Artigo publicado no volume 3 da Manduarisawa, Revista Eletrônica Discente do Curso de História da Universidade Federal do Amazonas. Link para a leitura do artigo na revista:
Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa
RESUMO:
As
representações sobre a criança e a infância sofreram mudanças
profundas no Ocidente. Passaram da indiferença medieval aos cuidados
da modernidade burguesa. Essas mudanças tiveram como pano de fundo a
mortalidade. Se no período medieval as crianças morriam em grandes
quantidades, sendo logo substituídas por outras, no período moderno
e na contemporaneidade, os avanços tecno científicos, a valorização
da individualidade, da constituição da família burguesa,
aumentaram a expectativa de vida. A morte de uma criança passou de
fato corriqueiro à tragédia. No Brasil oitocentista e até meados
do século XX, existia um rico universo simbólico sobre a morte
infantil. As crianças eram vistas como anjos que rogariam por seus
familiares no outro mundo, o que amenizava a perda física. No
presente artigo busca-se apreender esse universo de crenças entorno
da morte infantil no Amazonas. A partir da análise de diferentes
fontes, documentos oficiais, publicações fúnebres em jornais e
artefatos mortuários, foram apresentadas as concepções sobre a
morte infantil no Amazonas, as permanências e rupturas de crenças e
práticas entre os séculos XIX e XX.
Palavras-chaves:
Morte;
Infância; Amazonas.
ABSTRACT:
Representations
of children and childhood have undergone profound changes in the
West. They passed from medieval indifference to the care of bourgeois
modernity. These changes had against the backdrop of mortality. If in
the medieval period the children died in large quantities, and soon
replaced by others, in the modern period and in the contemporaneity,
the techno-scientific advances, the valorization of the
individuality, of the constitution of the bourgeois family, increased
the life expectancy. The death of a child has, in fact, passed by the
tragedy. In nineteenth-century Brazil and until the mid-twentieth
century, there was a rich symbolic universe about infant death. The
children were seen as angels who would pray for their families in the
other world, which softened the physical loss. In the present article
we seek to apprehend this universe of beliefs surrounding infant
death in Amazonas. From the analysis of different sources, official
documents, funeral publications in newspapers and mortuary artifacts,
the conceptions about infant death in Amazonas were presented, the
permanences and ruptures of beliefs and practices between the
nineteenth and twentieth centuries.
Keywords:
Death; Childhood; Amazonas.
Concepções
sobre a infância e a morte infantil no Ocidente
As
representações sobre a criança e a infância, no Ocidente,
sofreram mudanças significativas desde a Idade Média. Seu principal
estudioso e expoente, o historiador francês Philippe Ariès,
analisou essas transformações. No período medieval, a criança era
vista como um adulto em miniatura, que logo que tivesse se
constituído fisicamente e dado seus primeiros passos, era
incorporada a sociedade, aos trabalhos manuais. Concorria para isso a
alta taxa de mortalidade infantil no período. A sensibilidade,
quando da morte de crianças, praticamente não existia, dada a
quantidade de falecimentos. Nas palavras de Ariès, “[…] a arte
medieval desconhecia a infância ou não tentava representá-la. É
difícil crer que essa ausência se devesse à incompetência ou à
falta de habilidade. É mais provável que não houvesse lugar para a
infância nesse mundo”.
No
entanto, Ariès afirma que existia um sentimento, só que
superficial, o qual ele denominou de ‘paparicação’. Em seus
primeiros anos a criança era tratada como um pequeno animal, um ser
engraçado que a todos divertia. “Se ela morresse então, como
muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra
geral era não fazer muito caso, pois uma outra criança logo a
substituiria. A criança não chegava a sair de uma espécie de
anonimato”.
A
própria definição de um termo para essa fase da vida era imprecisa
entre os sábios medievais. Não se chegava a um concesso de classe,
gênero e outros elementos. De acordo com os historiadores Carlos
Eduardo Ströher e Cássia Simone Kremer, isso se dava porque “[…]
a própria noção de tempo, para os medievais, não era relevante”.
A preocupação com a delimitação de fases da vida, principalmente
a infância, é tardia.
