segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Mário Ypiranga, Pe. Nonato e a Fundação de Manaus

Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004) e Pe. Raimundo Nonato Pinheiro (1922-1994).

Chegado o mês de outubro, do aniversário da cidade de Manaus, escrevo artigos sobre a sua história e também reproduzo textos clássicos da historiografia local. Hoje, 1° de outubro, reproduzo um famoso embate intelectual entre Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004) e Pe. Nonato Pinheiro (1922-1994), historiadores do IGHA (Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas), em torno da fundação de Manaus. São quatro artigos publicados em 1969, ano do Tricentenário de Manaus: Parecer do Professor Mário Ypiranga Monteiro, As Origens Nubilosas de uma Cidade, A César o que é de César e Dúvida e Vacilações do Tricentenário.


Parecer do Professor Mário Ypiranga Monteiro, de 15 de Junho de 1969, Apresentado no Conselho Estadual de Cultura

Sr. Presidente,
Srs. Conselheiros

Comunicando o meu parecer sobre as sugestões apresentadas a este colegiado, respectivamente da autoria dos srs. Luiz Maximino de Miranda Corrêa e padre Raimundo Nonato Pinheiro, o último representando o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, não pretendo em absoluto criar situações que possam vir a ser mal interpretadas, uma vez que a História não se regula pela simples fórmula convencional. No caso presente, quando se trata de reconhecer publicamente o valor de indivíduos ou de situações de fato ou de direito, a História de Manaus não permite vacilações, embora muitos fatos estejam obscurecidos pela ausência de documentos.

É justamente a ausência de um documentário volumoso que situa o problema da fundação da cidade no plano das discussões teóricas. Isto, entretanto, é resolvido quando se sabe, pelo documentário à mão que nem a Pedro da Costa Favela ou Favila nem a Francisco da Mota Falcão se deve a fundação da cidade. A fundação de uma cidade se revestia de direito consuetudinário, que implicava na tomada de posse em nome do rei. A autoridade investida desse direito lia publicamente o bando, juntava um pouco de terra e atirava-a para o ar. Ora, nada disso houve em Manaus que caracterize uma situação de fato e de direito, que envolva os nomes daqueles cidadãos sugeridos como fundadores, nem nada que ocorra dentro da pragmática. Os apógrafos são omissos nesse particular, mesmo porque são podiam registrar tais fatos.

Dois vassalos do rei de Portugal, Francisco da Mota Falcão e seu filho Manuel da Mota Siqueira foram atribuídos da responsabilidade de construir a Casa-Forte do Rio Negro, e o fizeram em 1669 sem outra qualquer interferência no ritual processualístico e muito menos no desenvolvimento da concentração ativa. Não tomaram posse da terra, não chantaram o marco de fundação exigível, não lavraram termo de posse nem de fundação, não lançaram bandos. Construído o forte, passaram a outros afazeres, nem ao menos ficando residindo no local. Suas atribuições eram apenas as de engenheiro e construtor. É o que consta dos documentos.

A cidade evoluiu à margem de uma desordem administrativa curiosa. De uma grande aldeia de índios Manaus, cursou os vários estágios de arraial, lugar, vila e cidade à mercê dos caprichos individuais. Se cabe alguma homenagem a alguém, esse alguém deveria ser sargento Guilherme Valente, que teve a habilidade de chamar a amizade dos índios, convolando núpcias com a filha do tuxaua. Conseqüentemente, meu parecer é que este douto Conselho Estadual de Cultura avoque a si o direito lícito de opinar sobre o assunto, deixando de tomar em consideração as duas propostas apresentadas, que aparecem como fruto de nenhuma validade histórica no caso da fundação da cidade, embora não se possa deixar de louvar a preocupação que tiveram ambos os signatários das proposições de cooperar.

Isto posto, nós propomos a este conspícuo colegiado que a medalha a ser cunhada leve simplesmente o nome de "Cidade de Manaus", com os demais títulos a serem discutidos. Para exemplo, basta citarmos o fato recente do biliardário de Paris, cuja medalha de bronze leva o título "Cidade de Paris", com as armas da cidade no cunho, e demais títulos no verso.

É este o nosso parecer, com visto aos demais Conselheiros.

