quarta-feira, 24 de outubro de 2018

Vida e Morte dos Igarapés e Balneários de Manaus

Cachoeira do Tarumã. Cartão postal de 1975. FONTE: Acervo pessoal.

A relação do homem com a natureza é ambígua. Ao mesmo tempo em que dela necessita para a manutenção do meio em que vive, também lhe destrói em nome da satisfação material. Foram poluídos ou desapareceram nessa onda de devastação os igarapés e balneários de Manaus, elementos que por muitas décadas fizeram parte do cotidiano de seus habitantes, que neles encontravam um refúgio para o descanso e lazer nos finais de semana.

O igarapé, do tupi ygara (canoa), apé (caminho), como revela sua origem etimológica, foi o caminho do habitante primitivo do que viria a ser a cidade. Em suas igarités, os indígenas de diferentes etnias cortavam esses pequenos cursos d’água que serpenteavam o terreno pelo interior das matas. Posteriormente, deles se apropriaram os espanhóis, ingleses, franceses e portugueses, neles transitando intensamente em busca das drogas do sertão. Já no século XIX, serviu ao regatão, comerciante das águas.

Na planta 'croquis' de Manaus de 1852, feita no governo do presidente da Província do Amazonas João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, além dos limites urbanos, pode-se observar que a pequena cidade era dominada pelos igarapés de São Vicente, da Ribeira, da Bica, do Espírito Santo, do Aterro, da Cachoeirinha, da Cachoeira Grande, de Manaus, da Castelhana e de Monte Cristo, que cortavam seus poucos bairros (Remédios, República, Espírito Santo, Campina e São Vicente) e arrabaldes. Eles determinavam o traçado das ruas, o sentido das construções, abasteciam os moradores de água potável. Em síntese, eram de vital importância para o funcionamento da cidade.

Igarapé da Cachoeira Grande. Gravura de Emmanuel Bocher, 1860. FONTE: Brasiliana Fotográfica/Instituto Moreira Salles.

Em visita a Manaus no ano de 1865, o casal viajante Louis e Elizabeth Agassiz não pôde deixar de visitar o Igarapé da Cachoeira Grande, por eles descrito como "uma Niágara em miniatura", em referência à pequena cascata (AGASSIZ, 2000, p. 266). Registraram, ainda, que nos igarapés da cidade se reuniam "[…] os pescadores, as lavadeiras, os banhistas, os homens que pegam tartarugas" (AGASSIZ, 2000, p. 274). Os igarapés eram pontos de encontro e locais de onde se tirava o sustento. Essas características fizeram com que fossem protegidos pelos Códigos de Posturas. Dos cinco artigos do Código de Posturas de 1868, por exemplo, quatro tinham esse fim:

"Art. 1°. - Fica proibido o corte de arvores, varas arbustos maiores de 5 palmos em todos os riachos ou igarapés que ficarem dentro dos limites da cidade e nos seos subúrbios, em uma zona de 60 palmos de largura a partir do leito dos mesmos riachos, ou igarapés. O infractor ocorrerá na pena de 20$000 réis de multa ou 4 dias de prisão.
Art. 2° - Nesta mesma pena incorrerão aquelles que fizerem escavações nesses lugares, revolverem lamas, deitarem lixo, páos, couzas pútridas ou qualquer outra materia que possa alterar a pureza das águas.
Art. 3° - Também fica prohibido o côrte de arvore nas margens dos igarapes, das cachoeiras grande e pequena continuas a esta cidade, maxime aos lugares que servem de logradouros públicos.
O infractor incorrerá na multa de 30$000 réis ou 8 dias de prisão.
Art. 4° - Fica proibido d’ora em diante tirar-se agoa no Igarapé do Aterro para ser vendida a população, e bem assim lavar-se roupa, cavallos e outros quaesquer animaes. O infractor será punido com 5$000 réis ou a 2 dias de prisão
(‘CÓDIGO DE POSTURAS MUNICIPAES DE 1868’, Apud SÁ, 2012, p. 54-55).

Os banhos em igarapés eram uma tradição que resistia às proibições que iam surgindo, cada vez mais rígidas. Se por um lado elas eram criadas para manter a integridade desses lugares, por outro, ao qual era dada mais ênfase, eram mecanismos de controle de hábitos considerados impróprios e atrasados. Eram frequentes as denúncias e prisões. Em 1892, Manoel Bento Gama foi preso por estar tomando banho no “Igarapé de Manáos” (AMAZONAS, 31/08/1892). O jornal humorístico A Marreta, em 1912, recebeu a denúncia de que "[…] uma marafona de noma Alzira, vulgo Cegueta", tinha "o habito de a altas horas da noite tomar banho no igarapé (de Educandos) em trajes de Eva acompanhada de diversos rapazes, fazendo uma algazarra tremenda" (A MARRETA, 01/12/1912). Em 1913, moradores da Cachoeirinha, por meio da coluna ‘Queixas do Povo’, do Jornal do Comércio, pediam providências à polícia para solucionar o problema de "um grupo de indivíduos que costuma diariamente tomar banho no igarapé das imediações da Avenida Canaçary", pois essa situação era “um desrespeito às famílias que ali têm residência” (JORNAL DO COMÉRCIO, 14/01/1913).

Igarapé do Espírito Santo. Foto de Albert Frisch, 1865. FONTE: Brasiliana Fotográfica/Instituto Moreira Salles.

No final do século XIX e ao longo do século XX, boa parte desses igarapés foi aterrada para dar lugar a vias públicas. Ainda no período imperial, o Igarapé da Ribeira foi aterrado para a construção do Cais da Imperatriz, na entrada da cidade. O Igarapé do Espírito Santo deu lugar à Avenida Eduardo Ribeiro. O Igarapé dos Remédios à Avenida 13 de Maio, posteriormente Avenida Getúlio Vargas, e à Avenida Floriano Peixoto. O Igarapé de São Vicente foi aterrado para ligar o antigo bairro de mesmo nome ao restante da cidade. Dava-se adeus, nas palavras do historiador e artista plástico Otoni Moreira Mesquita, à "Veneza Amazônica", apagando, em nome do progresso, o passado nativo  de Manaus (MESQUITA, 2006, p. 166).

Apesar do aterro desses igarapés, sobreviveram os que se tornariam bastante populares entre os manauaras, dos quais hoje restam, atualmente, apenas fotografias e o saudosismo de tempos mais amenos. Na coluna ‘Onde a Cidade se Diverte’ do Jornal do Comércio, de 30 de julho de 1959, recomendava-se três igarapés e seus respectivos balneários públicos: "Parque 10 de Novembro, Ponte da Bolívia e Tarumã" (JORNAL DO COMÉRCIO, 30/07/1959).

Parque 10 de Novembro. Cartão postal da década de 1950. FONTE: Manaus de Antigamente.

