sexta-feira, 17 de maio de 2019

A Ilusão do Fausto: 20 anos depois


IMAGEM: Editora Valer.


Logo mais, às 19 horas, será lançada no IGHA (Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas) a terceira edição do livro A Ilusão do Fausto, da historiadora Edinea Mascarenhas Dias. O texto abaixo é uma pequena introdução aos que desejam conhecer essa obra:

No dia 05 de março de 1999, às 19 horas, era lançado na então Livraria Valer o livro que se tornaria um divisor de águas na historiografia amazonense: A Ilusão do Fausto: Manaus, 1890-1920, da historiadora paraense radicada em Manaus Edinea Mascarenhas Dias. Assim que foi lançado, tornou-se tema de debates e de textos que discutiam sua importância diante de tudo o que se tinha publicado até aquele momento sobre a capital amazonense1. O livro é resultado de dissertação de Mestrado defendida em 1988 na PUC-SP. Quais as mudanças ocorridas com a publicação dessa obra?

Muito já havia sido publicado sobre a história da cidade de Manaus, principalmente sobre o período que vai de 1890 a 1920, marcado pela ascensão e declínio do sistema de produção gomífera. A historiografia mais tradicional descrevia a capital como um lugar em que “a população vivia à europeia, viajando para o Velho Mundo, especialmente Paris2. Autores como Agnello Bittencourt (1876-1975), oriundos de famílias tradicionais, cristalizaram a imagem de uma cidade sem conflitos sociais, sem miséria. O discurso das classes dominantes foi constantemente reproduzido e chegou aos nossos dias.

Em 1988, e posteriormente em 1999, a historiadora Edinea Mascarenhas Dias estudou o mesmo período, tendo como fontes falas de presidentes da Província, do Estado, do Município, jornais etc, mas apresentou uma Manaus que destoava dos discursos oficiais e da historiografia: A cidade transformada pelas demandas do capital na virada do século XIX para o XX era marcada por contradições, pela imposição de valores culturais e de trabalho e pela criação de mecanismos de ordenamento e segregação de classes populares. Aqueles que acreditavam (e ainda acreditam) em uma cidade antigamente ordeira, pacata, na verdade estavam mergulhados em uma ilusão construída pelo fausto econômico.

Edinea não deixou de apresentar a cidade do fausto da borracha, que crescia em decorrência das demandas do capitalismo industrial europeu e norte-americano, em pleno processo de expansão nos mais distantes rincões como a Amazônia. Todo um aparato burocrático e, principalmente, urbanístico, foi erguido em Manaus para atender às necessidades de fixação, importação e exportação de empresas e produtos. Igarapés foram substituídos por largas avenidas. Foi erguido um teatro, um palácio para o judiciário e inúmeras construções que até hoje marcam a paisagem de nossa cidade. Através dos Códigos de Posturas e de seus fiscalizadores, antigos hábitos e costumes foram repreendidos e aos poucos eliminados do cotidiano, pois iam em desencontro aos ditames da civilização.

No entanto, diante dessa aquisição de feições modernas, da opulência aparentemente desmedida, existiu a miséria, a exclusão e a contradição. A cidade é organizada de forma a deixar o mais distante possível as classes trabalhadoras, os pobres e os doentes. Ocorre uma verdadeira assepsia social. Nos arrabaldes, Flores, São Raimundo, Educandos, nunca ou pouco assistidos pelo poder público, vivem os trabalhadores do porto, os imigrantes pobres. Nesses lugares era queimado o lixo da área urbana, abatido o gado que abasteceria as mesas de políticos e empresários. Ocorre no espaço urbano o que o filósofo francês Michel Foucault chamou de heterotopia de desvio, “aquela na qual se localiza os indivíduos cujo comportamento desvia em relação à média ou à norma exigida3.

A cidade inchou. Não foi pensado um projeto de habitação pública. Inúmeras famílias aglomeravam-se em casas de madeira e palha, em cortiços, que não apareciam nos cartões-postais, nos almanaques comerciais e álbuns editados em gráficas francesas, semelhante ao que continua acontecendo em nosso e em outros países, preferindo-se não divulgar ou mesmo esquecer tal imagem.

Esses trabalhadores, que ergueram a cidade mas foram excluídos do processo de modernização, não foram passivos diante dessas imposições. Mal pagos e sofrendo com condições precárias, rebelaram-se contra o patronato, realizando greves, protestos e fazendo reivindicações por maiores vencimentos e melhores condições de trabalho. Quebra-se toda uma visão de que a urbanização de Manaus foi realizada de forma homogênea, sem contradições sociais e embates entre as classes dirigentes e trabalhadoras.

De acordo com o historiador Hélio da Costa Dantas, Edinea Mascarenhas Dias é adepta da “[…] perspectiva teórica de Edward P. Thompson”, inserindo na historiografia regional “[…] questões até então esquecidas pela historiografia tradicional, tais como as condições de existência da classe trabalhadora urbana e os mecanismos de controle a que foram submetidos todos os desfavorecidos socialmente4. Perspectivas teóricas que buscavam a visibilidade da classe trabalhadora, a história social inglesa com sua ‘história vista de baixo’, já estavam sendo amplamente debatidas no Sudeste, sobretudo nas universidades de São Paulo e do Rio de Janeiro. O contato de Edinea Mascarenhas Dias com a pós-graduação em História na PUC-SP permitiu a disseminação desses aportes teóricos em produções históricas locais posteriormente.

A Ilusão do Fausto é um clássico, e como todo clássico ele é datado. Trabalhos como o da historiadora Francisca Deusa da Sena Costa mostraram que a população excluída do processo de modernização não foi apenas segregada em lugares distantes da área central, mas também coexistiu no espaço de circulação do capital e das elites, ameaçando a imagem e ordem desejadas pelos dirigentes locais5. São inegáveis as contribuições do livro de Edinea Mascarenhas Dias. Passados 20 anos, ele continua sendo lido e debatido dentro e fora da academia, instigando pesquisadores, dando origem a novos trabalhos, servindo como referencial teórico.

NOTAS:

1 FIGUEIREDO, Aldrin Moura de. A Ilusão do Fausto: Manaus, 1890-1920. Rev. bras. Hist., São Paulo, v. 21, n. 40, p. 273-276, 2001.

2 BITTENCOURT, Agnello. Fundação de Manaus - Pródromos e Sequências. Manaus: Editora Sergio Cardoso, 1969, p. 69.

3 FOUCAULT, Michel. Outros Espaços, 1984 [1967]. In: Ditos e Escritos III. Estética: Literatura e Pintura, Música e Cinema. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2011, p. 416.

4 DANTAS, Hélio da Costa. Pesquisa Histórica no Amazonas: uma breve análise. Jamaxi, UFAC, v.1, n.1, 2017, p. 191.

5 COSTA, Francisca Deusa Sena. Quando viver ameaça a ordem urbana – trabalhadores urbanos em Manaus (1890/1915). Manaus: Valer, 2014. O livro de Deusa Costa é fruto de dissertação de Mestrado defendida na PUC-SP em 1997.

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