IMAGEM: Editora Valer.
Logo mais, às 19 horas, será lançada no IGHA (Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas) a terceira edição do livro A Ilusão do Fausto, da historiadora Edinea Mascarenhas Dias. O texto abaixo é uma pequena introdução aos que desejam conhecer essa obra:
No dia 05 de março de 1999, às
19 horas, era lançado na então Livraria Valer o livro que se
tornaria um divisor de águas na historiografia amazonense: A
Ilusão do Fausto: Manaus, 1890-1920,
da historiadora paraense radicada em Manaus Edinea Mascarenhas Dias.
Assim que foi lançado, tornou-se tema de debates e de textos que
discutiam sua importância diante de tudo o que se tinha publicado
até aquele momento sobre a capital amazonense1.
O livro é resultado de dissertação de Mestrado defendida em 1988
na PUC-SP. Quais as mudanças ocorridas com a publicação dessa
obra?
Muito
já havia sido publicado sobre a história da cidade de Manaus,
principalmente sobre o período que vai de 1890 a 1920, marcado pela
ascensão e declínio do sistema de produção gomífera. A
historiografia mais tradicional descrevia a capital como um lugar em
que “a
população vivia à europeia, viajando para o Velho Mundo,
especialmente Paris”2.
Autores
como Agnello Bittencourt (1876-1975), oriundos de famílias
tradicionais, cristalizaram a imagem de uma cidade sem conflitos
sociais, sem miséria. O discurso das classes dominantes foi
constantemente reproduzido e chegou aos nossos dias.
Em
1988, e posteriormente em 1999, a historiadora Edinea Mascarenhas
Dias estudou o mesmo período, tendo como fontes falas de presidentes
da Província, do Estado, do Município, jornais etc, mas apresentou
uma Manaus que destoava dos discursos oficiais e da historiografia: A
cidade transformada pelas demandas do capital na virada do século
XIX para o XX era marcada por contradições, pela imposição de
valores culturais e de trabalho e pela criação de mecanismos de
ordenamento e segregação de classes populares. Aqueles
que acreditavam (e ainda acreditam) em uma cidade antigamente
ordeira, pacata, na verdade estavam mergulhados em uma ilusão
construída pelo fausto econômico.
Edinea
não deixou de apresentar a cidade do fausto da borracha, que crescia
em decorrência das demandas do capitalismo industrial europeu e
norte-americano, em
pleno processo de expansão nos mais distantes rincões como a
Amazônia. Todo um aparato burocrático e, principalmente,
urbanístico, foi erguido em Manaus para atender às necessidades de
fixação, importação e exportação de empresas e produtos.
Igarapés
foram substituídos por largas avenidas. Foi erguido um teatro, um
palácio para o judiciário e inúmeras construções que até hoje
marcam a paisagem de nossa cidade. Através
dos Códigos de Posturas e de seus fiscalizadores, antigos
hábitos e costumes foram repreendidos e aos poucos eliminados do
cotidiano, pois iam em desencontro aos ditames da civilização.
No
entanto, diante dessa aquisição de feições modernas, da
opulência aparentemente desmedida, existiu
a miséria, a exclusão e a contradição. A
cidade é organizada de forma a deixar o mais distante possível as
classes trabalhadoras, os pobres e os doentes. Ocorre uma verdadeira
assepsia social. Nos arrabaldes, Flores, São Raimundo, Educandos,
nunca ou pouco assistidos pelo poder público, vivem os trabalhadores
do porto, os imigrantes pobres. Nesses
lugares era queimado o lixo da área urbana, abatido o gado que
abasteceria as mesas de políticos e empresários.
Ocorre no espaço urbano o que o filósofo francês Michel Foucault
chamou de heterotopia de desvio, “aquela
na qual se localiza os indivíduos cujo comportamento desvia em
relação à média ou à norma exigida”3.
A
cidade inchou. Não foi pensado um projeto de habitação pública.
Inúmeras famílias aglomeravam-se em casas de madeira e palha, em
cortiços, que não apareciam nos cartões-postais, nos almanaques
comerciais e álbuns editados em gráficas francesas, semelhante ao
que continua acontecendo em nosso e em outros países, preferindo-se
não divulgar ou mesmo esquecer tal imagem.
Esses
trabalhadores, que ergueram a cidade mas foram excluídos do processo
de modernização, não foram passivos diante dessas imposições.
Mal pagos e sofrendo com condições precárias, rebelaram-se contra
o patronato, realizando greves, protestos e fazendo reivindicações
por maiores vencimentos e melhores condições de trabalho. Quebra-se
toda uma visão de que a urbanização de Manaus foi realizada de
forma homogênea, sem contradições sociais e embates entre as
classes dirigentes e trabalhadoras.
De
acordo com o historiador Hélio da Costa Dantas, Edinea Mascarenhas
Dias é adepta da “[…]
perspectiva teórica de Edward P. Thompson”,
inserindo na historiografia regional “[…]
questões até então esquecidas pela historiografia tradicional,
tais como as condições de existência da classe trabalhadora urbana
e os mecanismos de controle a que foram submetidos todos os
desfavorecidos socialmente”4.
Perspectivas
teóricas que buscavam a visibilidade da classe trabalhadora, a
história social inglesa com sua ‘história vista de baixo’, já
estavam sendo amplamente debatidas no Sudeste, sobretudo nas
universidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. O contato de Edinea
Mascarenhas Dias com a pós-graduação em História na PUC-SP
permitiu a disseminação desses aportes teóricos em produções
históricas locais posteriormente.
A
Ilusão do Fausto é
um clássico, e como todo clássico ele é datado. Trabalhos como o
da historiadora Francisca Deusa da Sena Costa mostraram que a
população excluída do processo de modernização não foi apenas
segregada em lugares distantes da área central, mas também
coexistiu no espaço de circulação do capital e das elites,
ameaçando a imagem e ordem desejadas pelos dirigentes locais5.
São
inegáveis as contribuições do livro de Edinea Mascarenhas Dias.
Passados 20 anos, ele continua sendo lido e debatido dentro e fora da
academia, instigando pesquisadores, dando origem a novos trabalhos,
servindo como referencial teórico.
NOTAS:
1
FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. A
Ilusão do Fausto: Manaus, 1890-1920.
Rev. bras. Hist., São Paulo, v. 21, n. 40, p. 273-276, 2001.
2
BITTENCOURT,
Agnello. Fundação
de Manaus - Pródromos e Sequências.
Manaus: Editora Sergio Cardoso, 1969, p. 69.
3
FOUCAULT, Michel. Outros Espaços, 1984 [1967]. In: Ditos e
Escritos III. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema.
Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense
Universitária, 2011, p. 416.
4
DANTAS, Hélio da Costa. Pesquisa Histórica no Amazonas: uma
breve análise. Jamaxi, UFAC, v.1, n.1, 2017, p. 191.
5
COSTA, Francisca Deusa Sena. Quando viver ameaça a ordem urbana
– trabalhadores urbanos em Manaus (1890/1915). Manaus: Valer,
2014. O livro de Deusa Costa é fruto de dissertação de Mestrado
defendida na PUC-SP em 1997.
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