S. S. em Manaus, 15 de julho de 1969, ano do tricentenário desta fiel cidade de Manaus

Mário Ypiranga Monteiro
Relator

Dúvida e Vacilações do Tricentenário 

Padre Nonato Pinheiro

Surpreendi-me com a desempenada declaração do professor Mário Ypiranga Monteiro, afirmando de peito aberto, pelas colunas de O Jornal, edição do dia 24 do mês expirante: "No caso presente, quando se trata de reconhecer publicamente o valor de indivíduos ou de situações de fato ou de direito, a História de Manaus não permite vacilações, embora muitos fatos estejam obscurecidos pela ausência de documentos".

Apesar do direito que assiste a qualquer cidadão de apreciar assuntos trazidos a terreiro "verbis et scripts", como assunto vertente, não viria a tapete para apreciá-lo, não fosse a inserção de meu apagado nome, por tanto, a responsabilidade de representante do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, circunstância alegada pelo articulista. Historiemos os fatos.

A Fundação Cultural do Amazonas, dirigida superiormente pelo acadêmico Elson Farias, consultou o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas sobre qual dos nomes deveria figurar na medalha a ser cunhada pelo Governo do Estado, comemorativa do tricentenário da construção da Fortaleza de Jesus, Maria e José da Barra do Rio Negro: Pedro da Costa Favela ou Francisco da Mota Falcão? That is the question.

Motivou a consulta uma entrevista concedida pelo escritor Francisco Gomes da Silva, membro do IGHA, ao matutino A Crítica, profligando a notícia, já em amplo curso, de que se cogitava o nome de Favela, o tenebroso genocida da hecatombe do Urubu, para figurar no referido numisma (prefiro o gênero masculino). Francisco Gomes da Silva pois em ressalte o extinto sanguinolento e bárbaro, que macula e malsina a memória desse famigerado facínora, que tanto sangue indígena derramou pelas plagas amazônicas. Chama-lhe, o professor Ypiranga, "o sanguinário Pedro da Costa Favela, figura central de tantíssimos crimes" (Fundação de Manaus - Aspectos do Panorama Histórico-Social do Antigo Lugar da Barra - Manaus, 1948). Dá-nos ainda o professor Ypiranga este impressionante perfil do terrível bandido, na obra citada: "Foi ele o célebre autor da chacina do rio Urubu. Partiram de Belém a 6 de setembro, com trinta e quatro canoas, quatrocentos soldados e quinhentos índios. Chegou ao rio Urubu a 25 de novembro e numa represália que caracterizou os processos ferozes dos colonizadores, aplastra na terra os cadáveres de setecentos índios, reduzindo ao cativeiro cerca de quatrocentos. Ainda incendiou trezentas malocas". Bertino de Miranda alude a essa mortandade horripilante, usando a expressão "carnificina inacreditável" (A Cidade de Manaus, 1908, p. 2). Arthur Reis informa: "Em 1668, chegara ao Rio Negro, a testa de uma tropa, que vinha em som de guerra, Pedro da Costa Favela, um dos mais bárbaros caçadores de selvagens, experimentado na arte singular de penetrar a Selva Selvaggia, figura impressionante, que se assinalava sempre pela intrepidez, pelos rios de sangue que deixava no caminho" (Manaus e outras Vilas. In: Revista do Instituto Geográfico e História do Amazonas. vol. IV, p. 43). Aprígio Martins de Menezes, em sua sinopse de História do Amazonas, refere: "Deste desastre resultou que, em 1665, Pedro da Costa Favela invadisse o Urubu e a 7 de janeiro levasse às malocas de suas principais nações o incêndio, a devastação e a morte" (AmazônidaHistória e administradores do Amazonas, p. 42). Anísio Jobim ressalta: "Pedro da Costa Favela, oficial acostumado as Razzias feitas aos selvagens" (Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, vol. VII, p. 9).

Consultado o IGHA, e designando-se o presidente, desembargador João Rebello Corrêa para relator do parecer, opinei em favor de Francisco da Mota Falcão, na maioria dos historiadores dado como o construtor do forte, juntamente com seu filho natural Manuel da Mota Siqueira, que teria consolidado a obra de seu pai, ou, segundo outros, construído o fortim no local escolhido por seu genitor. Entendo que, se as comemorações giram em torno da construção do forte, óvulo histórico de nossa capital, deveria figurar na medalha o seu construtor, a figura a quem o governador Coelho de Carvalho atribuiu a tarefa da sua construção, embora reconhecendo, como frisei, a influência das informações de Favela junto ao governador.