A
ruptura, ainda que gestada lentamente, representada pela Modernidade,
entre os séculos XVI e XVIII, faz surgir um novo tipo de mentalidade
em relação à criança. Nas cidades, impregnadas agora por valores
burgueses, pela valorização da individualidade, da privacidade e da
racionalidade, a criança começa a receber cuidados, tanto
referentes à instrução como à manutenção de sua vida. Os
adultos, as famílias, percebem que elas possuem necessidades
específicas. Começam a surgir os estágios da infância como
conhecemos na contemporaneidade. Segundo a historiadora Beatriz de
Moraes Salles Formigoni,
“Novos
comportamentos familiares se estabelecerão devido ao novo interesse
sobre si mesmo e à decadência do compromisso da linhagem
(característico da Idade Média). Busca-se preservar a saúde, a
vida, a personalidade, pois “meu corpo é meu”, porém
perpetua-se a vida pelo nascimento dos filhos. Daí nasce a
preocupação dos pais sobre a criança em amá-la como ela é”.
É
nesse período que surgem os primeiros manuais sobre como educar as
crianças, destacando-se os trabalhos do teólogo e humanista
holandês Eramos de Roterdã (1466-1536), De Pueris (Dos Meninos) e
De Civilitate Morum Puerilium (A Civilidade Pueril). Erasmo via a
educação como um meio de aperfeiçoar o ser humano, devendo ser
incentivada desde tenra idade e jamais negligenciada, tanto no âmbito
familiar quanto no escolar.
O
controle dos corpos, das atitudes, postos em prática pelo Estado e
pela Igreja, principalmente pela administração da educação
pública, sempre vigilantes a qualquer sinal de desvio, e os cuidados
da nova família burguesa, vão surtindo efeito, mesmo que pelo
controle, na sobrevida daqueles que, pelo menos um ou dois séculos
antes, morriam em grandes quantidades.
A
partir da segunda metade do século XIX, com a intensificação da
industrialização, o crescimento e urbanização das cidades, da
corrida capitalista por áreas de exploração e consumo, surgem
novas descobertas que melhoram a vida de parte da população,
possibilitando, se comparado com períodos anteriores, um aumento na
qualidade e expectativa de vida. A historiadora italiana Claudia
Pancino, em estudo sobre a criança e a morte na Idade Moderna,
afirma que, graças a essas novas condições,
“Na
família, a criança passará a ser considerada pouco a pouco mais
importante, o batismo será celebrado alguns dias após o nascimento.
Será preciso ainda um século para que melhores condições comecem
a tornar a morte de uma criança cada vez mais excepcional, e
insuportável”.
Permeia
essas mudanças, o surgimento de sentimentos de afetividade em
relação a criança, como pôde ser visto, a morte. Tais
transformações, no entanto, não ocorreram de forma unificada ao
redor do mundo. No Brasil oitocentista, e até mesmo mais
tardiamente, no século XX, existia um rico universo de ritos
fúnebres e atitudes diante da morte com origens no período
colonial. Homens e mulheres de diferentes estratos sociais,
mergulhados em um catolicismo popular que mesclava crenças
ameríndias e africanas, cuidavam de seus mortos, participando de
todos os processos (preparação do corpo, escolha da roupa, velório
e enterro) para que fosse feita uma passagem sem problemas para o
outro mundo, ou para que a estadia no Purgatório resultasse na
entrada no Paraíso. A morte de uma criança ainda não havia se
transformado em uma tragédia como passara a ser encarada em meados
do século XX.
A
criança, no Brasil colonial, assim como ocorria na Europa, era vista
como um pequeno adulto. As crianças escravas, órfãs, abandonadas e
pobres logo adquiriam um ofício, atuando como trabalhadores
compulsórios nos meios urbano e rural. Os filhos da elite recebiam
uma educação erudita, pois dessa forma poderiam se apropriar de
trabalhos burocráticos e aumentar o patrimônio familiar. Apesar
dessa enorme diferença de realidades, ambas eram tratadas com
indiferença. Se a vida apresentava-se árdua, na morte essas
crianças recebiam um melhor tratamento, sendo associadas e
idealizadas como anjinhos.
De
acordo com o historiador e sociólogo Gilberto Freyre, em Casa
Grande & Senzala,
a crença de que as crianças batizadas que morriam tornavam-se anjos
têm origem com os jesuítas no primeiro século da colonização.
