Hoje boa parte da humanidade reverenciará seus mortos. A História registra que a data foi instituída primeiramente na Abadia de Cluny, na França, em 02 de novembro de 998 pelo Abade Odilon, posteriormente Santo Odilon (962-1049). Ele determinou que a partir daquele momento, em todo 02 de novembro, Igreja e comunidade dedicariam orações aos mortos para que estes diminuíssem a estadia no Purgatório e alcançassem o Paraíso. A partir daí a data tornou-se uma das principais do calendário cristão. Mas muito antes disso os seres humanos já se dedicavam com afinco aos que faleciam. Os homens pré-históricos enterravam seus semelhantes com objetos como pedras, conchas, estatuetas e armas, o que mostra, já naquele período, a crença na vida após a morte. O filósofo e antropólogo francês Edgar Morin, autor de O Homem e a Morte (1970), afirma que não existe nenhum grupo, por mais arcaico que seja, que abandona seus mortos, e que os cuidados dedicados a eles, como a construção de monumentos, são uma das principais características de nossa espécie.
Quando os portugueses e espanhóis chegaram à América, depararam-se com diferentes sociedades, cada uma com suas formas de encarar a morte. Os Maias e Astecas, por exemplo, celebravam seus mortos no nono mês do calendário solar, realizando grandes festas com banquetes, danças e músicas. Os povos do litoral brasileiro, registrou Frei Vicente do Salvador em História do Brasil (1500-1627), embrulhavam os cadáveres nas redes em que dormiam e os sepultavam em covas profundas com comida, tabaco, água e armas. As mulheres e filhas se pintavam e choravam dias a fio. Às práticas nativas mesclaram-se as oriundas da Velha Europa Medieval, Cristã Católica. Em seguida vieram as influências africanas através dos escravos, com seus cultos aos ancestrais. Os enterros, como já ocorria na Europa desde a Antiguidade tardia, passaram a ser realizados no interior e ao redor das igrejas. Quanto mais importante e rica a pessoa, mais próxima do altar ela era sepultada. Ricos templos de Salvador, Recife, Rio de Janeiro e Minas Gerais ainda ostentam lápides de séculos passados.
Os cemitérios como conhecemos são produto de uma nova mentalidade em relação à morte surgida entre os séculos XVIII e XIX. Os enterros em Igrejas e seus terrenos passaram a ser combatidos em nome da saúde pública, pois esses lugares estavam localizados na área urbana, emanando, segundo especialistas, gases putrefatos sobre a população. Médicos recomendaram às autoridades a construção de cemitérios afastados das regiões mais habitadas. Mas mesmo na Europa, dita adiantada, foi encontrada resistência por parte dos adeptos desse costume. Cemitérios no Brasil apenas por volta de 1850, quando epidemias de cólera e febre amarela forçaram suas construções. Em Manaus, então Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, os mortos eram enterrados na antiga Igreja de Nossa Senhora da Conceição, na Igreja de Nossa Senhora dos Remédios e em seus largos. Crianças, jovens e adultos enterrados em terrenos úmidos, pegajosos, muitas vezes impróprio, mas santos. Era o que importava no final. Era no claustro da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios que a família Antony ia chorar a sua inocente Leocádia, falecida em 09 de janeiro de 1854 e ali sepultada. Era nas Igrejas que a população da Barra visitava seus entes queridos. O primeiro cemitério da cidade surgiu de improviso em 1854 através do cercamento do terreno que ficava atrás da Igreja dos Remédios e que já era utilizado como local de sepultamento. O Cemitério dos Remédios funcionou até 1856, quando, sem espaço para receber a grande quantidade de vítimas da febre amarela, foi desativado. Nesse mesmo é aberto na Estrada da Cachoeira Grande (Avenida Epaminondas) o Cemitério de São José, concluído em 1859.
Por mais de três décadas as romarias de Dia de Finados dirigiram-se ao Cemitério de São José, à época em região afastada da zona urbana, como preconizavam as autoridades. Em frente a ele foi aberto, em 1865, um largo, logo batizado de Largo da Saudade, hoje Praça da Saudade. Os preparativos começavam semanas antes, com a limpeza e ornamentação dos túmulos. As visitas tinham início no dia 01. Seguia-se um roteiro. Às 9 horas eram realizadas as missas e a encomendação das almas pelo Vigário Geral. As músicas eram cantadas pelos alunos do Instituto de Educandos Artífices. Novos ofícios religiosos eram realizados pela parte da tarde. À noite encerrava-se a visitação. Sobre a comemoração de 1885, um articulista do ‘Jornal do Amazonas’ escreveu que “a concorrência foi enorme, e a dor foi sincera”. O mesmo ocorria distante do Centro, no bairro de São Raimundo, que contava com um cemitério para as vítimas da varíola desde a década de 1870. Em 1888 ele passou a atender o público em geral. A memorialista Elza Souza, autora de Do “Alto” da minha colina – sem os bucheiros o bairro de São Raimundo Perdeu o Encantamento (2008), registra que algumas famílias abastadas da cidade construíram no local mausoléus luxuosos, que contrastavam com os montículos de terra das pessoas mais humildes oriundas do próprio bairro, habitado em sua maioria por retirantes, pescadores e operários.