As obras do Balneário do Parque 10 de Novembro tiveram início em 10/11/1938 por ocasião do aniversário de um ano do Estado Novo, na administração municipal de Antônio Botelho Maia (1937-1940), irmão do Interventor Federal Álvaro Botelho Maia. As obras foram continuadas na administração de Paulo de La Cruce Grana Marinho (1940-1942), tendo o Balneário sido inaugurado em 19 de abril de 1943, dia do aniversário do Presidente Getúlio Dornelles Vargas, pelo prefeito Antóvila Mourão Vieira (1942-1944). Ocupando uma área de 50 hectares ao norte da Vila Municipal (Adrianópolis), era recortado pelas águas do Igarapé do Mindu, possuindo uma piscina grande para adultos, uma para crianças, um ‘bar-dancing’, restaurante, quadras de tênis, basquete e vôlei e um playground. Foi por muitas décadas considerado o melhor balneário da região Norte. O que restou dele, nos dias de hoje, está coberto pelo mato, em ruínas, com o igarapé poluído.

Balneário da Ponte da Bolívia. Cartão postal de 1977. FONTE: Manaus de Antigamente.

A Ponte da Bolívia foi construída em 1958 na administração estadual de Plínio Ramos Coelho (1955-1959) sob o Igarapé da Bolívia, na Avenida Torquato Tapajós, AM-010. Esse trecho passou a ser frequentado nos finais de semana, ficando conhecido como Balneário da Ponte da Bolívia. Também foram construídas, assim como no Parque 10 de Novembro, algumas instalações para os frequentadores, embora mais modestas, como um pavilhão e alguns quiosques de madeira e palha. A construção de um aterro sanitário pela Prefeitura em meados da década de 1980 pôs fim, aos poucos, ao igarapé. Em 1994 o Jornal do Comércio publicava, na coluna ‘Linhas Cruzadas’, que "o aterro sanitário do quilômetro 17 da Manaus-Itacoatiara" estava "poluindo tremendamente o Igarapé da Bolívia, aquele que passa por baixo da ponte de mesmo nome" (JORNAL DO COMÉRCIO, 10/06/1994). O chorume dos dejetos penetrava na terra e atingia o igarapé, tornando-o um perigo à saúde pública.

Igarapé do Tarumã. Gravura de 1847. FONTE: Manaus Sorriso.

O mais marcante, sem dúvidas, foi o Igarapé do Tarumã, afluente do rio Tarumã, localizado entre as zonas Oeste e Leste da cidade, que já aparece em gravuras e fotografias desde a segunda metade do século XIX, chamando a atenção de viajantes e turistas. Também são afluentes os igarapés do Tarumãzinho e da Cachoeira Alta e Baixa, tão famosos quanto o do Tarumã. Ambos, já na década de 1990, estavam impróprios o banho público. A cada diz toneladas de lixo se acumulam nesses cursos d'água.

Também existiam balneários particulares, como o Maringá, criado entre o final da década de 1950 e o início da década de 1960, antigamente localizado no quilômetro 06 da Rodovia AM-010, em frente a entrada da boate Saramandaia. Era propriedade particular do casal de comerciantes Alfredo Raposo e Messody Sabbá Raposo. Esse era um balneário de luxo frequentado por pessoas da alta sociedade manauara da época, amigos íntimos do casal Raposo. No local, uma residência, uma grande piscina, um campo de futebol e muitos pés de goiaba e caju. Encerrou suas atividades na década de 1980, quando foi adquirido pela extinta PORTOBRÁS (Empresa de Portos do Brasil). O mais refinado deles foi o Balneário do Bosque Clube, instalado na antiga Estrada de Flores, este cortado pelo Igarapé dos Franceses. Era, no início do século passado, ponto de encontro da colônia inglesa de Manaus, sempre a fazer, nos finais de semana, seus famosos ‘picnics’. O memorialista Luiz de Miranda Corrêa, em seu 'Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro', cita os banhos "Tucunaré, Casablanca e Bancrévea" (CORRÊA, 1969, p. 88).

Maruja Ceballos Gomes, candidata do Balneário Maringá. Foto de 1960. FONTE: Jornal do Comércio, 19/11/1960.

A futura degradação dos igarapés e balneários de Manaus já se anunciava desde a década de 1960. A destruição da Cidade Flutuante, favela fluvial existente na orla da cidade desde a década de 1920, feita com pouco planejamento, fez com que inúmeras famílias passassem a ocupar os leitos dos igarapés da cidade, erguendo habitações irregulares. No fim desse período e ao longo da década de 1970, com a intensificação da industrialização, mediante a instalação da Zona Franca, bem como o crescimento desordenado da cidade, recebendo milhares de imigrantes, os igarapés tornaram-se os locais de despejo dos esgotos residencial e industrial. Os danos foram tamanhos que, em 1981, o Presidente da Associação Amazonense de Proteção Ambiental, Francisco Braga, afirmou categoricamente que “todos os igarapés de Manaus estão sendo poluídos pelos esgotos residenciais e industriais” (JORNAL DO COMÉRCIO, 05/11/1981).

Há mais de 20 anos o cenário desses espaços que um dia fizeram a alegria dos manauaras é desolador. As gerações mais novas foram privadas desse divertimento, tendo como referenciais mais próximos as fotografias, os cartões-postais e os relatos dos mais velhos. Faltou consciência dos que passaram a ocupar suas margens, faltou planejamento dos administradores públicos no tocante à habitação. Ambos são problemas históricos que acompanham nossa sociedade. Caso não ocorram mudanças, corre-se o risco de que a degradação chegue ao Rio Negro e aos rios do interior do Amazonas.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AGASSIZ, Jean Louis Rodolph. Viagem ao Brasil 1865-1866. Trad. de Edgar Süssekind de Mendonça. Brasília: Senado Federal, Conselho Editorial, 2000.

CORRÊA, Luiz de Miranda. Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro. Manaus: Artenova, 1969.

MESQUITA, Otoni Moreira. Manaus, História e Arquitetura (1852-1910), 3° ed, Manaus: Editora Valer, Prefeitura de Manaus e Uninorte, 2006.

SÁ, Jorge Franco de. Manaus: higiene, meio ambiente e segurança do trabalho na época áurea da borracha. Manaus: Edua, 2012.

FONTES:

Amazonas, 31/08/1892.
A Marreta, 01/12/1912.
Jornal do Comércio, 14/01/1913.
Jornal do Comércio, 30/07/1959.
Jornal do Comércio, 10/06/1994.
Jornal do Comércio, 05/11/1981.

CRÉDITO DAS IMAGENS:

Manaus de Antigamente.
Manaus Sorriso.
Brasiliana Fotográfica/Instituto Moreira Salles.
Jornal do Comércio.



sexta-feira, 19 de outubro de 2018

Manaós, Manáos e Manaus: Como se escreveu o nome da cidade ao longo do tempo

Manaós, Manáos e Manaus.