Diante da alta mortalidade infantil, principalmente entre indígenas,
os padres jesuítas “[…] talvez para atenuar entre os índios o
mau efeito do aumento da mortalidade infantil que se seguiu ao
contato ou intercurso em condições disgênicas, entre as duas
raças, tudo fizeram para enfeitar ou embelezar a morte da criança”.
É considerável o peso do catolicismo no surgimento dessa crença
que teve uma longa sobrevida. Em 1825, o viajante francês Du Petit
Thouars registrou o seguinte sobre o velório de uma criança em
Santa Catarina:
“[…]
Vi, no fundo da sala, um estrado sobre o qual estava disposta no
altar uma criancinha, cercada de lírios e vasos com flores; tinha o
rosto descoberto e estava ricamente vestida, tendo na cabeça uma
coroa de sempre-vivas e um ramo na mão”. Em volta do altar com o
meninozinho morto, esteiras; e ajoelhadas sobre as esteiras, mulheres
em trajos de festa, cantando. Depois houve até danças alegres”.
No
presente artigo busca-se apreender esse universo de crenças entorno
da morte infantil no Amazonas. A partir da análise de diferentes
fontes, documentos oficiais, publicações fúnebres em jornais e
artefatos mortuários, foram apresentadas as concepções sobre a
morte infantil no Amazonas, as permanências e rupturas de crenças e
práticas entre os séculos XIX e XX.
Morte
infantil no Amazonas nos séculos XIX e XX
Em
1869, o Capitão e Inspetor da Tesouraria da Fazenda Provincial José
Justiniano Braule Pinto e sua esposa, D. Carolina de Lemos Braule
Pinto, perderam a filha Carolina. A romaria até o cemitério público
de Manaus, mesmo sob forte chuva, foi bastante concorrida, tendo sido
acompanhada pela música dos alunos do Instituto dos Educandos
Artífices. Os articulistas do jornal Amazonas publicaram uma nota de
pesar, associando-se “á dôr funda que lhe punge o coração”, e
lembravam o casal de que deveriam ficar resignados “pela gloria de
levarem ao Throno do Eterno mais esse cherubim, que vai gozar no céo
da bemaventurança ao lado de Deos”.
As crianças, incapazes de pecar e por isso puras, eram vistas como
pequenos anjos que, ao morrer, eram logo incorporados ao reino
divino. Não é de se estranhar, conforme assinala o historiador José
Carlos Reis, que estudou o cotidiano da morte no Brasil oitocentista,
que fosse comum “[…] considerar positivo que as famílias
contassem com anjos familiares que as protegessem”.
O
historiador Luiz Lima Vailati, em estudo comparativo sobre as
representações da morte infantil no Rio de Janeiro e na Inglaterra
no século XIX, vai mais além, buscando outras explicações para
essa ideia de aceitação em torno da morte infantil, listando três
elementos para a sua compreensão:
“Em
primeiro lugar, encontra-se o entendimento de que a morte infantil é
um privilégio, pois ao morrer na condição de criança esta tem sua
salvação garantida. Em segundo, aparece a convicção de que
lamentar a morte de crianças é protestar contra a vontade de Deus
que, como lembrou no texto sagrado, tem especial preferência na
companhia destas. Por fim, há a ideia de que a criança morta é uma
intercessora entre aqueles que a amaram aqui na terra e as potências
celestes, significando assim um trunfo inestimável para a proteção
dos familiares em vida e salvação destes na morte”.
Luís
da Câmara Cascudo, historiador e folclorista, identifica essa
tradição, no Brasil, como sendo de origem portuguesa, pois em
terras lusitanas, além dos aspectos elencados por Vailati, a morte
infantil era encarada até mesmo com festividades. Câmara Cascudo
denominou essa tradição de “uma sime indiferença conformada pela
morte das crianças”.