Levado o parecer ao doutíssimo Conselho Estadual de Cultura, onde esplendem sóis de viva fulguração, veio a campo o professor Mário Ypiranga Monteiro, como relator, reputando as propostas do sr. Luiz Maximino de Miranda Corrêa e a minha, como "fruto de nenhuma validade histórica no caso da fundação da cidade", afirmando ainda que, nesse particular, "a História de Manaus não permite vacilações".

Com todo o respeito que me merece a cultura do professor Mário Ypiranga Monteiro (faço-lhe esta justiça), num meio em que proliferam as mediocridades empavonadas e as culturas de cutiliquê, gralhas solertes em cobrir-se com as penas de pavão, fiquei estarrecido, partindo de quem partiu, em face dessa afirmação, assim tão categórica e dogmática.

Toda a nossa História, a de Manaus e a do Amazonas, está eivada de dúvidas e vacilações de tal porte, que sabe muito bem o professor Ypiranga Monteiro que não há nem segurança do ano (quanto mais dia e mês!) da construção desse fortim. Sabe muito bem o ilustrado historiador que é possível estejamos todos a cometer uma farsa, celebrando o tricentenário em 1969, quando talvez (ou sem talvez?) o verdadeiro tricentenário ocorra somente em 1997, daqui a 28 anos!

É o professor Mário Ypiranga Monteiro, com o peso da sua autoridade, que trago a campo para repetir o que nos ensinou em 1948. "É interessante a disparidade de datas apresentadas. Para Bettendorf, foi em 1689 que levantaram a Casa-Forte. Melo Morais, na História dos Jesuítas, refere o ano de 1690, mas não diz o motivo dessa preferência. O padre Samuel Fritz, escrevendo em 1691, revela que já havia anos que o rei mandaram fazer a Fortaleza (Diário. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Tomo 81). Entretanto, parece-nos que o documento mais interessante a respeito é o apresentado por Varnhagen, que insinua a data de 1697, havendo Manuel da Mota Siqueira se oferecido para levantar quatro fortins, entre estes o do Rio Negro. Como, porém, Varnhagen torna-se às vezes perigoso nas suas referências, atenhamo-nos à data de 1669, como a mais provável" (Fundação de Manaus, em arquivos, publicação da Associação Comercial do Amazonas, maio de 1948, p. 16).

Quer parecer-me que o professor Ypiranga incide numa contradição, afirmando que a História de Manaus "não permite vacilações", quando ele próprio, com pupilas devassadoras de historiador e pesquisador, verificou o labirinto de dúvidas, hesitações e vacilações das fontes da História de Manaus e do Amazonas, circunstância que deixa o estudioso tonto e perplexo em face de tantas divergências. Ninguém pode afirmar, com absoluta segurança, o ano da construção do forte de Jesus, Maria e José, raiz histórica de Manaus. O próprio Arthur Reis, de quem todos são caudatários, manifesta-se estarrecido diante de tanta insegurança. Em seu trabalho já citado (Manaus e outras Vilas), escreve: "Aqui são outras, grandes, grandíssimas dúvidas" (Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, vol. IV, p. 44). "Não se sabe ao certo (preleciona Ypiranga Monteiro) quem mandara construir o Forte: se o Rei ou Coelho de Carvalho" (Fundação de Manaus, em arquivos, p. 16).

As vacilações são grandes, grandíssimas, meu caro professor Ypiranga. Vacila V. S., vacilo eu, vacila o próprio Arthur Reis, que em seu nupérrimo artigo, publicado neste matutino, edição do dia 26, esquecido do que ensinou em trabalhos seus anteriores, segundo os quais Favela foi o inspirador da construção do forte, ponte de vista também assumido pelo professor Mário Ypiranga Monteiro, inclusive na placa que figura no frontispício do edifício da Secretaria de Fazenda, que agora verifico por Arthur Reis ser de sua autoria, esquecido do que ensinou, já não alude a Favela, afirmando categoricamente em seu artigo A propósito da Fundação de Manaus esta doutrina: "Um homem que se especializara no sertanismo regional e se propusera participar da política de montagem dos fortes, Francisco da Mota Falcão, propôs ao governo a construção daquelas praças fortificadas". Falcão, de simples construtor, passou a proponente da construção do fortim.