A forma como se escreveu o nome da cidade de Manaus ao longo do tempo é uma questão que desperta o interesse de vários pesquisadores, sobretudo dos linguistas e historiadores. Sabe-se que variou poucas vezes, pelo menos três conhecidas (Manaós, Manáos e Manaus), as quais serão aqui esmiuçadas na tentativa se compreender suas origens e usos.

A velha Barra do Rio Negro mudou de nome em 1856, conforme ficou estabelecido pela Lei N° 68, de 04 de setembro daquele ano, de autoria do deputado paraense João Ignácio Rodrigues do Carmo, que lhe conferiu o nome de Cidade de Manáos, nome pela qual a conhecemos (sem acento agudo e com u no lugar de o). Antes disso, foi Lugar, Vila de Manáos e Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro. No Dicionário Topográfico, Histórico, Descritivo da Comarca do Alto Amazonas, do etnógrafo baiano Lourenço da Silva Araújo Amazonas, publicado em 1852, existem três verbetes Manáos. O primeiro diz respeito à “Nac. Ind. da Guian., no Rio Negro e seus confluentes, entre os Uarirá e Xiuará. De sua importância honra-se com seu nome a Cidade capital do Alto-Amazonas. Foi nação preponderante no Rio Negro” (AMAZONAS, 1852, p. 187). Os outros dois se referem ao Igarapé de Manáos e à cidade propriamente dita.

O Juiz Municipal e de Direito Octaviano Mello fez um estudo mais aprofundado sobre as origens do nome da cidade. O pesquisador amazonense localiza duas vertentes: A primeira, a de Lourenço Araújo da Silva Amazonas, de que ele é uma homenagem à tribo dos Manau, índios bravios do Rio Negro; e a segunda, de que a cidade lendária de Manôa, capital do El Dorado, seria a origem etimológica da palavra Manaus. Octaviano vai em outra direção, afirmando que o nome da cidade teria surgido com a vinda de índios fugidos da América Espanhola ou mesmo por influência dos conquistadores, ambos sobrepujando a nação dos Aruaqui: As tribos dos Taláue, Mochica, Moquihuáia, e Chango, habitantes da cosia do Pacífico, no Peru, chamavam "Munous" aos sepulcros que não iam além de um montículo, à semelhança de uma sepultura recente, nos nossos atuais cemitérios”. O pesquisador continua, questionando se

Com os exploradores ou com os Mura ou antes mesmo destes, por intermédio de ameríndios fugitivos das terras incaicas, atravessando os Andes, também não teria vindo o nome munaus para ser transmitido à brava nação indígena e ao local da necrópole dos Aruáqui, onde só munaus existiam?” (MELLO, 1967, p. 34-35).

Para o autor as palavras Munau e Manoa, em suas raízes indígenas, são sinônimos ou talvez a mesma palavra com apenas uma diferença gráfica. Enquanto Munaus são necrópoles indígenas, Manoa, do sânscrito para o nheengatu, “no verbo umanu ou simplesmente manu, significa “morrer(MELLO, 1967, p. 36). Os indígenas, conforme Octaviano Mello, raramente utilizam o ó aberto e o ô fechado, sendo preferível o u. No entanto, é comum os indianólogos

[…] usarem invariavelmente o ô e o ó como se na língua não houvesse o fonema u: ôca, carôca, manô, quando na verdade se pronunciam, uca, caruca, manu, traduzidas em, casa, tarde, morrer. Por este motivo alterar a grafia de manu, para manô, que no grau superlativo escreve-se: Manua ou Manôa, mais que morto, mortíssimo” (MELLO, 1967. p. 36).

Seguindo os ensinamentos de Ulisses Penafort, Octaviano Mello localiza a palavra Manaus, como originária do sânscrito, como formas femininas de Manauh, Manou, Manu, Mani , estas abreviações hebraicas de Monouchyak ou Monouchia, Machiahh ou Machya, Machyaka,

donde veio a palavra indo-tupi, Houcha, homem ou gênio nascido de Manou, Manu ou Mani, significando Deus dos índios. Maná-y-iquer dizer – mulher de Manu, portanto, Maná, Mana, Manau, Manay, são formas tupi oriundas do radical feminino sânscrito man, maná” (MELLO, 1967, p. 37).

Dessa forma, Octaviano Mello conclui que “o homem, génio ou deus dos índios é, pelo lado materno, filho de Manau nome que no plural — Manaus — foi concedido à capital do Estado do Amazonas. Manaus, quer dizer: Mãe dos Deuses” (MELLO, 1967, p. 37). O nome da cidade foi sendo escrito de diferentes formas, “Manou, Manáu, Manei, Manaó, Manahó, Manave, Manuá, Monouh, Manôa, Manáos, Manáus e Manaus” (MELLO, 1967. p. 37).

A grafia Manaós, com acentuação tônica no o, lembrando os estudos de Octaviano Mello, possivelmente é um indício da substituição, por parte dos indianólogos, do u pelo ó aberto; ou mesmo um erro histórico que se propagou, pois existem diversos estabelecimentos, associações, empresas etc, com esse nome. Pode-se tomar como exemplo o trabalho publicado em 1940 pelo antropólogo suíço Alfred Métraux, Los Indios Manao (MÉTRAUX, 1940). No entanto, não foi encontrado, em documentos oficiais e periódicos, o nome da cidade com essa acentuação tônica. A tribo não era Manaós, mas Manau, nem a Mãe dos Deuses era Mano, mas Manu.

Pelo Decreto n° 117, publicado no Diário Oficial do Estado do Amazonas, n° 12.589, de 1937, ficou estabelecida a grafia Manaus, utilizada até os dias de hoje (DIÁRIO OFICIAL, DECRETO N° 117, 17/03/1937; BRAGA, 2007). Vale lembrar que o próprio Diário Oficial só corrigiu o cabeçalho de suas publicações dois anos depois, na edição n° 13.192 de 1939 (DIÁRIO OFICIAL, 14/07/1939; BRAGA, 2007). No entanto, é possível encontrar essa grafia em periódicos locais da segunda metade do século XIX. João Marcellino Taveira Pau Brazil, proprietário do jornal A Voz do Amazonas, assinava as matérias escrevendo, na maioria das vezes, Manaus ou Manáus, com a acentuação tônica no a. (A VOZ DO AMAZONAS, 07/01/1866). Em 1885, por meio do jornal A Província, convidava-se “[…] a colônia cearense em Manaus […] para tratar de negocios importantes attinentes a mesma colonia” (A PROVÍNCIA, 02/07/1885).