Os cemitérios de São José e de São Raimundo, ambos sem espaço, foram desativados em 1891, ano em que foi inaugurado, no dia 05 de abril, o Cemitério de São João Batista, no antigo bairro do Mocó (Vila Municipal, Adrianópolis/Nossa Senhora das Graças), ainda hoje em atividade. O novo cemitério era obra do Governo modernizador de Eduardo Gonçalves Ribeiro (1862-1900). Manaus, agora capital da borracha, necessitava de obras à altura de sua nova condição de cidade exportadora e centralizadora das atividades econômicas da região. A necrópole, melhorada ao longo dos anos, tornou-se reflexo dessa busca pelo progresso. Cemitério da elite, espaço cívico, última morada de grandes personalidades e pessoas afortunadas, enterradas nas quadras principais em mausoléus suntuosos, verdadeiras obras de arte esculpidas em mármore e assinadas por marmorarias e artistas renomados. O luxo em um local em que se acreditava ocorrer um nivelamento social explica-se pelo desejo do burguês de buscar sempre diferenciar-se e atestar seu poder. O homem continuaria vivendo enquanto fosse lembrado, defendia a filosofia Positivista. Cemitério também do povo, mas em quadras mais afastadas e em jazigos simples. Diferenças em vida que permaneciam na morte. Que trágico e poético.
A Prefeitura organizava – como ainda faz – todos os detalhes para as comemorações. Cuidava da limpeza das quadras, do aparo da vegetação, da disponibilização de bondes suficientes para levar a população para o Cemitério de São João Batista e da segurança pública. Nos jornais eram publicados anúncios de venda de velas, flores, cruzes, imagens sacras, instalações elétricas e outros adereços para túmulos. Em frente ao cemitério eram instaladas barracas para a venda de comidas e bebidas. A mesma agitação era verificada nos bairros periféricos de São Raimundo e Colônia Oliveira Machado. Este último tinha um cemitério, o de São Francisco, aberto no Governo de Constantino Nery (1904-1908). Nessa época, e por época podemos compreender aqui o período 1890-1960, utilizava-se uma indumentária própria para esse dia. De acordo com o antropólogo e historiador Thales Olympio Góes de Azevedo, autor de ‘Ciclos da vida: ritos e ritmos’ (1987), as mulheres usavam roupas pretas e roxas em combinação com o branco e véu para cobrir o rosto. Os homens usavam fumo no braço direito ou na lapela e roupa escura, cinza e branca. Essas cores eram associadas à morte e ao luto.
Na década de 1960 os cemitérios de São João Batista, Santa Helena, no bairro de São Raimundo, e São Francisco, no bairro Colônia Oliveira Machado, já estavam sem espaço. Para sanar esse problema foram construídas na década seguinte mais duas necrópoles: o Cemitério de Nossa Senhora de Aparecida, conhecido como Cemitério Tarumã, e o Cemitério Parque de Manaus, ambos localizados no bairro Tarumã, na zona Oeste. O Cemitério Parque de Manaus seguia o modelo dos modernos cemitérios parques norte-americanos, sem construções e apenas com placas de identificação. Abria-se um novo tempo, o da praticidade. Economizava-se tempo e dinheiro.
Que alívio, depois de um ano turbulento por conta da Covid-19, que acabou impedindo a visitação aos campos santos em novembro de 2020, poder se deslocar para reverenciar aqueles que foram caros em vida. O mesmo ocorreu em 1918, durante a pandemia de Gripe Espanhola. Nesse Dia de Finados o manauara visitará não só o Cemitério de São João Batista, entre os bairros de Adrianópolis e Nossa Senhora das Graças, o Cemitério de São Francisco, hoje no Morro da Liberdade, o Cemitério de Nossa Senhora de Aparecida e o Cemitério Parque de Manaus, no bairro Tarumã, mas também o Cemitério de Nossa Senhora da Piedade, no Tarumã; e o Cemitério de Santo Alberto, na Colônia Antônio Aleixo. Não mais de bonde, mas de carro e ônibus. Nem de preto, cinza, branco ou roxo. Os simbolismos foram abandonados. Mas irá com o mesmo sentimento de saudade que tão bem caracteriza essa data há milênios.
Parabéns professor Fábio Augusto. Belo texto
ResponderExcluirÓtima pesquisa.