Como vê o professor Mário Ypiranga Monteiro, são os próprios mestres que vacilam. Eu próprio fico estarrecido. Há três meses que venho lendo com atenção e lápis na mão os trabalhos dos nossos historiadores: Arthur Reis, Bertino de Miranda, Bettendorf,, padre Samuel Fritz, Varnhagen, Araújo Amazonas, Sampaio, Alexandre Rodrigues Ferreira, Aprígio Martins de Menezes, Manuel Anísio Jobim, Mário Ypiranga Monteiro e outros, e fiquei pasmado em face de tantas vacilações e até de contradições berrantes, o que me leva a não aceitar a lição do professor Mário Ypiranga Monteiro, de que a "História de Manaus não permite vacilações". Toda ela é uma vacilação flagrante!

Estou tranquilo com o parecer que redigi, em nome do IGHA, sufragando o nome de Mota Falcão para a medalha. Arthur Reis agora me reforça (não sei se escorado em documentação nova vinda de Lisboa, segundo Pereira da Silva informou aos membros do IGHA), pontificando desempenhadamente, apontando Mota Falcão não só como construtor do fortim, mas até mesmo como inspirador da construção, arrebatando a inspiração de Favela, que o professor Ypiranga quis ressaltar na placa da Secretaria da Fazenda, a pedido de Arthur Reis: "Neste local, em 1669, foi construída a fortaleza de São José da Barra sob a inspiração do cabo de tropas Pedro da Costa Favela. Foram construtores o capitão Francisco da Mota Falcão e seu filho Manuel da Mota Siqueira. Desapareceu em ruínas no ano de 1850" (Transcrição da placa, feita às 10 horas do dia 26 do corrente).

Concluo: se a cidade nasceu à sombra do forte, como ensinam Arthur Reis e os demais historiadores; se Mota Falcão foi o seu construtor e proponente da construção (invoco o nupérrimo depoimento de Arthur Reis); se Mário Ypiranga Monteiro inseriu o nome de Francisco da Mota Falcão na placa aludida, como homenagens ao construtor do forte; se Mário Ypiranga ressalta na mesma placa a inspiração de Favela, como admitir que as exposições e propostas de Luiz Maximino de Miranda Corrêa e a minha "apareçam como fruto de nenhuma validade histórica"? Eu respeito, professor Mário Ypiranga Monteiro, os temas de cultura, que não costumo versar com leviandade. Sem ter tido qualquer estalo na cabeça, como dizem do padre Antônio Vieira, creio que possuo a mínima e suficiente capacidade para ler e interpretar autores, a não ser que suas doutas lições signifiquem o contrário do que ensinam. Voltarei ao assunto.


A César o que É de César

Mário Ypiranga Monteiro

O sr. padre Raimundo Nonato Pinheiro surpreendeu-me domingo com um artigo sem pé nem cabeça e cuja única finalidade parece ser a defesa intransigente de sua mancada no caso medalha "Cidade de Manaus". O seu erro, entretanto, foi atribuir demasiado valor a um mero especialista em construções militares e também tentar confundir-me com alusões ao meu livro Fundação de Manaus (duas edições, 1948 e 1952) e a uma placa existente na porta principal do edifício da Fazenda Pública. Essa plaquinha possui a seguinte história, que infelizmente ignora o reverendo: no fim do seu governo, o Arthur Reis mandou convidar-me, a mim e ao pintor Moacyr Andrade, e perguntou-me se eu identificava o local exato onde havia sido construída a Casa Forte do Rio Negro. Pela planta de Manaus, a mais antiga que se conhece, anterior a 1850, pelas descrições de viajantes e pelas reconstruções feitas por mim após o aterro de igarapés propínquos, o local coincide exatamente e não há por que duvidar. Quanto à data, 1669, a mais comum, da construção do fortim (houve outro, posterior), não somente segui a regra geral, como me filiei a uma notícia acerca da comemoração do bicentenário de Manaus, em 1869. Portanto, existe um precedente e não vejo por que deixar de aceitar a data mais preferida. Já está a placa, de minha autoria, alusiva à construção do forte com nomes e datas.

O sr. padre Raimundo Nonato Pinheiro não viria a tentar polêmicas se seu nome não estivesse ligado à infeliz promoção do nome do construtor do forte. Outro plumitivos têm escrito as maiores barbaridades sobre História do Amazonas e continuam escrevendo até investimento contra direitos autorais, mas o padre, que é do IGHA, não se manifesta, não defende o patrimônio histórico da cidade. É de admirar, portanto, que esteja agora deitando história quem certa vez meteu De Angelis na história da construção da nossa mais antiga catedral, ele que apenas é o autor de um projeto de basílica, nada mais. 