No
município de Tauapessassu, em 1885, o inocente João da Matta, filho
de Bruno da Costa Fonseca, após passar alguns dias doente, “voou
ao céo cheio de alegria á abraçar outros anjos, que de braços
abertos o encontrarão”, sendo “mais um anjo que irá ter com
Deus rogar pela felicidade de seus pais cá na terra”. O autor
desse informe fúnebre pediu “bastante
resignação com a vontade do Altíssimo”,
o que nos lembra da passagem de Vailati, segundo a qual deveria ser
respeitada a vontade divina. Esses aspectos também apareciam em
ocasiões inusitadas, como em uma nota cômica publicada no jornal
Comércio do Amazonas em 1900. A irmã de uma criança que tinha
morrido perguntou da mãe para onde a tinham levado. A mãe explicou
que ela tinha ido para o cemitério, pois tinha se tornado um anjinho
de Deus. A criança, ainda com dúvidas, disse “então, mamãe,
quando Deus precisa de anjinhos no céo encommenda ao doutor?”.
A
ideia de um reino divino formado por vários anjinhos é vista em
outras publicações fúnebres como as que foram dedicadas à filha
de José Justiniano e Carolina de Lemos e ao filho de Bruno da Costa,
assemelhando-se a uma contabilidade espiritual. O comerciante James
Baird, em 1885, “passou […] pelo desgosto de perder um seu
interessante filhinho”, que foi “[…] mais um anjo que sobe ás
regiões celestes”.
Mais um, mais dois. Esses anjinhos diariamente iam para essas regiões
celestes, sendo representados da forma como são imaginados os anjos,
seres alados. Assim fizeram o inocente Elyseo, que às 3:30 da
madrugada de 09 de outubro de 1893, “voou à Mansão Celestial”;
e, anos antes, a pequena América, que em 1885 “passou á celestial
mansão para entoar o harmonioso côro divino”.
O
historiador paranaense Juarez José Tuchinski dos Anjos, que estudou
as representações da infância na imprensa periódica da Província
do Paraná (1854-1889), afirma que na imprensa era comum o repertório
de adjetivos que representavam as crianças como seres dóceis,
inteligentes, amáveis e inocentes. Elas não eram inocentes apenas
por terem morrido, explica Tuchinski,
“[…]
mas porque morreram na infância, antes de alcançar a vida adulta
[...]. Era esse tempo da vida que lhes conferia em particular essa
qualidade que as tornava prontas a desenvolverem todas as demais
virtudes que, agora, por meio da redação do jornal, ornavam suas
mimosas coroas fúnebres”.
Foi
com adjetivos semelhantes a esses citados por Tuchinski que Carolina
foi lembrada pelo jornal Amazonas em 1869, uma criança com um
“angelico typo de espirito, meiguice e doçura”. Outra forma de
expressão encontrada pelos jornais eram os poemas, como o que foi
dedicado ao pequeno Alcides, de Parintins, em 1890:
“Alcides
querido.
Creança
mimosa.
Perdida
esperança
De
Mãe carinhosa.
Botão
de açucena
(No
seio plantada
De
mãe extremosa
De
pranto orvalhada)
Que
o vento da morte
Tão
cedo arrancou;
Mas
cujo perfume
No
ceo trescalou.
Lá
entre os anginhos
No
throno de Deus,
Supplica
ventura
E
paz para os teus”.
Esse
imaginário também está representado na cultura material, nesse
caso nos artefatos funerários. Na quadra 04 do Cemitério São João
Batista, onde estão enfileirados os túmulos do antigo Cemitério de
São José (1856-1891), o túmulo das crianças Antonio Nery da
Fonseca (1851-1861) e Lucrecia (1876-1876) é bastante significativo
a esse respeito. Em seu epitáfio lê-se o seguinte: “Aqui
jazem os frios restos dos dois innocentes. Antonio Nery da Fonseca,
filho do Ten. Cel. João Evangelista Nery da Fonseca e de D. Maria
Leopoldina Nery da Fonseca. Nascido a 30 de […] de 1851. Fallecido
a 9 de janeiro de 1861. E Lucrecia, nascida em 1 e fallecida a 22 de
fevereiro de 1876. Filha do Cap. de Mar e Guerra Nuno Alves Pereira
de Mello Cardoso e de D. Maria Leopoldina de Mello Cardoso. Suas
almas no céu oram a Deus por seus paes”.