Mais interessante ainda é o fato de que essa grafia, Manaus ou Manáus, coexistia com a forma escrita Manáos, a mais difundida. Em um mesmo documento oficial ou periódico é possível encontrá-las. O Gymnasiano, “orgam dos alumnos do Gymnasio Amazonense”, trazia em seu primeiro cabeçalho da edição n°6 de 4 de fevereiro de 1911, a grafia Manaus, enquanto que no segundo cabeçalho, de onde começaria o primeiro artigo, foi utilizada a grafia Manáos (O GYMNASIANO, 04/02/1911). Esse padrão se repetiu entre os anos de 1910 e 1911, sendo a grafia Manáos empregada nas edições seguintes, de 1921 a 1925 (as que foram encontradas). Na seção do jornal literário e recreativo O Papagaio destinada à publicidade, Braga Almeida & Cia, armazém de ferragens, estava localizado na Avenida Eduardo Ribeiro, Caixa Postal N° 19, Manaus. Por sua vez, a tabacaria Casa Moderna estava localizada na rua Henrique Antony, N° 1, Manáos (O PAPAGAIO, 13/08/1899). Na Mensagem do Vice-Governador José Cardoso Ramalho Júnior, de 10 de julho de 1898, na parte em que era discutida a encampação da luz elétrica, escreveu-se que “pela lei n° 205 de 16 de fevereiro do corrente anno, achou-se autorisado o Governo á encampar a empreza de illuminação electrica de Manaus e, por acto de 26 de abril, firmou contracto com a Manáos Electric Ligthing Company” (MENSAGEM do Exmo. Sr. José Cardoso Ramalho Júnior, Vice-Governador do Estado, Lida perante o Congresso dos Representantes, por occasião da abertura da primeira sessão ordinaria da terceira legislatura, em 10/07/1898, p. 11).

Ainda que essas duas formas escritas, como pôde ser visto nos exemplos acima, tenham coexistido, Manáos ou Manaos foi a forma predominante, com ou sem acentuação tônica, largamente utilizada em jornais, documentos oficiais, estabelecimentos comerciais, livros, revistas, cartões-postais, cartas, etc. No fim, entre 1937-39 e, com maior ênfase, com a Reforma Ortográfica de 1943 (que, dentre outras coisas, eliminou os étimos latinos e gregos ch, th, ph, xh, mm, nn; bem como os por us), a grafia Manaus (com u) tornou-se oficial, talvez por influências nacionalistas, um retorno às origens indígenas dos habitantes da cidade.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

AMAZONAS, Lourenço da Silva Araújo. Dicionário Topográfico, Histórico, Descritivo da Comarca do Alto Amazonas. Recife: Typographia Commercial de Meira Henriques, 1852. (Biblioteca Arthur Reis).

BRAGA, Robério dos Santos Pereira. O nome "Manaus". Blog do Rocha, 21/02/2007.


MELLO, Octaviano. Topônimos Amazonenses: Nomes das cidades amazonenses, sua origem e significação. Manaus: Edições Governo do Estado do Amazonas, 1967.

MÉTRAUX, A. Los Indios Manaos. Anales del Instituto de Etnografia Americana de La Universidad Nacional de Cuyo, tomo I, 1940, p. 235-244.

FONTES:

Diário Oficial do Estado, n° 12.589, 17/03/1937.

Diário Oficial do Estado, n° 13.192, 14/07/1939.

A Voz do Amazonas, 07/01/1866.

A Província, 02/07/1885.

O Gymnasiano, 04/02/1911.

O Papagaio, 13/08/1899.

MENSAGEM do Exmo. Sr. José Cardoso Ramalho Júnior, Vice-Governador do Estado, Lida perante o Congresso dos Representantes, por occasião da abertura da primeira sessão ordinaria da terceira legislatura, em 10/07/1898.

segunda-feira, 1 de outubro de 2018

Mário Ypiranga, Pe. Nonato e a Fundação de Manaus

Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004) e Pe. Raimundo Nonato Pinheiro (1922-1994).

Chegado o mês de outubro, do aniversário da cidade de Manaus, escrevo artigos sobre a sua história e também reproduzo textos clássicos da historiografia local. Hoje, 1° de outubro, reproduzo um famoso embate intelectual entre Mário Ypiranga Monteiro (1909-2004) e Pe. Nonato Pinheiro (1922-1994), historiadores do IGHA (Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas), em torno da fundação de Manaus. São quatro artigos publicados em 1969, ano do Tricentenário de Manaus: Parecer do Professor Mário Ypiranga Monteiro, As Origens Nubilosas de uma Cidade, A César o que é de César e Dúvida e Vacilações do Tricentenário.


Parecer do Professor Mário Ypiranga Monteiro, de 15 de Junho de 1969, Apresentado no Conselho Estadual de Cultura

Sr. Presidente,
Srs. Conselheiros

Comunicando o meu parecer sobre as sugestões apresentadas a este colegiado, respectivamente da autoria dos srs. Luiz Maximino de Miranda Corrêa e padre Raimundo Nonato Pinheiro, o último representando o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, não pretendo em absoluto criar situações que possam vir a ser mal interpretadas, uma vez que a História não se regula pela simples fórmula convencional. No caso presente, quando se trata de reconhecer publicamente o valor de indivíduos ou de situações de fato ou de direito, a História de Manaus não permite vacilações, embora muitos fatos estejam obscurecidos pela ausência de documentos.

É justamente a ausência de um documentário volumoso que situa o problema da fundação da cidade no plano das discussões teóricas. Isto, entretanto, é resolvido quando se sabe, pelo documentário à mão que nem a Pedro da Costa Favela ou Favila nem a Francisco da Mota Falcão se deve a fundação da cidade. A fundação de uma cidade se revestia de direito consuetudinário, que implicava na tomada de posse em nome do rei. A autoridade investida desse direito lia publicamente o bando, juntava um pouco de terra e atirava-a para o ar. Ora, nada disso houve em Manaus que caracterize uma situação de fato e de direito, que envolva os nomes daqueles cidadãos sugeridos como fundadores, nem nada que ocorra dentro da pragmática. Os apógrafos são omissos nesse particular, mesmo porque são podiam registrar tais fatos.

Dois vassalos do rei de Portugal, Francisco da Mota Falcão e seu filho Manuel da Mota Siqueira foram atribuídos da responsabilidade de construir a Casa-Forte do Rio Negro, e o fizeram em 1669 sem outra qualquer interferência no ritual processualístico e muito menos no desenvolvimento da concentração ativa. Não tomaram posse da terra, não chantaram o marco de fundação exigível, não lavraram termo de posse nem de fundação, não lançaram bandos. Construído o forte, passaram a outros afazeres, nem ao menos ficando residindo no local. Suas atribuições eram apenas as de engenheiro e construtor. É o que consta dos documentos.