Pedro da Costa Favela, o sanguinário pernambucano trucidador de índios deve de haver inspirado ao governador Coelho de Carvalho, mas fê-lo considerando a possibilidade de invasão dos espanhóis pelo Rio Amazonas (chegaram até Ega, hoje Tefé) e pelos holandeses no Rio Negro. Jamais com o intuito claro e objetivo de fundar um núcleo de povoamento aqui. Se cabe alguma glória a alguém, esse alguém deveria ser Lobo d' Almada, autor constatado da mudança da capital de Barcelos para o reduto fortificado. Mas isso é uma outra conversa.

A História de Manaus deve ser escrita a partir da aldeia indígena já existente à época da construção do forte, mas de verdade o forte marca o início de uma atividade orgânica. Apesar de tudo, a autoridade principal do povoado não era militar e sim o encarregado do Diretório. Portanto, o forte teve apenas a função de acantonar a milícia e esta não poderia ficar inativa no que respeita ao processo de vinculação com a indiada. A história de Manaus deve partir da existência do forte, sim, e não de um homem que o construiu de ordem do rei de Portugal, como medida de estratégia, excluída qualquer intenção real de incrementar o povoamento.

Seria de maior interesse para a História se o construtor do forte da Barra viesse incumbido de fundar a cidade, mas isto jamais aconteceu. Por singular que pareça, Manaus não teve fundação oficial. Nem decretais, nem fórmulas simples, nem chantação do pelourinho, nem bandos, houve por onde se possa admitir um curso rigorosamente cronológico dessa fundação. Manaus evoluiu por si mesma até que recebesse sucessivamente as predicações de lugar, de vila e de cidade, quando outro lugares mais longe no tempo e no espaço já haviam passado por essas faces político-administrativas, documentadamente, inclusos autos de implantação do pelourinho, que eram o símbolo maior da justiça do rei. E a verdade é que outras localidades fortificadas nunca passaram de simples redutos, sem desenvolvimento social e cujos fortes acabaram em ruínas.

Não creio que o padre Raimundo Nonato Pinheiro tenha razão no que tange à eleição do seu pupilo como garante de uma situação descartável. Leia ele com serenidade tudo quanto já escreveu a respeito de Manaus de outrora, inclusive relatórios das autoridades, impressões de viajantes, os decretais régios, os alvarás, atas da Câmara (a partir do século passado) e verá que uma cidade como Manaus não pode ser tangivelmente consagrada a um fundador específico, a um indivíduo que nada mais era do que executor militar de ordens régias, autor da construção de outros fortes na Amazônia.

Foi com o espírito voltado para a história desses idos maravilhosos que indiquei o nome "Cidade de Manaus" para a medalha a ser cunhada. Evitamos, com isto, cometer uma injustiça e uma tolice. Injustiça, porque, em sã consciência, Francisco da Mota Falcão e seu filho Manuel da Mota Siqueira (cito a ambos no meu livro) não são e nunca foram os fundadores de Manaus. Tolice, porque uma cidade que não teve documento oficial de fundação não pode eleger à revelia um nome qualquer.

Quanto à data, é bem possível que houvesse erro de leitura de apógrafos, quando se escrevia um pouco mais ilegível para hoje, mas isto é apenas uma suposição minha, que não faço dogmática evitando com isto maior confusão: atenho-me ao ano 1669, leitura dos mais conspícuos historiadores do passado. E não vejo razão para que não seja comemorado condignamente este tricentenário como o fora o bicentenário em 1869.

Se o padre Raimundo Nonato Pinheiro não concorda, pouco se me dá. Eu fico com a História e com os historiadores e com as pesquisas diretas nos cartórios desta minha fiel cidade. Mas Mota Falcão não vai. Nem com açúcar. Muito menos o cretino do Favela ou Favila.

Voltarei, se necessário, em termos. E a Deus o que é de Deus.