No topo desse monumento funerário, as esculturas de dois pequenos
anjos, sentados em nuvens, rogam aos céus por seus pais. Além
disso, chamam a atenção os laços familiares. João Evangelista
Nery da Fonseca era sogro de Nuno Alves Pereira de Mello Cardoso,
este casado com a filha de João, Maria Leopoldina de Mello Cardoso.
Dessa forma, Lucrecia era neta de João Evangelista. Antonio Nery da
Fonseca, filho de João Evangelista, era irmão de Maria Leopoldina
de Mello Cardoso, cunhado de Nuno Alves Pereira e tio de Lucrecia.
Imagem
01: Túmulo de Antonio Nery da Fonseca (1851-1861) e Lucrecia (1876).
FOTO: Fábio Augusto, 2019.
Essas
concepções acerca da morte infantil, características do Brasil no
século XIX, chegaram ao século XX. É de Lábrea uma interessante
publicação fúnebre sobre a morte de uma criança, com
características (modelo, adjetivos etc) de textos da segunda metade
do século XIX:
“Um
anjo que evola
Envolvido
em diaphanos véos de neve, subio ao empyreo a innocentinha –
Almerinda – dilecta filha do Coronel Manoel C. Paiva e D. Almerinda
A. Paiva. Bem sabemos que no coração de sua desolada mãe, abrio-se
uma chaga de difficil cicatrisação; seu pai, ferido com a perda
sensível de um pedaço de sua alma chora no intimo, cujo reflexto se
manifesta exteriormente em sua phisionomia abatida.
Nós
que lhes dirijimos estas sentidas linhas, compartilhando dessa dôr,
só temos palavras de conforto para os pais desse anjinho, que
formando côro, entôa hymnos a Deus, ao tom de notas divinas
proferidas por clarins seraphicos.
Labrea,
26-05-09.
José
Tote”.
Os
articulistas do jornal O Javary, de Benjamin Constant, em 1916,
dedicaram o texto Para
o Zenith a menina
Cecília, filha de Candido Clóvis de França, gerente do periódico,
morta em 22 de agosto daquele ano. A criança foi descrita da
seguinte forma: “Cecilia era uma creancinha meiga, inteligente e
bella, deixou, pois, o seu inopinado desapparecimento um vacuo
irremediavel, uma saudade eterna”. Nesse texto são inexistentes
quaisquer resquícios de uma possível compensação espiritual
diante da morte da criança, pois no texto não existem tentativas de
amenizar a partida de Cecília. No máximo
“os
corações de seus queridos paes sentiram a lembrança suave e ao
mesmo tempo triste da pequenina creatura que lhes era cara, a saudade
mais pungente, a dor mais angustiosa porque o riso leve e silencioso
da linda e graciosa pequenita era o raio de sol vivificador daquelle
tecto feliz, o effluvio radioso que lhes illuminava a vida”.
A
preparação do corpo da criança, assim como dos mortos em geral,
para o velório e sepultamento, era uma preocupação constante, pois
acreditava-se que a forma como seria enterrado seria a mesma em que
se chegaria no outro mundo. “Essa concepção estava de tal modo
enraizada, que muitos, ao elaborarem seus testamentos, procuravam
informar qual seria sua última roupa”. As crianças não escreviam
testamentos, mesmo assim não eram enterradas de qualquer forma.
Predominava nas vestimentas fúnebres a cor branca, que segundo
Vailati, além de simbolizar a cor a que eram associados os mártires
nos primeiros tempos do Cristianismo (posteriormente substituída
pela cor vermelha), também era o símbolo da alegria, “[…] da
inocência e da pureza virginal”.
Esses
cuidados com o corpo da criança após a morte poderiam até mesmo
virar caso de polícia. Os articulistas do jornal O Pimpão, em 1911,
denunciaram um homem, em Manaus, por abandono de incapaz. Além
deixar a criança, uma menina de nome Nenê, abandonada, os
repórteres desse jornal descobriram que “a innocente morreu pagã,
sem registro civil e sem o embellezamento de anjo”.
É
nesse mesmo período, no século XX, de pesadas intervenções
sanitárias nas cidades brasileiras, que contribuem para a diminuição
dos índices de mortalidade,
principalmente a infantil, que a criança vai aos poucos deixando de
ser representada como um ser celeste. As notícias sobre o
falecimento delas tornam-se cada vez mais resumidas, sem os adjetivos
e modelos textuais característicos da segunda metade do século XIX.
