segunda-feira, 4 de março de 2019

Laborum Meta: O Cemitério de São João Batista, em Manaus

Arco de entrada do Cemitério de São João Batista. FOTO: Durango Duarte.

O Cemitério de São João Batista está localizado no bairro de Adrianópolis (antigo bairro do Mocó, Vila Municipal), na zona Centro-Sul de Manaus. Foi a quarta necrópole oficial (excetuando-se os cemitérios indígenas) aberta na cidade, antecedida pelas dos Remédios, São José e São Raimundo; e é a mais antiga em funcionamento, tendo sido Tombado, através do Decreto N° 11.198 de 14/06/1988, como Patrimônio Histórico Estadual. O terreno em que foi erguido, assim como todo o bairro, pertencia a família do Capitão de Mar e Guerra Nuno Alves Pereira de Mello Cardoso, tendo sido comprado pelo município em 1890 e 1903 (MENDONÇA, 2002).

No expediente de 3 de julho de 1890, do governo de Augusto Ximeno de Villeroy, a Intendência Municipal ficou autorizada a “[…] desapropriar o terreno escolhido e indicado e a fazer construir nele um cemiterio” (GOVERNO DO EXM. SR. DR. A. X. DE VILLEROY, EXPEDIENTE DO GOVERNO DO ESTADO DO AMAZONAS, DE 4 DE JULHO DE 1890 In AMAZONAS, 09/07/1890). A Intendência Municipal autorizou, em 19 de setembro de 1890, que o Intendente João Carlos Antony fizesse o orçamento das despesas para construção do novo cemitério, seu arruamento, destocamento e construção de uma cerca de arame farpado. Na sessão ordinária de 03 de março de 1891, “o sr. Intendente Antony communicou á Intendencia que o terreno destinado ao novo cemiterio acha-se todo destocado e prompta a respectiva cerca” (INTENDENCIA MUNICIPAL, Sessão Ordinaria de 03/03/1891).

Com as obras já bastante avançadas, o Governador Eduardo Gonçalves Ribeiro decretou o fim dos enterros nos cemitérios de São José e São Raimundo:

Decreto N° 95, de 2 de abril de 1891

Proíbe inumação nos cemitérios de S. José e S. Raimundo Nonato, manda que os enterramentos sejam feitos no novo cemitério e dá outras providências a respeito.

O Governador do Estado do Amazonas, tomando na devida consideração o que expuseram o Provedor da Santa Casa de Misericórdia e o Dr. Inspetor de Higiene Pública sobre o inconveniente de continuarem as inumações a ser feitas nos Cemitérios de S. José e S. Raimundo Nonato, por estarem cheios, e atendendo que o novo cemitério mandado preparar pela Intendência Municipal já está apto para receber enterramentos, decreta:

Art. 1° - Ficam absolutamente proibidos enterramentos nos cemitérios de S. José e S. Raimundo Nonato, passando a serem feitos no novo cemitério mandado preparar pela Intendência Municipal.

Art. 2° - Passam a ser administrados e mantidos pela mesma Intendência os cemitérios públicos, cessando in totum os encargos que com eles tinha e os proveitos que deles auferia a Santa Casa de Misericórdia.

Art. 3° - A Intendência manterá ou alterará, como julgar acertado, as tabelas dos rendimentos dos cemitérios, bem como a do pessoal neles empregados.

Art. 4° - Enquanto não for publicado novo regulamento para todos os cemitérios do Estado, será no da capital executado o de n° 11, de 26 de maio de 1859, nas partes que não estiverem explicita ou implicitamente revogadas por deliberações posteriores e nas que não o forem pela Intendência com relação à administração e preços da tabela.

Art. 5° - Revogam-se as disposições em contrário.

Palácio do Governo do Estado do Amazonas, em Manaus, 2 de abril de 1891, 3° da República.

Eduardo Gonçalves Ribeiro” (DECRETOS, LEIS E REGULAMENTOS. Administração Fileto Pires Ferreira, 1889 a 1896. Manáos, Imprensa Oficial, 1897. Tomo II – 1891, p. 105. Acervo da ACA).