As Origens Nubilosas de uma Cidade

Padre Nonato Pinheiro

Volto ao assunto encetado no último domingo, sobre as dúvidas e vacilações do tricentenário do fortim de Jesus, Maria e José (nome oficial) da Barra, ou de São José da Barra, como ficou popularmente denominado, origem histórica da cidade de Manaus. O sr. Mário Ypiranga Monteiro veio pelas colunas do Jornal do Comércio, tentando responder ao meu artigo. A verdade, porém, é que nada acrescentou de positivo para aclarar as dúvidas, que para Arthur Reis são grandes, grandíssimas. Pelo contrário, confirmou mais uma vez o que afirmei em meu trabalho dominical: "são os próprios mestres que vacilam...".

Vejamos a dubiedade de pontos de vista do professor Ypiranga. Em seu "Parecer", lido perante o douto Conselho Estadual de Cultura, em 15 de julho do fluente, e transcrito na página da Academia Amazonense de Letras (O Jornal, edição de 24 de agosto), pontifica: "Se cabe alguma homenagem a alguém, esse alguém deveria ser o sargento Guilherme Valente, que teve a habilidade de chamar a amizade dos índios, convolando núpcias com a filha do tuxaua (sic)". Muito bem. Com um pouco mais de boa vontade, teria chegado à conclusão de Bertino de Miranda, para quem esse sargento foi o fundador de Manaus: "Guilherme Valente funda a cidade aí pelo princípio do século XVIII" (A Cidade de Manaus, p. 2). Qual não foi minha surpresa, ao verificar que o erudito mestre, em menos de um mês, muda de parecer. Mandando Valente às urtigas, afirma de pés juntos: "Se cabe alguma glória a alguém, esse alguém deveria ser Lobo d' Almada, autor constatado da mudança da capital de Barcelos para o reduto fortificado" ("A César o que é de César...", Jornal do Comércio, 21.9.69).

Afinal de contas, quem deve ser homenageado: Guilherme Valente ou Lobo d' Almada. Qual das duas afirmativas traz a verdadeira chancela do professor Mário Ypiranga Monteiro? E ainda dizer que a História de  Manaus não permite vacilações!...

Insurge-se contra mim o articulista, pelo fato de me não manifestar contra  esses plumitivos que "têm escrito as maiores barbaridades sobre história do Amazonas e continuam escrevendo e até investindo contra direitos autorais". E apela para minha condição de membro do IGHA. Ora, bolas! Membro do IGHA também é o ilustre historiador e até mais antigo do que eu. E quem lhe tira o direito e a autoridade para fazê-lo? Por que não defende esse patrimônio histórico? Não é doutor de borla e capelo, perito no esgrimar e pena, laureado em desancas plumitivas? Que use em plenitude de seu direito doutoral, como usou no caso da cunhagem da medalha!

Afastando o assunto das dúvidas e vacilações, o professor Mário Ypiranga alude a uma intervenção minha, quando se tratou do empastilhamento da Catedral Metropolitana. Já que se ufana de sua condição de historiador da Sé, peço vênia para lembrar-lhe às mancadas que cometeu nesse livro, por mim referida em minha coluna semanal de recensão literária Letras & Livros, mantida outrora no Jornal do Comércio. Confundiu o padre Israel Galdino de Sousa com o cônego Dr. Israel Freire da Silva. Na obra Catedral Metropolitana de Manaus (1958), o professor Ypiranga Monteiro dá o velho cônego Israel Freire da Silva, catedrático de História Universal do velho Ginásio Amazonense, falecido em 1925, como Vigário da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição em 1936!... Há outras falhas, como a que diz respeito ao padre Ananias Câmara, a quem por sua conta conferiu o canonicato, quando o saudoso e ilustre sacerdote, talentoso orador sacro, de quem fui acólito na referida Paróquia, nunca recebeu nenhuma conezia, nem em Manaus, no episcopado de Dom João Irineu Joffily e Dom Basílio Pereira, nem em Niterói, no episcopado de Dom José Pereira Alves e Dom João da Mata de Andrade e Amaral...

Volta às origens nubilosas de Manaus. Citei o próprio professor Ypiranga Monteiro, quando alude à disparidade de datas apresentadas. Ele citou Bettendorf (1689), Melo Morais (1690) e Varnhagen (1691). Recomenda que nos atenhamos à data de 1669 "como a mais provável", embora declare que reputa mais interessante o documento apresentado por Varnhagen, sem embargo de não especificar o motivo de ser este último, a seu parecer, mais interessante (Fundação de Manaus, em arquivos, 16).