A cidade evoluiu à margem de uma desordem administrativa curiosa. De uma grande aldeia de índios Manaus, cursou os vários estágios de arraial, lugar, vila e cidade à mercê dos caprichos individuais. Se cabe alguma homenagem a alguém, esse alguém deveria ser sargento Guilherme Valente, que teve a habilidade de chamar a amizade dos índios, convolando núpcias com a filha do tuxaua. Conseqüentemente, meu parecer é que este douto Conselho Estadual de Cultura avoque a si o direito lícito de opinar sobre o assunto, deixando de tomar em consideração as duas propostas apresentadas, que aparecem como fruto de nenhuma validade histórica no caso da fundação da cidade, embora não se possa deixar de louvar a preocupação que tiveram ambos os signatários das proposições de cooperar.

Isto posto, nós propomos a este conspícuo colegiado que a medalha a ser cunhada leve simplesmente o nome de "Cidade de Manaus", com os demais títulos a serem discutidos. Para exemplo, basta citarmos o fato recente do biliardário de Paris, cuja medalha de bronze leva o título "Cidade de Paris", com as armas da cidade no cunho, e demais títulos no verso.

É este o nosso parecer, com visto aos demais Conselheiros.

S. S. em Manaus, 15 de julho de 1969, ano do tricentenário desta fiel cidade de Manaus

Mário Ypiranga Monteiro
Relator

Dúvida e Vacilações do Tricentenário 

Padre Nonato Pinheiro

Surpreendi-me com a desempenada declaração do professor Mário Ypiranga Monteiro, afirmando de peito aberto, pelas colunas de O Jornal, edição do dia 24 do mês expirante: "No caso presente, quando se trata de reconhecer publicamente o valor de indivíduos ou de situações de fato ou de direito, a História de Manaus não permite vacilações, embora muitos fatos estejam obscurecidos pela ausência de documentos".

Apesar do direito que assiste a qualquer cidadão de apreciar assuntos trazidos a terreiro "verbis et scripts", como assunto vertente, não viria a tapete para apreciá-lo, não fosse a inserção de meu apagado nome, por tanto, a responsabilidade de representante do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, circunstância alegada pelo articulista. Historiemos os fatos.

A Fundação Cultural do Amazonas, dirigida superiormente pelo acadêmico Elson Farias, consultou o Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas sobre qual dos nomes deveria figurar na medalha a ser cunhada pelo Governo do Estado, comemorativa do tricentenário da construção da Fortaleza de Jesus, Maria e José da Barra do Rio Negro: Pedro da Costa Favela ou Francisco da Mota Falcão? That is the question.

Motivou a consulta uma entrevista concedida pelo escritor Francisco Gomes da Silva, membro do IGHA, ao matutino A Crítica, profligando a notícia, já em amplo curso, de que se cogitava o nome de Favela, o tenebroso genocida da hecatombe do Urubu, para figurar no referido numisma (prefiro o gênero masculino). Francisco Gomes da Silva pois em ressalte o extinto sanguinolento e bárbaro, que macula e malsina a memória desse famigerado facínora, que tanto sangue indígena derramou pelas plagas amazônicas. Chama-lhe, o professor Ypiranga, "o sanguinário Pedro da Costa Favela, figura central de tantíssimos crimes" (Fundação de Manaus - Aspectos do Panorama Histórico-Social do Antigo Lugar da Barra - Manaus, 1948). Dá-nos ainda o professor Ypiranga este impressionante perfil do terrível bandido, na obra citada: "Foi ele o célebre autor da chacina do rio Urubu. Partiram de Belém a 6 de setembro, com trinta e quatro canoas, quatrocentos soldados e quinhentos índios. Chegou ao rio Urubu a 25 de novembro e numa represália que caracterizou os processos ferozes dos colonizadores, aplastra na terra os cadáveres de setecentos índios, reduzindo ao cativeiro cerca de quatrocentos. Ainda incendiou trezentas malocas". Bertino de Miranda alude a essa mortandade horripilante, usando a expressão "carnificina inacreditável" (A Cidade de Manaus, 1908, p. 2). Arthur Reis informa: "Em 1668, chegara ao Rio Negro, a testa de uma tropa, que vinha em som de guerra, Pedro da Costa Favela, um dos mais bárbaros caçadores de selvagens, experimentado na arte singular de penetrar a Selva Selvaggia, figura impressionante, que se assinalava sempre pela intrepidez, pelos rios de sangue que deixava no caminho" (Manaus e outras Vilas. In: Revista do Instituto Geográfico e História do Amazonas. vol. IV, p. 43). Aprígio Martins de Menezes, em sua sinopse de História do Amazonas, refere: "Deste desastre resultou que, em 1665, Pedro da Costa Favela invadisse o Urubu e a 7 de janeiro levasse às malocas de suas principais nações o incêndio, a devastação e a morte" (AmazônidaHistória e administradores do Amazonas, p. 42). Anísio Jobim ressalta: "Pedro da Costa Favela, oficial acostumado as Razzias feitas aos selvagens" (Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, vol. VII, p. 9).

Consultado o IGHA, e designando-se o presidente, desembargador João Rebello Corrêa para relator do parecer, opinei em favor de Francisco da Mota Falcão, na maioria dos historiadores dado como o construtor do forte, juntamente com seu filho natural Manuel da Mota Siqueira, que teria consolidado a obra de seu pai, ou, segundo outros, construído o fortim no local escolhido por seu genitor. Entendo que, se as comemorações giram em torno da construção do forte, óvulo histórico de nossa capital, deveria figurar na medalha o seu construtor, a figura a quem o governador Coelho de Carvalho atribuiu a tarefa da sua construção, embora reconhecendo, como frisei, a influência das informações de Favela junto ao governador.

Levado o parecer ao doutíssimo Conselho Estadual de Cultura, onde esplendem sóis de viva fulguração, veio a campo o professor Mário Ypiranga Monteiro, como relator, reputando as propostas do sr. Luiz Maximino de Miranda Corrêa e a minha, como "fruto de nenhuma validade histórica no caso da fundação da cidade", afirmando ainda que, nesse particular, "a História de Manaus não permite vacilações".

Com todo o respeito que me merece a cultura do professor Mário Ypiranga Monteiro (faço-lhe esta justiça), num meio em que proliferam as mediocridades empavonadas e as culturas de cutiliquê, gralhas solertes em cobrir-se com as penas de pavão, fiquei estarrecido, partindo de quem partiu, em face dessa afirmação, assim tão categórica e dogmática.

Toda a nossa História, a de Manaus e a do Amazonas, está eivada de dúvidas e vacilações de tal porte, que sabe muito bem o professor Ypiranga Monteiro que não há nem segurança do ano (quanto mais dia e mês!) da construção desse fortim. Sabe muito bem o ilustrado historiador que é possível estejamos todos a cometer uma farsa, celebrando o tricentenário em 1969, quando talvez (ou sem talvez?) o verdadeiro tricentenário ocorra somente em 1997, daqui a 28 anos!