Além da proibição dos enterramentos nos antigos cemitérios, é interessante notar o caráter secular da nova necrópole, sendo encerrada a administração da Santa Casa, que cuidava dos Cemitérios da cidade. Essa foi uma das mudanças ocorridas com a separação entre Estado e Igreja, promulgada pela Constituição de 1891, ficando estabelecido no artigo 72, § 5º, que “os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis” (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL, DE 24 DE FEVEREIRO DE 1891). No entanto, como salientou a historiadora Adriana Gomes,

[…] na prática, os cemitérios ficaram mantidos sob o controle de particulares ou ordens confessionais, alguns com o caráter de monopólio. A ineficácia da secularização dos cemitérios forjou a liberdade assegurada aos crentes quanto a realização de seus cultos de acordo com a confissão religiosa profetizada” (GOMES, 2014, p. 5).

Isso ocorreu no novo cemitério, com a Prefeitura, ao longo dos anos, sedendo áreas para enterramentos exclusivos de membros de irmandades religiosas, destacando-se as da Santa Casa de Misericórdia (1891), Santíssimo Sacramento (1904) e Filhas de Sant’Anna (1913).

Terminadas as obras, o Cemitério foi inaugurado em 05 de abril de 1891. No dia 17 do mesmo mês recebeu aquele que é considerado o primeiro inumado, o poeta, político e historiador Aprígio Martins de Menezes, cujo túmulo encontra-se destacado da quadra em que está localizado. Deve-se salientar que, durante as pesquisas para a confecção do livro ‘Manaus entre o Passado e o Presente’, a equipe de Durango Martins Duarte encontrou o nome de uma criança chamada Maria como sendo a primeira enterrada, no dia 6 de abril de 1891 (DUARTE, 2009, p. 147). O aumento das rendas estaduais e municipais propiciado pelas atividades ligadas à borracha garantiu a construção e remodelação de um cemitério digno de uma cidade onde eram gerenciadas as atividades comerciais de importação e exportação. Ele fazia parte de um pacote de obras criado para dotar a capital de uma estrutura condizente com sua posição de grande centro comercial assumida em fins do século XIX.

Capela de São João Batista. FOTO: Fábio Augusto, 14.02.19.

O cemitério foi sofrendo transformações significativas até ser conhecido da forma como é nos dias de hoje. A cerca de arame farpado foi substituída por uma de pau a pique em 1900 por ordem do Superintendente Arthur Cezar Moreira de Araújo, bem como foi construída uma rampa de acesso pelo Boulevard Amazonas (Avenida Álvaro Botelho Maia) e um portão com saída para a Avenida Major Gabriel. Em 1901, através do projeto de Lei N° 233, foi concedido um jazigo perpétuo a Etelvina D’ Alencar (1884-1901), imigrante nordestina assassinada na Colônia Campos Salles (AMAZONAS, 10/07/1902, p. 97). Foi na administração do Superintendente Adolpho Guilherme de Miranda Lisboa (1902-1907) que foram realizadas as mudanças mais drásticas. Através da Lei N° 338, de 27 de maio de 1904, “Autoriza a Superintendência Municipal a reconstruir o cemitério de São João, desta cidade, e abre para esse fim o necessário crédito na Lei orçamentária em vigor” (LEI N° 233, DE 27 DE MAIO DE 1904 In: MENDONÇA, 2008, p. 148). Autorizado pela Lei N° 430, de 12 de dezembro de 1905, “manda proceder nesta necrópole a construção de muro com portões e gradil de ferro nas faces que limitam com o boulevard Amazonas e avenida Major Gabriel e no local do antigo necrotério uma Capela de estilo” (MENDONÇA, 2008, p. 142). O muro e os gradis ficaram prontos em 1905; a Capela de São João Batista, em 1906. No portão foi fixada uma frase em latim que dá o tom positivista ao cemitério: Laborum Meta, que significa fim dos trabalhos. A morte, nessa corrente filosófica, era vista como um processo que igualava os homens; e o Cemitério o espaço onde seria cultuada a memória desses homens. Exemplo disso são os grandes funerais de membros da elite política, intelectual e econômica local, noticiados na imprensa em forma de necrológios ou matérias especiais. Em 1913, o enterro de Agesilau Pereira da Silva (1846-1913), advogado e Presidente da Província do Amazonas entre 1877 e 1878, foi descrito da seguinte forma pelo Jornal do Comércio:

O enterro do illustre politico doutros tempos teve o cunho soberbo de uma apotheose consagradora, toda ella moldada na manifestação de um cultual sentimento affectivo, que bem significou as ultimas perolas de sua corôa de gloria. Dahi a innumeravel quantidade de representantes de todas as classes que, em romaria, lhe visitaram os despojos durante a noite de ante-hontem e o dia de hontem, e aquella intermina legião de amigos e admiradores que o acompanharam á ultima moradia e assistiram, com os olhos em lagrimas, descer o seu corpo ao seio da Grande Mãe” (JORNAL DO COMÉRCIO, 28/01/1913).

Entre 1911 e 1922, de acordo com o Relatório da Commisão Organizadora do Tombo dos Próprios do Município, organizado a mando do Prefeito Basílio Torreão Franco de Sá, foram feitos os seguintes reparos e obras: Pintura do gradil, dos portões de ferro e caiação dos muros, em 1911; a concessão, através da Lei N° 772, de 02 de outubro de 1913, de uma área para os enterramentos das irmãs de Sant’Anna; a reconstrução da capela e a construção de uma casa para a administração, em 1916; Limpeza geral, delimitação dos quarteirões com cercas de pitangueiras, levantamento das sepulturas perpétuas, identificadas com marcos de alvenaria, com as iniciais S.P., a numeração e a data de inumação em 1921; e a construção, em 1922, dos muros dos lados norte e oeste, “numa extensão de 588,70m; três sentinas, um grande mictório, um quarto para guardar ferramentas e materiais e um banheiro, terminando também a edificação do sumidouro, então apenas iniciada. Todas estas obras foram feitas com alvenaria de pedra e tijolo” (RELATÓRIO DA COMMISSÃO ORGANIZADORA DO TOMBO DOS PRÓPRIOS DO MUNICÍPIO, 1922).

Monumentos funerários do Cemitério de São José, localizados na quadra 04 do Cemitério de São João Batista. FOTO: Fábio Augusto, 14.02.19.

Em 11 de janeiro de 1926, a Prefeitura, na gestão de Hugo Carneiro, lançou um edital destinado aos interessados em transladar os restos mortais de seus familiares do antigo Cemitério de São José para o de São João Batista (DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DO AMAZONAS, 11/01/1926). No dia 18 de dezembro desse mesmo ano é publicado o edital de exumações. Foi construído, em 1932, um ossuário que guarda os restos mortais de 48 pessoas originalmente enterradas no Cemitério de São José e cujos restos não foram reclamados. Os monumentos funerários, enfileirados na quadra 04, foram transferidos no mesmo ano. No ano de 1928 a Prefeitura cede uma área do São João Batista, que ocupa as quadras 03, 04 e 05, para a construção do Cemitério Judeu, que passou a ser administrado pelo Comitê Israelita do Amazonas, criado em 1929. Até 1927 os enterros de judeus eram feitos em solo cristão (PONTE, 2013, p. 19).

Elaborei um pequeno roteiro destinado aqueles que desejam visitar o Cemitério de São João Batista. Ele é composto por 18 túmulos, pela quadra do Cemitério de São José e o Cemitério Judeu. Chamam a atenção pela arquitetura e pela história dos que neles estão inumados.

Roteiro – Cemitério de São João Batista:

Quadra 02: Eduardo Gonçalves Ribeiro (1862-1900), Joaquim Rocha dos Santos (1851-1905), José Jefferson Carpinteiro Péres (1932-2008); Quadra 04: Túmulos do Cemitério de São José; Quadra 05: Simplício Coelho de Rezende (1841-1915), Ária Paraense Ramos (1896-1915); Quadras 03, 04 e 05: Cemitério Judeu (1928); Quadra 06: Delmo Campelo Pereira (1933-1952), Joana Taveira da Cruz (1819-1911), Jazigo da família Nogueira da Silva e Aprígio Martins de Menezes (1844-1891); Quadra 07: Adriano Jorge (1879-1948), Jazigo da família de José Carneiro dos Santos; Quadra 08: Jazigo da família Salem José e escultura do cachorro Douglas, Gilberto Mestrinho de Medeiros Raposo (1928-2009), Álvaro Botelho Maia (1893-1969); Quadra 10: Leopoldo Tavares da Cunha Melo (1891-1962); Quadra 11: Santa Etelvina D’ Alencar (1884-1901), Shalom Emanuel Muyal (m. 1910); Quadra 13: Teresa Cristina (1964-1971).























