo por causa da poluição. Moro num balneário marítimo cujas águas também se encontram impróprias.
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