Arthur Reis é mais minucioso. Além dos autores citados por Ypiranga, menciona Araújo Amazonas (1669), João Ribeiro (1671), Aprígio Menezes (1669), Agnello Bittencourt (1669) e J. B. Faria e Souza (1669). Traz a palavra de Joaquim Nabuco, afirmando que "o povoamento do Rio Negro começou com Favela e frei Teodósio, em 1668-1669, seguido da fundação do fortim por Mota Falcão" ("Manaus e outras Vilas". In: Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, vol. IV, p. 47).

Ao cabo das citações, com opiniões e assertivas díspares, Arthur Reis pondera: "Como se vê, há discordância entre os autores". E voltando-se aos paupérrimos documentos, conclui desolado: "Os documentos assinalados, que ficaram, não adiantam, como se vê, grande passo. Ao contrário, vêm ajudar na confusão" (p. 46). Arthur Reis vacila e titubeia, chegando a sugerir uma hipótese. Mota Falcão escolheu o sítio para o fortim, e Siqueira, seu filho natural, arcou com a responsabilidade da construção. Mas frisa: "Estamos, contudo, diante de uma hipótese" (p. 47).

Há uma verdadeira confusão entre os autores. Anísio Jobim, na obra Aspectos Sócio-Geográficos do Amazonas (Manaus, 1950), sustenta que Falcão plantou a fortaleza para deter o passo ao espanhol, e Favela e frei Teodósio iniciaram o povoamento. Segue, portanto, a versão de Joaquim Nabuco (Aspectos Sócio-Geográficos do Amazonas, p. 171). Agnello Bittencourt ensina que Falcão construiu o forte, mas foi Angélico de Barros, seu primeiro comandante, que reuniu as tribos dos manaus, barés, banibas e passés (Corografia do Amazonas, 1925, p. 201).

E são os mestres que falam, não os plumitivos!...

Tomo do opúsculo de Arthur Reis, Roteiro Histórico das Fortificações no Amazonas, publicado em seu fecundo governo, e fico mais desorientado. Começa logo por prevenir e desencantar o estudioso: "Não é página definitiva a origem do forte de São José do Rio Negro. Os cronistas Alexandre Rodrigues Ferreira, Baena, Araújo Amazonas, Ribeiro de Sampaio, André Fernandes de Sousa, Bertino Miranda, que riscaram o primeiro noticiário acerca da história antiga do Amazonas, não esclareceram o assunto. Quem escreva estas linhas, procurando fixar a data exata da fundação e o nome do fundador, apesar das pesquisas que realizou para a monografia Manaus e outras vilas, editada em 1934, também não conseguiu elementos suficientes para o informe definitivo" (p. 10 e 11).

São grandes, grandíssimas as dúvidas, como diz Arthur Reis. Se não bastasse a confusão relativa à presença quase simultânea dessa dupla Mota Falcão - Mota Siqueira (pai e filho), disputando a construção do famigerado fortim, Arthur Reis, sem o querer, complica ainda mais a perplexidade do estudioso, afirmando que houve dois governantes com o mesmo nome de Coelho de Carvalho (Antônio de Albuquerque). E o mesmo mestre conclui que Mota Falcão construiu o forte em 1669, e Mota Siqueira o reconstruiu ou acabou para melhor em 1697. Mas sempre cauteloso e vacilante: "Segundo a nossa conclusão, que não queremos seja uma verdade intangível..." (p. 16).

Não continuo, para não tornar o leitor ainda mais perplexo. Não há nada certo, não há nada de positivo. A História escreve-se com documentos. E quando esses documentos são escassos, opacos, obscuros, tudo não passa de conjecturas e suposições, que provocam dúvidas e vacilações. O governador Leopoldo Amorim da Silva Neves foi mais feliz, nesse particular, que o governador Danilo Areosa, pois presidiu, a 24 de outubro de 1948, às comemorações de uma data clara, cristalina e inofuscável: o centenário de Manaus como cidade, uma vez que foi a 24 de outubro de 1848 que ela receba esse predicamento. A cidade não tem trezentos anos; o que ela tem são 121 anos. O fortim é que terá tantos trezentos anos quantas as datas apresentadas pelos Mestres da História!...


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

332 anos de Manaus - História e Verdade. Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. Manaus: Editora Valer/Governo do Estado, 2001, p. 31-33, 65-69, 61-64 e 71-77.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Blog do Coronel Roberto

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