É o professor Mário Ypiranga Monteiro, com o peso da sua autoridade, que trago a campo para repetir o que nos ensinou em 1948. "É interessante a disparidade de datas apresentadas. Para Bettendorf, foi em 1689 que levantaram a Casa-Forte. Melo Morais, na História dos Jesuítas, refere o ano de 1690, mas não diz o motivo dessa preferência. O padre Samuel Fritz, escrevendo em 1691, revela que já havia anos que o rei mandaram fazer a Fortaleza (Diário. In: Revista do Instituto Histórico Geográfico Brasileiro. Tomo 81). Entretanto, parece-nos que o documento mais interessante a respeito é o apresentado por Varnhagen, que insinua a data de 1697, havendo Manuel da Mota Siqueira se oferecido para levantar quatro fortins, entre estes o do Rio Negro. Como, porém, Varnhagen torna-se às vezes perigoso nas suas referências, atenhamo-nos à data de 1669, como a mais provável" (Fundação de Manaus, em arquivos, publicação da Associação Comercial do Amazonas, maio de 1948, p. 16).

Quer parecer-me que o professor Ypiranga incide numa contradição, afirmando que a História de Manaus "não permite vacilações", quando ele próprio, com pupilas devassadoras de historiador e pesquisador, verificou o labirinto de dúvidas, hesitações e vacilações das fontes da História de Manaus e do Amazonas, circunstância que deixa o estudioso tonto e perplexo em face de tantas divergências. Ninguém pode afirmar, com absoluta segurança, o ano da construção do forte de Jesus, Maria e José, raiz histórica de Manaus. O próprio Arthur Reis, de quem todos são caudatários, manifesta-se estarrecido diante de tanta insegurança. Em seu trabalho já citado (Manaus e outras Vilas), escreve: "Aqui são outras, grandes, grandíssimas dúvidas" (Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, vol. IV, p. 44). "Não se sabe ao certo (preleciona Ypiranga Monteiro) quem mandara construir o Forte: se o Rei ou Coelho de Carvalho" (Fundação de Manaus, em arquivos, p. 16).

As vacilações são grandes, grandíssimas, meu caro professor Ypiranga. Vacila V. S., vacilo eu, vacila o próprio Arthur Reis, que em seu nupérrimo artigo, publicado neste matutino, edição do dia 26, esquecido do que ensinou em trabalhos seus anteriores, segundo os quais Favela foi o inspirador da construção do forte, ponte de vista também assumido pelo professor Mário Ypiranga Monteiro, inclusive na placa que figura no frontispício do edifício da Secretaria de Fazenda, que agora verifico por Arthur Reis ser de sua autoria, esquecido do que ensinou, já não alude a Favela, afirmando categoricamente em seu artigo A propósito da Fundação de Manaus esta doutrina: "Um homem que se especializara no sertanismo regional e se propusera participar da política de montagem dos fortes, Francisco da Mota Falcão, propôs ao governo a construção daquelas praças fortificadas". Falcão, de simples construtor, passou a proponente da construção do fortim.

Como vê o professor Mário Ypiranga Monteiro, são os próprios mestres que vacilam. Eu próprio fico estarrecido. Há três meses que venho lendo com atenção e lápis na mão os trabalhos dos nossos historiadores: Arthur Reis, Bertino de Miranda, Bettendorf,, padre Samuel Fritz, Varnhagen, Araújo Amazonas, Sampaio, Alexandre Rodrigues Ferreira, Aprígio Martins de Menezes, Manuel Anísio Jobim, Mário Ypiranga Monteiro e outros, e fiquei pasmado em face de tantas vacilações e até de contradições berrantes, o que me leva a não aceitar a lição do professor Mário Ypiranga Monteiro, de que a "História de Manaus não permite vacilações". Toda ela é uma vacilação flagrante!

Estou tranquilo com o parecer que redigi, em nome do IGHA, sufragando o nome de Mota Falcão para a medalha. Arthur Reis agora me reforça (não sei se escorado em documentação nova vinda de Lisboa, segundo Pereira da Silva informou aos membros do IGHA), pontificando desempenhadamente, apontando Mota Falcão não só como construtor do fortim, mas até mesmo como inspirador da construção, arrebatando a inspiração de Favela, que o professor Ypiranga quis ressaltar na placa da Secretaria da Fazenda, a pedido de Arthur Reis: "Neste local, em 1669, foi construída a fortaleza de São José da Barra sob a inspiração do cabo de tropas Pedro da Costa Favela. Foram construtores o capitão Francisco da Mota Falcão e seu filho Manuel da Mota Siqueira. Desapareceu em ruínas no ano de 1850" (Transcrição da placa, feita às 10 horas do dia 26 do corrente).

Concluo: se a cidade nasceu à sombra do forte, como ensinam Arthur Reis e os demais historiadores; se Mota Falcão foi o seu construtor e proponente da construção (invoco o nupérrimo depoimento de Arthur Reis); se Mário Ypiranga Monteiro inseriu o nome de Francisco da Mota Falcão na placa aludida, como homenagens ao construtor do forte; se Mário Ypiranga ressalta na mesma placa a inspiração de Favela, como admitir que as exposições e propostas de Luiz Maximino de Miranda Corrêa e a minha "apareçam como fruto de nenhuma validade histórica"? Eu respeito, professor Mário Ypiranga Monteiro, os temas de cultura, que não costumo versar com leviandade. Sem ter tido qualquer estalo na cabeça, como dizem do padre Antônio Vieira, creio que possuo a mínima e suficiente capacidade para ler e interpretar autores, a não ser que suas doutas lições signifiquem o contrário do que ensinam. Voltarei ao assunto.


A César o que É de César

Mário Ypiranga Monteiro

O sr. padre Raimundo Nonato Pinheiro surpreendeu-me domingo com um artigo sem pé nem cabeça e cuja única finalidade parece ser a defesa intransigente de sua mancada no caso medalha "Cidade de Manaus". O seu erro, entretanto, foi atribuir demasiado valor a um mero especialista em construções militares e também tentar confundir-me com alusões ao meu livro Fundação de Manaus (duas edições, 1948 e 1952) e a uma placa existente na porta principal do edifício da Fazenda Pública. Essa plaquinha possui a seguinte história, que infelizmente ignora o reverendo: no fim do seu governo, o Arthur Reis mandou convidar-me, a mim e ao pintor Moacyr Andrade, e perguntou-me se eu identificava o local exato onde havia sido construída a Casa Forte do Rio Negro. Pela planta de Manaus, a mais antiga que se conhece, anterior a 1850, pelas descrições de viajantes e pelas reconstruções feitas por mim após o aterro de igarapés propínquos, o local coincide exatamente e não há por que duvidar. Quanto à data, 1669, a mais comum, da construção do fortim (houve outro, posterior), não somente segui a regra geral, como me filiei a uma notícia acerca da comemoração do bicentenário de Manaus, em 1869. Portanto, existe um precedente e não vejo por que deixar de aceitar a data mais preferida. Já está a placa, de minha autoria, alusiva à construção do forte com nomes e datas.