Eduardo Gonçalves Ribeiro.























Joaquim Rocha dos Santos.
















José Jefferson Carpinteiro Péres.






















Simplício Coelho de Rezende.
























Ária Paraense Ramos.















Cemitério Judeu.

























Delmo Campelo Pereira.
























Joana Taveira da Cruz.
























Jazigo da família Nogueira da Silva.
























Aprígio Martins de Menezes.
























Adriano Jorge.























Jazigo da família de José Carneiro dos Santos.























Jazigo da família Salem José.



















Gilberto Mestrinho de Medeiros Raposo.















Álvaro Botelho Maia.
















Leopoldo Tavares da Cunha Melo.















Etelvina D' Alencar.























Shalom Emanuel Muyal.

























Teresa Cristina.








FONTES:

Governo do Exm. Sr. Dr. A. X. de Villeroy, Expediente do Governo do Estado do Amazonas, de 04 de julho de 1890 In: Amazonas, 09/07/1890.

Intendência Municipal, Sessão Ordinária de 03/03/1891.

Decretos, Leis e Regulamentos. Administração Fileto Pires Ferreira, 1889 a 1896. Manáos, Imprensa Oficial, 1897. Tomo II – 1891, p. 105. Acervo da ACA.

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm. Acesso em 03/03/2019.

AMAZONAS. Mensagem lida perante o Congresso dos Srs. Representantes por occasião da Abertura da 2° Sessão ordinaria da 4° Legislatura pelo Exm. Sr. Dr. Governador do Estado Silverio José Nery em 10 de julho de 1902.

Jornal do Comércio, 28/01/1913.

Relatório da Commisão Organizadora do Tombo dos Próprios do Município. Manaus, 1922.

Diário Oficial do Estado do Amazonas, 11/01/1926.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DUARTE, Durango Martins. Manaus entre o Passado e o Presente. Manaus: Ed. Mídia Ponto Comm, 2009.

MENDONÇA, Roberto. Centenário da Vila Municipal. Manaus: Governo do Estado do Amazonas/Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto. Série Memória, 6° Ed, N° 91, novembro de 2002.

____________________. Administração do Coronel Lisboa. Manaus: Edições Muiraquitã, 2008.

GOMES, Adriana. O processo de secularização do Brasil no limiar da República e a criminalização do espiritismo. Sacrilegens – Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião – UFJF, 2014.

PONTE, Maximiliano. Certas mulheres que vieram de longe: As “pobres mulheres” sepultadas no Cemitério São João Batista de Manaus. Boletim do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro (AHJB), n° 48, agosto de 2013.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Instituto Durango Duarte.
Fábio Augusto





sábado, 2 de fevereiro de 2019

Resenha: Folhas do Norte - Letramento e Periodismo no Amazonas (1880-1920), de Maria Luiza Ugarte Pinheiro


Os jornais, nos últimos anos, tem sido uma das fontes mais utilizadas nas produções acadêmicas no campo da História. Não é difícil encontrar trabalhos produzidos exclusivamente com eles, bem como aqueles em que foram a maior parte do material empregado. Essa guinada se deu entre as décadas de 1980 e 1990, período em que os periódicos passaram a ser vistos como fontes importantes na compreensão dos processos históricos, haja vista serem instrumentos de propagação ideologias, modos e modas, oferecendo muitas informações de outras épocas e se mostrando frutos desses contextos históricos. No Amazonas já existem algumas monografias, dissertações e teses alicerçadas nas páginas amareladas dos jornais, mas se comparado a outras regiões, ainda são poucas as pesquisas locais em que eles são utilizados como objetos ou fontes de estudo. Pode-se citar como trabalho pioneiro o catálogo ‘Cem anos de Imprensa no Amazonas (1850-1950)’, organizado na década de 1990 pelos professores do Departamento de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). É um levantamento precioso sobre os jornais que foram publicados no Amazonas entre a segunda metade do século XIX e a segunda metade do século XX.

