Prospecto da Vila de Barcelos. José Joaquim Freire, 1784.
O
naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira (1756-1815), durante sua
extensa Viagem Filosófica
pelas Capitanias do Grão-Pará, Rio Negro e Mato Grosso,
realizada entre 1783 e 1792, fez
interessantes anotações, na
Vila de
Barcelos (antiga
Mariuá),
capital da Capitania de São José do Rio Negro, a respeito das
práticas funerárias daquela localidade. Por
vários séculos os enterros foram realizados no interior das igrejas
católicas ou em seus arredores. Em Barcelos não foi diferente. Tais
escritos constituem-se em fontes
ainda não exploradas no que tange os estudos das práticas
funerárias e atitudes diante da morte no Amazonas.
Alexandre
Rodrigues Ferreira chegou na
Vila de
Barcelos em
1784. No
período em que esteve na capital da Capitania de São José do Rio
Negro descreveu seus elementos naturais, propriedades do solo e
matérias-primas; sua evolução histórica e práticas culturais.
Ele
observou que a Matriz de Nossa Senhora da Conceição, erguida em
1728 e restaurada em 1738, estava localizada em um terreno bastante
úmido, fazendo com que
“[…]
os cadáveres que nele se sepultam, com dificuldade se consomem.
Donde procede que, para sepultar uns, vem a ser preciso, algumas
vezes, descobrir outros que ainda não estão absolutamente
consumidos, e a atmosfera particular da igreja se faz neste caso
intolerável”
(FERREIRA,
2005,
p.
214).
Além
do
terreno inapropriado para inumações,
a
Matriz de Nossa Senhora da Conceição era pequena, sendo a única
igreja que recebia os enterramentos de toda a vila. A
construção de um cemitério público seria a solução.
Na
Europa, os
enterros
dentro das igrejas vinham
sendo proibidos
desde os séculos XVI e XVII. Contribuiu para isso a urbanização
das cidades e as teorias sanitárias. Os médicos Thomas Sydenham e
Giovanni Maria Lancisi desenvolveram a teoria miasmática, segundo a
qual os gases expelidos pelos cadáveres seriam prejudiciais aos
vivos. As
igrejas, lugares de grande circulação diária e ao mesmo tempo
espaços de inumação, ofereciam um perigo a saúde pública. Dessa
forma vão surgindo os cemitérios públicos, afastados da área
urbana. Tais discussões, no entanto, só chegaram
ao Brasil no início do século XIX, com proibição efetiva apenas
na segunda metade, após fortes epidemias que atingiram as províncias
de Norte a Sul.
De
acordo com Alexandre Rodrigues, Gabriel Ribeiro, procurador da Câmara
de Barcelos, apresentou uma representação do vigário da vila,
Francisco
Marcelino Sotto Maior, que
versava “sobre
a precisão que havia de se fazer um cemitério para jazigo dos
mortos, por quanto os lugares das sepulturas da igreja paroquial não
consumiam os cadáveres que nelas se conservam, pela muita umidade
que havia nelas”
(FERREIRA, 2005,
p. 214).
A representação foi
escrita pelo vigário em 17 de fevereiro de 1784. Seu conteúdo, na
íntegra, era o seguinte:
“Como
na única igreja desta vila e em seu Adro apenas se abre uma
sepultura, sem que se cave e se perturbe também os corpos dos que
nela descansam em paz, ainda no curso da sua corrupção e sem que se
descubra um só, cujos ossos humilhados não tenham ainda parte das
suas carnes, do que pode igualmente resultar grande perigo aos que
formam o sepulcro e frequentam a igreja, considero ser muito
conveniente para conservação, não só da saúde dos vivos, como do
repouso dos mortos, que se faça um cemitério. Se Vossas Mercês
consideram o mesmo, podem, atendendo ao bem público, arbitrar um
terreno hábil ao mesmo cemitério, ordenando-lhe uma fácil
cercadura, que o distinga e defenda. Eu não faço senão representar
a necessidade. Vossa Mercês, contudo, mandarão o que forem
servidos” (FERREIRA,
2005,
p. 214).