O sr. padre Raimundo Nonato Pinheiro não viria a tentar polêmicas se seu nome não estivesse ligado à infeliz promoção do nome do construtor do forte. Outro plumitivos têm escrito as maiores barbaridades sobre História do Amazonas e continuam escrevendo até investimento contra direitos autorais, mas o padre, que é do IGHA, não se manifesta, não defende o patrimônio histórico da cidade. É de admirar, portanto, que esteja agora deitando história quem certa vez meteu De Angelis na história da construção da nossa mais antiga catedral, ele que apenas é o autor de um projeto de basílica, nada mais. 

Pedro da Costa Favela, o sanguinário pernambucano trucidador de índios deve de haver inspirado ao governador Coelho de Carvalho, mas fê-lo considerando a possibilidade de invasão dos espanhóis pelo Rio Amazonas (chegaram até Ega, hoje Tefé) e pelos holandeses no Rio Negro. Jamais com o intuito claro e objetivo de fundar um núcleo de povoamento aqui. Se cabe alguma glória a alguém, esse alguém deveria ser Lobo d' Almada, autor constatado da mudança da capital de Barcelos para o reduto fortificado. Mas isso é uma outra conversa.

A História de Manaus deve ser escrita a partir da aldeia indígena já existente à época da construção do forte, mas de verdade o forte marca o início de uma atividade orgânica. Apesar de tudo, a autoridade principal do povoado não era militar e sim o encarregado do Diretório. Portanto, o forte teve apenas a função de acantonar a milícia e esta não poderia ficar inativa no que respeita ao processo de vinculação com a indiada. A história de Manaus deve partir da existência do forte, sim, e não de um homem que o construiu de ordem do rei de Portugal, como medida de estratégia, excluída qualquer intenção real de incrementar o povoamento.

Seria de maior interesse para a História se o construtor do forte da Barra viesse incumbido de fundar a cidade, mas isto jamais aconteceu. Por singular que pareça, Manaus não teve fundação oficial. Nem decretais, nem fórmulas simples, nem chantação do pelourinho, nem bandos, houve por onde se possa admitir um curso rigorosamente cronológico dessa fundação. Manaus evoluiu por si mesma até que recebesse sucessivamente as predicações de lugar, de vila e de cidade, quando outro lugares mais longe no tempo e no espaço já haviam passado por essas faces político-administrativas, documentadamente, inclusos autos de implantação do pelourinho, que eram o símbolo maior da justiça do rei. E a verdade é que outras localidades fortificadas nunca passaram de simples redutos, sem desenvolvimento social e cujos fortes acabaram em ruínas.

Não creio que o padre Raimundo Nonato Pinheiro tenha razão no que tange à eleição do seu pupilo como garante de uma situação descartável. Leia ele com serenidade tudo quanto já escreveu a respeito de Manaus de outrora, inclusive relatórios das autoridades, impressões de viajantes, os decretais régios, os alvarás, atas da Câmara (a partir do século passado) e verá que uma cidade como Manaus não pode ser tangivelmente consagrada a um fundador específico, a um indivíduo que nada mais era do que executor militar de ordens régias, autor da construção de outros fortes na Amazônia.

Foi com o espírito voltado para a história desses idos maravilhosos que indiquei o nome "Cidade de Manaus" para a medalha a ser cunhada. Evitamos, com isto, cometer uma injustiça e uma tolice. Injustiça, porque, em sã consciência, Francisco da Mota Falcão e seu filho Manuel da Mota Siqueira (cito a ambos no meu livro) não são e nunca foram os fundadores de Manaus. Tolice, porque uma cidade que não teve documento oficial de fundação não pode eleger à revelia um nome qualquer.

Quanto à data, é bem possível que houvesse erro de leitura de apógrafos, quando se escrevia um pouco mais ilegível para hoje, mas isto é apenas uma suposição minha, que não faço dogmática evitando com isto maior confusão: atenho-me ao ano 1669, leitura dos mais conspícuos historiadores do passado. E não vejo razão para que não seja comemorado condignamente este tricentenário como o fora o bicentenário em 1869.

Se o padre Raimundo Nonato Pinheiro não concorda, pouco se me dá. Eu fico com a História e com os historiadores e com as pesquisas diretas nos cartórios desta minha fiel cidade. Mas Mota Falcão não vai. Nem com açúcar. Muito menos o cretino do Favela ou Favila.

Voltarei, se necessário, em termos. E a Deus o que é de Deus.


As Origens Nubilosas de uma Cidade

Padre Nonato Pinheiro

Volto ao assunto encetado no último domingo, sobre as dúvidas e vacilações do tricentenário do fortim de Jesus, Maria e José (nome oficial) da Barra, ou de São José da Barra, como ficou popularmente denominado, origem histórica da cidade de Manaus. O sr. Mário Ypiranga Monteiro veio pelas colunas do Jornal do Comércio, tentando responder ao meu artigo. A verdade, porém, é que nada acrescentou de positivo para aclarar as dúvidas, que para Arthur Reis são grandes, grandíssimas. Pelo contrário, confirmou mais uma vez o que afirmei em meu trabalho dominical: "são os próprios mestres que vacilam...".

Vejamos a dubiedade de pontos de vista do professor Ypiranga. Em seu "Parecer", lido perante o douto Conselho Estadual de Cultura, em 15 de julho do fluente, e transcrito na página da Academia Amazonense de Letras (O Jornal, edição de 24 de agosto), pontifica: "Se cabe alguma homenagem a alguém, esse alguém deveria ser o sargento Guilherme Valente, que teve a habilidade de chamar a amizade dos índios, convolando núpcias com a filha do tuxaua (sic)". Muito bem. Com um pouco mais de boa vontade, teria chegado à conclusão de Bertino de Miranda, para quem esse sargento foi o fundador de Manaus: "Guilherme Valente funda a cidade aí pelo princípio do século XVIII" (A Cidade de Manaus, p. 2). Qual não foi minha surpresa, ao verificar que o erudito mestre, em menos de um mês, muda de parecer. Mandando Valente às urtigas, afirma de pés juntos: "Se cabe alguma glória a alguém, esse alguém deveria ser Lobo d' Almada, autor constatado da mudança da capital de Barcelos para o reduto fortificado" ("A César o que é de César...", Jornal do Comércio, 21.9.69).

Afinal de contas, quem deve ser homenageado: Guilherme Valente ou Lobo d' Almada. Qual das duas afirmativas traz a verdadeira chancela do professor Mário Ypiranga Monteiro? E ainda dizer que a História de  Manaus não permite vacilações!...