Foi pensando nessa lacuna em nosso Estado que a professora Maria Luiza Ugarte Pinheiro, do Departamento de História da UFAM, publicou, em 2015, ‘Folhas do Norte: Letramento e Periodismo no Amazonas (1880-1920)’, resultado de sua tese de Doutorado defendida em 2001 na PUC-São Paulo. Neste livro a historiadora Maria Luiza analisa o surgimento, desenvolvimento e expansão do letramento e da imprensa no Amazonas.

O livro é divido em duas partes, cada uma com três capítulos. No primeiro são abordadas a Oralidade e Letramento no Amazonas (1850-1880). Em uma região vasta e pouco povoada, de maioria indígena e com forte tradição oral, a cultura letrada fazia parte da realidade de poucas pessoas, em sua maioria ligadas à máquina burocrática e, ainda assim, de forma deficiente entre esse seleto grupo. A autonomia surgida com a criação da Província em 1850 não foi suficiente, pois as escolas criadas pelos Presidentes, tanto na capital quanto no interior, sofrem com a carência de profissionais para preencher os quadros de professores de primeiras letras.

É nesse contexto, em que a língua portuguesa ainda não estava consolidada entre a população, que surge a imprensa no Amazonas. Maria Luiza foge da tradicional polarização oralidade x letramento, mostrando “[…] como a utilização de novas linguagens – o humor, a charge e a caricatura – no interior do periodismo pode se constituir em mecanismos que expressam não só tensões, mas também mediações com o universo oral local” (p. 71). Dessa forma, o surgimento de periódicos em uma região deficitária no domínio das letras é fruto de uma relação de trocas, penetrações, submissões e concessões entre o dito e o escrito.

Em Feição e feitura dos primeiros jornais do Amazonas são analisados os primeiros passos dos jornais no Amazonas (1851), os oficiais e ligados a partidos políticos, produzidos em tipografias e financiados pelo Estado; e os manuscritos e datilografados, de baixa tiragem, pequenos empreendimentos de pessoas sem especialização na área. Estes últimos, a “pequena imprensa”, compõe o grosso da obra. Os jornais enfrentaram dificuldades de diferentes tipos, tais como um público acostumado mais com a oralidade que a leitura, a falta de mão de obra especializada (tipógrafos), de oficinas tipográficas bem montadas, de material (papel, tinta) e perseguições políticas, com a destruição de redações e ataques a jornalistas.

Por volta de 1880-1900, a circulação de capitais surgida com o sistema econômico gomífero propiciou a importação de máquinas de impressão, de materiais e atraiu profissionais estrangeiros altamente qualificados para trabalhar nas oficinas tipográficas. Ainda assim, uma gama de pequenos jornais, feitos em sua maioria de forma artesanal, continuavam a surgir, mostrando como o acesso às novas técnicas era restrito e oneroso e a existência de pessoas obstinadas em deixar registradas suas visões da sociedade. São periódicos com nomes curiosos que evidenciam seu caráter popular: KCT, A Matraca, A Marreta, O Raio, A Mutuca e O Chicote, apenas para ficarmos em alguns exemplos. Inúmeros foram publicados, tendo uma existência efêmera, evidenciando assim os problemas da empresa jornalística. O aparecimento de um novo jornal era geralmente celebrado, mas o clima de tensão entre a grande e a pequena imprensa era uma realidade, conforme assinala a autora: “Ao longo das duas primeiras décadas do século XX, as pequenas folhas, de estilo mais despojado e de linguagem coloquial, passam a ser cada vez menos toleradas no interior do periodismo e constantemente confrontadas por jornais que, projetando-se como portadores diletos do refinamento cultural e da vida civilizada, passaram a impor regras e convenções, defendendo a restrição da atividade jornalística à esfera da norma culta burguesa” (p. 105).

Intelectuais de renome regional e nacional como Thaumaturgo Sotero Vaz, Péricles Moraes, Álvaro Botelho Maia, Arthur Cézar Ferreira Reis, Agnello Bittencourt e Mário Ypiranga Monteiro, que fizeram parte da Academia Amazonense de Letras (AAL) e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), iniciaram suas carreiras nos jornais antes de atingirem o auge de compor os quadros de imortais e membros dessas instituições culturais. Aliás, uma tendência na maioria das cidades brasileiras na virada do século XIX para o XX. Foi através da imprensa que os homens de letras amazonenses externaram seus pensamentos, digladiaram-se em correntes literárias, traduziram obras, introduziram valores e ideologias na população e utilizaram a linguagem popular para manter esse contato. É isso que fica evidente em Do jornal à academia: Elites intelectuais e Periodismo no Amazonas.