A morte infantil, finalmente, assume o tom único de tragédia. Em
1935, o governo do Estado do Amazonas observou, “em gelada
perplexidade”, que no Cemitério São João Batista, em Manaus,
foram sepultadas de 1891 a 1935, 35.903 crianças com idade até 9
anos, “percentagem aterrorisante numa cidade de media de 50.000
habitantes”. (Por algum motivo, talvez erro na formatação da versão para publicação final, esse parágrafo foi suprimido no artigo da revista. Aviso aos editores da revista).
A
mudança também fica evidente na arte funerária. Nos túmulos as
crianças deixam de ser representadas como anjos que rogam a Deus por
seus familiares. As esculturas de anjos que as acompanham estão em
posição de proteção, como se rogassem pela proteção das
próprias crianças. A associação com a figura do anjo, no entanto,
continua, como se fosse um resquício da crença antiga. É um
exemplar interessante o túmulo de Cleomenes Borges, nascido em 8 de
julho de 1912 e falecido em 9 de janeiro de 1913. A criança, entre
cortinas abertas, é representada em alto-relevo em seu leito de
morte. Ao seu lado, um criado-mudo sustenta um candelabro com uma
vela que acabou de se apagar, simbolizando o fim daquela vida. Do
topo do túmulo projeta-se um anjo adulto, segurando um ramo de palma
sobre o relevo de Cleomenes Borges.
Imagem
02: Parte inferior do túmulo de Cleomenes Borges (1912-1913). FOTO:
Fábio Augusto, 2019.
Imagem
03: Parte superior do túmulo de Cleomenes Borges (1912-1913). FOTO:
Fábio Augusto, 2019.
CONCLUSÃO
Portanto,
as concepções e visões de mundo sobre a morte infantil, no
Amazonas, sofreram profundas mudanças entre a segunda metade do
século XIX e o século XX. A partir da leitura de fontes escritas,
principalmente dos anúncios fúnebres, necrológios e outros tipos
de homenagens publicados em jornais da capital e do interior,
constatou-se que o sentimento ambíguo de perda física e compensação
espiritual (anjos protetores da família), dentro
da crença popular fortemente arraigada na população no século
XIX, com origens no período colonial através do catolicismo
popular, deu lugar à tragédia pela perda de um ente que não teve a
oportunidade de atravessar todas as fases da vida, evidenciada nos
anúncios cada vez mais resumidos e sem idealizações espirituais
positivas e nas falas dos administradores públicos, que começaram a
encarar o assunto como um problema a ser enfrentado dentro do
contexto das transformações urbanas e avanços científicos que
passaram a prolongar a expectativa de vida.
Isso também ficou evidente na
análise dos artefatos mortuários infantis (túmulos e jazigos)
existentes no antigo Cemitério de São José (1856-1891) e no
Cemitério São João Batista (1891), cujas formas e inscrições
acompanharam tal mudança. Deve-se pontuar, no entanto, que a
associação com a figura do anjo permanece, pelo menos nas
esculturas que representam as crianças falecidas como tal ou nas
esculturas dos anjos que as protegem nos túmulos e jazigos, sendo um
indício de como as mentalidades são resistentes às mudanças.
FONTES
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do Amazonas, 06/11/1885.
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do Amazonas, 25/11/1900.
Jornal
do Amazonas, 04/01/1885.
Amazonas,
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A
Província, 27/09/1885.
Amazonas,
23/09/1890.
Correio
do Purus, 30/05/1909.
O
Javary, 29/08/1916.
O
Pimpão, 20/08/1911.
DOCUMENTOS
OFICIAIS:
Estado
do Amazonas. Mensagem lida perante o Congresso dos srs.
Representantes por occcasião da Abertura da 2° Sessão ordinaria da
4° Legislatura pelo Exm. Sr. Dr. Governador do Estado Silverio José
Nery em 10 de julho de 1902.
Estado
do Amazonas. Mensagem do Governador Álvaro Botelho Maia á Assembléa
Legislativa, na abertura da sessão ordinaria, em 3 de Maio de 1936.
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