Insurge-se contra mim o articulista, pelo fato de me não manifestar contra  esses plumitivos que "têm escrito as maiores barbaridades sobre história do Amazonas e continuam escrevendo e até investindo contra direitos autorais". E apela para minha condição de membro do IGHA. Ora, bolas! Membro do IGHA também é o ilustre historiador e até mais antigo do que eu. E quem lhe tira o direito e a autoridade para fazê-lo? Por que não defende esse patrimônio histórico? Não é doutor de borla e capelo, perito no esgrimar e pena, laureado em desancas plumitivas? Que use em plenitude de seu direito doutoral, como usou no caso da cunhagem da medalha!

Afastando o assunto das dúvidas e vacilações, o professor Mário Ypiranga alude a uma intervenção minha, quando se tratou do empastilhamento da Catedral Metropolitana. Já que se ufana de sua condição de historiador da Sé, peço vênia para lembrar-lhe às mancadas que cometeu nesse livro, por mim referida em minha coluna semanal de recensão literária Letras & Livros, mantida outrora no Jornal do Comércio. Confundiu o padre Israel Galdino de Sousa com o cônego Dr. Israel Freire da Silva. Na obra Catedral Metropolitana de Manaus (1958), o professor Ypiranga Monteiro dá o velho cônego Israel Freire da Silva, catedrático de História Universal do velho Ginásio Amazonense, falecido em 1925, como Vigário da Paróquia de Nossa Senhora da Conceição em 1936!... Há outras falhas, como a que diz respeito ao padre Ananias Câmara, a quem por sua conta conferiu o canonicato, quando o saudoso e ilustre sacerdote, talentoso orador sacro, de quem fui acólito na referida Paróquia, nunca recebeu nenhuma conezia, nem em Manaus, no episcopado de Dom João Irineu Joffily e Dom Basílio Pereira, nem em Niterói, no episcopado de Dom José Pereira Alves e Dom João da Mata de Andrade e Amaral...

Volta às origens nubilosas de Manaus. Citei o próprio professor Ypiranga Monteiro, quando alude à disparidade de datas apresentadas. Ele citou Bettendorf (1689), Melo Morais (1690) e Varnhagen (1691). Recomenda que nos atenhamos à data de 1669 "como a mais provável", embora declare que reputa mais interessante o documento apresentado por Varnhagen, sem embargo de não especificar o motivo de ser este último, a seu parecer, mais interessante (Fundação de Manaus, em arquivos, 16).

Arthur Reis é mais minucioso. Além dos autores citados por Ypiranga, menciona Araújo Amazonas (1669), João Ribeiro (1671), Aprígio Menezes (1669), Agnello Bittencourt (1669) e J. B. Faria e Souza (1669). Traz a palavra de Joaquim Nabuco, afirmando que "o povoamento do Rio Negro começou com Favela e frei Teodósio, em 1668-1669, seguido da fundação do fortim por Mota Falcão" ("Manaus e outras Vilas". In: Revista do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, vol. IV, p. 47).

Ao cabo das citações, com opiniões e assertivas díspares, Arthur Reis pondera: "Como se vê, há discordância entre os autores". E voltando-se aos paupérrimos documentos, conclui desolado: "Os documentos assinalados, que ficaram, não adiantam, como se vê, grande passo. Ao contrário, vêm ajudar na confusão" (p. 46). Arthur Reis vacila e titubeia, chegando a sugerir uma hipótese. Mota Falcão escolheu o sítio para o fortim, e Siqueira, seu filho natural, arcou com a responsabilidade da construção. Mas frisa: "Estamos, contudo, diante de uma hipótese" (p. 47).

Há uma verdadeira confusão entre os autores. Anísio Jobim, na obra Aspectos Sócio-Geográficos do Amazonas (Manaus, 1950), sustenta que Falcão plantou a fortaleza para deter o passo ao espanhol, e Favela e frei Teodósio iniciaram o povoamento. Segue, portanto, a versão de Joaquim Nabuco (Aspectos Sócio-Geográficos do Amazonas, p. 171). Agnello Bittencourt ensina que Falcão construiu o forte, mas foi Angélico de Barros, seu primeiro comandante, que reuniu as tribos dos manaus, barés, banibas e passés (Corografia do Amazonas, 1925, p. 201).

E são os mestres que falam, não os plumitivos!...

Tomo do opúsculo de Arthur Reis, Roteiro Histórico das Fortificações no Amazonas, publicado em seu fecundo governo, e fico mais desorientado. Começa logo por prevenir e desencantar o estudioso: "Não é página definitiva a origem do forte de São José do Rio Negro. Os cronistas Alexandre Rodrigues Ferreira, Baena, Araújo Amazonas, Ribeiro de Sampaio, André Fernandes de Sousa, Bertino Miranda, que riscaram o primeiro noticiário acerca da história antiga do Amazonas, não esclareceram o assunto. Quem escreva estas linhas, procurando fixar a data exata da fundação e o nome do fundador, apesar das pesquisas que realizou para a monografia Manaus e outras vilas, editada em 1934, também não conseguiu elementos suficientes para o informe definitivo" (p. 10 e 11).

São grandes, grandíssimas as dúvidas, como diz Arthur Reis. Se não bastasse a confusão relativa à presença quase simultânea dessa dupla Mota Falcão - Mota Siqueira (pai e filho), disputando a construção do famigerado fortim, Arthur Reis, sem o querer, complica ainda mais a perplexidade do estudioso, afirmando que houve dois governantes com o mesmo nome de Coelho de Carvalho (Antônio de Albuquerque). E o mesmo mestre conclui que Mota Falcão construiu o forte em 1669, e Mota Siqueira o reconstruiu ou acabou para melhor em 1697. Mas sempre cauteloso e vacilante: "Segundo a nossa conclusão, que não queremos seja uma verdade intangível..." (p. 16).

Não continuo, para não tornar o leitor ainda mais perplexo. Não há nada certo, não há nada de positivo. A História escreve-se com documentos. E quando esses documentos são escassos, opacos, obscuros, tudo não passa de conjecturas e suposições, que provocam dúvidas e vacilações. O governador Leopoldo Amorim da Silva Neves foi mais feliz, nesse particular, que o governador Danilo Areosa, pois presidiu, a 24 de outubro de 1948, às comemorações de uma data clara, cristalina e inofuscável: o centenário de Manaus como cidade, uma vez que foi a 24 de outubro de 1848 que ela receba esse predicamento. A cidade não tem trezentos anos; o que ela tem são 121 anos. O fortim é que terá tantos trezentos anos quantas as datas apresentadas pelos Mestres da História!...


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:

332 anos de Manaus - História e Verdade. Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas. Manaus: Editora Valer/Governo do Estado, 2001, p. 31-33, 65-69, 61-64 e 71-77.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Blog do Coronel Roberto