Em uma região tida como culturalmente acanhada, distante dos centros letrados como Rio de Janeiro e São Paulo, que esterilizava seus grandes nomes, esses escritores, sociólogos, historiadores e professores vão criando nas páginas dos jornais diários, médios e pequenos, através de conferências e correspondências com autores da “corte literária”, uma fervilhante ambiência cultural que foi o núcleo, em 1909, da Universidade Livre de Manaus, do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas, em 1917 e, da instituição de maior relevo, a Academia Amazonense de Letras, em 1918. Essa elite intelectual não é apenas fruto de um novo momento do Amazonas, em que a economia gomífera permite a reestruturação de parte da vida urbana, do aparato jornalístico, da incorporação de mão de obra estrangeira e especializada. Maria Luiza Ugarte Pinheiro lembra que “tanto quanto instituída, a imprensa institui, instaura e dinamiza a cultura letrada e os valores da sociedade burguesa ocidental, ao mesmo tempo, que por eles é potencializada” (p. 153). Os articulistas locais discutem, traduzem os anseios diante das mudanças operadas, modificam o cenário influenciando a opinião pública.

A riqueza do “ciclo da borracha”, recuperada idilicamente pela historiografia mais tradicional, foi sendo construída em meio a contradições sociais características das áreas do globo incorporadas ao modelo capitalista como fornecedoras de matérias-primas. Tais contradições mostravam-se em diferentes aspectos cotidianos. O trabalho era o principal deles. Baixos salários, carestia e insalubridade faziam parte do dia a dia de operários, nacionais e estrangeiros, que garantiam o funcionamento de todo um sistema econômico. Foi através da imprensa que esses operários, ainda não plenamente organizados mas conscientes de suas condições, faziam reivindicações por melhores salários, planejavam greves, discutiam, em linguagem acessível, teorias sociais, e criticavam a indiferença do empresariado local. Jornais anarquistas, socialistas, de trabalhadores de diferentes áreas (caixeiros, gráficos, estivadores etc), produzidos sem maiores artifícios técnicos, vieram a luz no Amazonas entre 1890 e 1928, período marcado pela expansão e declínio da economia gomífera. Iam da simples defesa ao engajamento teórico mais elaborado. Essas são as Folhas Operárias, tema do quarto capítulo.

Não sendo diferente de outras realidades, no seio desses próprios jornais operários existia a contradição, pois muitas vezes, além do discurso endereçado às classes laboriosas, que davam sentido a essa modalidade jornalística, estava o elogio, implícito ou explícito, ou mesmo a submissão, ao patronato e às oligarquias políticas. Ainda assim, “suas páginas desnudam as contradições mais profundas de uma cidade que acabou idealizada como exemplo de progresso e civilização nos trópicos” (p. 173). Não raro sofriam, por parte dos grupos de poder anteriormente citados, represálias em que o empastelamento, invasão e destruição de tipografias e escritórios, bem como o ataque a líderes sindicais (que desempenhavam a função de redatores, diretores, repórteres), foram as principais formas de silenciamento.

O humor é uma forma diferenciada de se relacionar com o cotidiano, utilizando para tal a irreverência e a linguagem coloquial, que lhe dão o tom. Ele está presente em todas as sociedades e relacionado de forma inconteste aos contextos históricos pelos quais elas passam, tornando-se assim uma fonte valiosa para a compreensão de realidades passadas. A imprensa europeia, já no século XVIII, permitiu sua rápida propagação nas cidades, fosse em tempos de Revolução, em que prevalecia a ácida crítica política, fosse em épocas mais amenas. No Amazonas da virada do século XIX para o XX não foi diferente. Jornais humorísticos foram surgindo com a promessa de amenizar ou servir de alternativa a seriedade da imprensa mais tradicional. Enxergando diversas possibilidades de análises, a historiadora os recupera no quinto capítulo, O Humor no Periodismo Amazonense.