Além
da preocupação com a saúde dos vivos, o vigário esperava que o
cemitério atendesse principalmente ao repouso dos mortos. Parece
algo óbvio, mas é preciso entender que, diferente do que vem
ocorrendo desde a segunda metade do século XX, quando a morte se
tornou um tabu, ela
ocupava, no período colonial, boa parte da vida dos luso
brasileiros, que se dedicavam aos mínimos detalhes,
desde o testamento, o pressentimento da morte (agouros,
visões etc), a preparação
do corpo, as vestes
fúnebres, o velório, o
enterro e a
quantidade de missas. Os mortos poderiam intervir em favor dos vivos,
assim como
poderiam
voltar-se contra eles caso não
tivessem uma “boa morte”. O
senado da câmara respondeu o
vigário no dia 21:
“A
carta que Vossa Mercê nos dirigiu sobre a representação a respeito
da precisão que há de um cemitério para nele se sepultarem os que
desta vida mortal passam à eterna, por se não poderem já acomodar,
não só dentro da igreja, que unicamente existe na vila, como ainda
fora dela, em seu adro, recebemos com aquela atenção que não só
do alto caráter de Vossa Mercê é merecida, mas também da bem
fundada razão e necessidade que Vossa Mercê expõe. Ao que com a
atenção devida, imos a dizer a Vossa Mercê que, quanto ao lugar ou
situação para o dito cemitério, estamos prontos para a assinação
dele, precedendo, porém, o voto de Vossa Mercê, para se acertar com
o melhor e mais cômodo terreno. Enquanto, porém, ao cercado que se
faz justamente necessário para defesa e guarda dos animais, para que
não ultrajem aqueles cadáveres que, descansados, jazem, se-nos faz
preciso haver algumas informações a nós, para, à imitação do
que na cidade do Pará se obrou com outra igual manufatura, assim se
proceder” (FERREIRA,
2005,
p. 215).
O
ouvidor interino da Capitania, Bento José do Rego, em ofício de 22
de março, respondeu que o terreno e os operários deveriam ser
escolhidos, e que até a decisão do Capitão General do Estado as
despesas ficariam a cargo do Senado da Câmara. Por decisão do
Capitão General, as despesas continuaram a cargo do Senado da
Câmara. As obras do cemitério, juntamente às de três pontes de
madeira, foram arrematadas em novembro de 1784. Elas ficaram a cargo
do mestre carpinteiro Romualdo José de Andrade, que apresentou três
propostas, uma de 280, 260 e 240 mil réis. A Câmara aceitou a
última. O cemitério da Vila de Barcelos teria “doze braças de
terreno em quadro, murado forte e coberto de telha e um frontispício
de madeira” (FERREIRA, 2005, p. 215).
Alexandre
Rodrigues Ferreira também registrou a atuação de uma irmandade
religiosa diante da morte de seus membros. As irmandades religiosas
eram organizações católicas formadas por leigos em torno da
devoção a um santo. Essas pessoas tinham inúmeras obrigações.
Uma das principais era o acompanhamento do cadáver do irmão até a
sepultura.
No
artigo XI do “Compromisso da Irmandade do Santíssimo Sacramento
da Vila de Barcelos”
(FERREIRA, 2005,
p. 272-273),
ficava estabelecido que, falecendo um dos irmãos da irmandade, os
demais que estivessem na vila deveriam acompanhar seu corpo, no
esquife, à sepultura. As ausências só seriam aceitas mediante
justificativa legítima. Também seriam levados no esquife os filhos
até a idade de doze anos, as mulheres e as mães viúvas. Assim como
para o irmão falecido, seria rezado pelos membros um terço para os
familiares deste. Caso o morto fosse juiz da irmandade, seriam
rezadas doze missas. Se fosse escrivão, procurador, tesoureiro ou
mordomo, oito. Para os demais, seis. Todos os anos seriam rezadas 25
missas pelos irmãos vivos e mortos para que os bens espirituais
fossem alcançados. Durante essas missas seriam recolhidas as esmolas
estabelecidas no compromisso. Também seria feito, anualmente, em
nome dos irmãos mortos, um ofício de nove lições, com missa e
sermões. O ofício deveria ser realizado na segunda-feira seguinte à
dominga da eleição da nova mesa da irmandade. Caso não fosse
possível, os irmãos deveriam escolher o melhor dia (mas antes da
eleição da nova mesa), para que não fosse interrompido o ofício
dedicado aos mortos. A Irmandade não se preocuparia apenas com o
acompanhamento dos cadáveres de seus membros, mas também com o
pagamento das sepulturas para os mesmos.
O
naturalista Alexandre Rodrigues Ferreira tinha um olhar arguto,
registrando diferentes aspectos das aldeias e vilas pelas quais
passou durante sua Viagem Filosófica. Seus registros sobre os
enterros na igreja da Vila de Barcelos, as discussões sobre a
construção de um cemitério público e a atuação da Irmandade do
Santíssimo Sacramento, são fontes indispensáveis aos estudos das
práticas funerárias no Amazonas no período colonial, campo pouco
explorado na historiografia, permitindo compreender suas dinâmicas e mudanças.
REFERÊNCIAS
BIBLIOGRÁFICAS:
FERREIRA,
Alexandre Rodrigues. Diário da Viagem Filosófica pela Capitania
de São José do Rio Negro com a Informação do Estado Presente.
CiFEFil, Círculo Fluminense de Estudos Filológicos e Linguísticos.
Diários, p. 209-350, 22/10/2005.
CRÉDITO DA IMAGEM:
Biblioteca Nacional (RJ).
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