Foram identificados por Maria Luiza três tipos de jornais humorísticos: Os de entretenimento, que teciam críticas ao cotidiano; os de humor político, voltados para as críticas a política local e nacional; e os moralizadores e segregadores, em que os artigos eram verdadeiros ataques a homossexuais, prostitutas, negros e imigrantes nordestinos. “O jornal de humor, a propor o entretenimento, desafia e afronta o instituído, o consagrado e, ao fazê-lo, atrai a atenção de um conjunto de leitores que não só demandam atitudes de independência e de liberdade de pensamento e expressão, mas também desejam ver esgarçadas as contradições de uma sociedade que lhes parecia putrefata” (p. 234). Esses jornais atendem os anseios populares, dialogam com eles, assim como fazem parte de uma esfera burguesa que através do chiste criticava setores populares da sociedade considerados atrasados e indesejados no espaço urbano. As imagens, charges e caricaturas, de acontecimentos do dia a dia, de membros da elite, políticos e acontecimentos nacionais e internacionais, surgem de forma tardia, mas se fazem presentes no periodismo amazonense. Esses recursos visuais, em uma sociedade marcada por altos índices de analfabetismo, permitem a leitura e diferentes interpretações que não seriam possíveis apenas com textos escritos.

Uma das principais mudanças verificadas a partir da segunda metade do século XIX foi a condição da mulher. De submissa e encerrada na esfera privada do lar, ela passa a ocupar os espaços que antigamente lhe eram proibidos. As transformações econômicas e o acesso à instrução foram fatores decisivos para que as mulheres se tornassem cada vez mais membros ativos da sociedade, reivindicando a emancipação frente ao patriarcado. Essas vozes ecoaram, não sem dificuldades, pelos jornais. A Mulher no Periodismo – último capítulo – fez representar-se e foi representada de várias formas.

Assim como vinha ocorrendo na Europa e na América do Norte, as mulheres, no Amazonas, estavam ganhando espaço e maior visibilidade. De uma forma interessante e pouco vista na historiografia local, Maria Luiza as localiza através da iconografia (com destaque para as cenas do filme No Paiz das Amazonas, de Silvino Santos, produzido em 1922) desempenhando diferentes trabalhos, tais como os de lavadeiras, costureiras, operárias, coletoras de guaraná e de ovos de tartaruga. O mundo letrado, formado majoritariamente por homens, reagiu. Pelas páginas dos jornais, artigos e caricaturas criticavam a ascensão das mulheres, vista como uma forma de subversão da “ordem natural” que lhes outorgou a condição de donas de casa, e uma ameaça a predominância masculina, visto que elas começavam a ter ocupações anteriormente restritas a esse grupo. Na imprensa elas tinham pouco espaço. Apareciam nas notas do colunismo social, nos romances e crônicas nos rodapés das páginas, sempre associadas a assuntos superficiais. O final do século XIX, no entanto, viu surgir o Abolicionista do Amazonas (1884), formado por mulheres da alta sociedade que lutavam pela abolição da escravidão. Treze anos depois, aparecia em Codajás A Rosa (1897). Em 1909, o Grêmio, em Manaus. Os periódicos anteriormente citados tinham diferentes tipos de abordagem, indo da “aceitação” da condição da mulher como mãe e dona de casa até a luta pela equiparação salarial. A historiadora salienta que, “contudo, não se deve concluir que a ação das mulheres na imprensa demonstrasse sempre uma postura apática ou alienante e invariavelmente submissa. Embora difícil de aquilatar, não há como duvidar do fato de que os avanços atuais foram construídos lentamente nos rastros das centelhas lançadas por essas pioneiras” (p. 315).

O pioneirismo do trabalho da historiadora Maria Luiza Ugarte Pinheiro reside no uso que fez dos pequenos jornais, esquecidos ou ignorados pela antiga historiografia local em detrimento dos grandes jornais empresa. Os recuperando em arquivos precariamente organizados (com uma ou outra exceção) deu luz a um cotidiano mais popular, vívido, impregnado de contradições, abarcando a relação entre oralidade e letramento, o surgimento dos primeiros jornais, a atividade das elites intelectuais no periodismo, as dificuldades do nascente jornalismo operário, o humor e a presença da mulher no periodismo amazonense.