quarta-feira, 6 de março de 2019

Entrevista: Prof. Aguinaldo Nascimento Figueiredo


Aguinaldo Nascimento Figueiredo nasceu em Manaus, Amazonas, em 1958. Filho do bairro de Santa Luzia, na zona Sul da capital, ingressou na Marinha em 1976. Deixando a vida militar no início dos anos 1980, graduou-se em História na Universidade Federal do Amazonas em 2000. Há 26 anos é professor da rede pública de ensino. Publicava as colunas História do Amazonas e Museu do Conhecimento no jornal O Estado do Amazonas, o que lhe rendeu, em 2004, Votos de Aplauso no Senado Federal. Escreveu também para a Folha Comercial do Amazonas e a Revista Big Amazônia, totalizando 500 artigos publicados. Além da carreira docente, notabilizou-se pelas pesquisas históricas que deram origem aos seguintes trabalhos: História do Amazonas (2000, 7 edições); Santa Luzia: História e Memória do Povo do Emboca (2008); Os Samurais das Selvas: A Presença Japonesa do Amazonas (2012); e o mais recente e já esgotado, História e Memória do Bairro do Manôa (2019). Foi eleito, em 2016, membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA).



- De militar da Marinha a historiador consagrado no Estado do Amazonas. Como foi essa transição de carreira?

- o ingresso na vida militar foi ditado por vários fatores. Naquele tempo, ainda adolescente, não via muito vislumbre em seguir algum projeto consistente na vida não. Estudava e era um bom aluno, principalmente em História. Mas, a vida em minha família era dura, todo mundo tinha que trabalhar para ajudar no sustento e eu nunca fui muito adepto de trabalho extenuante e sem o devido retorno pecuniário. Eu era um menino problemático, por conta das doenças típicas de infância, além de notória rebeldia com o autoritarismo como éramos tratados entre outros problemas. Havia em mim um supremo desejo de viver minha vida sozinho, conhecer outros lugares, sair de Manaus mesmo, dar minhas cabeçadas sem culpar ninguém. Foi quando li um folheto do Ministério da Marinha “um canto de sereia”, bem chamativo exaltando a vida militar na força naval como sendo a realização pessoal de qualquer jovem, junto com o apelo ao “patriotismo” em voga naquele momento do regime militar. Ademais não gostava da agressividade com que se dizia da vida militar no Exército, que para mim era coisa de “peão”. Entrei e fiquei por quase 6 anos, quando, depois de uma passagem para lá de polêmica, percebi que meu temperamento e meu futuro não era ser “Cabo Velho” de marinha e resolvi sair e voltar para Manaus. Mas, a paixão pela história está em mim desde que aprendi a ler, mesmo ainda não decidindo estudar História, fazer história e ter a História como fonte de vida e profissão.

- Na graduação ou mesmo antes dela sempre encontramos autores que nos inspiram na caminhada pela História. Quais foram seus referencias na graduação e quais são os seus atuais?

- Aprendi a ler antes de entrar na escola com ajuda da minha mãe que, apesar das precariedades da vida que levou, conhecia a cartilha do abc e sabia usá-la muito bem na alfabetização dos filhos e isso foi o suficiente para me ensinar (sempre debaixo de muita peia, risos). Eu lia muitos livros, li todas as enciclopédias: Barsa, Mirador e Britânica na casa do professor Zé. Meu primeiro livro ainda tenho em meu poder e chama-se “Rio Turbulento”, de Balthazar de Godoy, que conta a história da fundação da cidade Cuiabá, editado em 1968. Tenho outros exemplares dos clássicos de Isaque Asimov, Karl Segan e uma vasta coleção de tantos escritores que não dá para nominar.  

- Sua monografia foi sobre as origens do PTB em Manaus, um trabalho voltado para a História Política. Dentre as inúmeras vertentes da História, quais são as que mais chamam sua atenção?

- Leio todas vertentes e vejo quais se adequam ao meu pensamento dentro da História. Adotei a vertente do memorialismo por ser esta uma linha que dá condições de a história valorizar o homem antropológico mesmo. As pessoas, indistintamente, têm suas histórias e, algumas delas, têm certa relevância no contexto social e politico de determinadas comunidades, que são importantes e que representam a essência do convívio fraterno, da solidariedade e do fazer social ao seu jeito, arcabouço cultural que merece ser sim resgatado para a posteridade e essa é minha proposta. Da Macro História já tem muita gente se incumbindo de fazer e muito bem.

- Do final dos anos 90, período em que se formou em História, aos dias de hoje, o que o senhor acredita que mudou na relação do grande público com os historiadores e a História? 

- aqui no Amazonas, especificamente, apesar do crescimento demográfico ostensivo, principalmente na cidade de Manaus, o interesse pelo estudo e conhecimento da história, até mesmo a história local, foi muito tímido, apenas alguma camada social mais aquinhoada se interessa em conhecer mesmo nossas origens, nossas raízes e nossa cultura, mas apenas de forma dilatante, não se importando mesmo com as mudanças que o conhecimento histórico pode representar como mudanças de hábitos e valores locais, como sentimento de apetecimento para com a cidade e seu patrimônio histórico ou mesmo saber que temos uma história de milênios de sabedoria e experiências fantásticas de como respeitar a natureza, o mundo e outros valores caros à humanidade.  Não há interesse em se aprofundar nos melhores temas porque as modernas mídias se apressaram em fazer conclusões equivocadas e tudo pode ser imediatamente explicado pelos aparelhos, mesmo com imediatismos e inexatidão das informações.

- O senhor nutre um sentimento de amor pelos lugares por onde passa. Primeiro o bairro de Santa Luzia, onde passou a infância e a adolescência, vivência essa que resultou no livro 'Santa Luzia: História e Memória do povo do Emboca (2008), agora, na fase adulta, o bairro Manoa, bairro sobre o qual versa seu mais novo trabalho, 'História do bairro Manoa (2019). Esse é um sentimento que se explica ou que apenas se sente?

- Eu tenho verdadeira paixão pela História, portanto não precisa dizer que isso não tem explicação (risos). Ou sente amor por ela e faz o que deve ser feito (e bom) ou apenas cumpre a tabela acadêmica. Triste de quem se incumbe em fazer história por fazer, para ganhar títulos e não percebe que no trabalho e no viver histórico tem que ter uma paixão, um apego pelos fatos passados como instrumento de visão, de horizonte que se descortina adiante e você se vislumbra como um profeta. A história é um mergulho profundo no passado como se você estivesse rodando um videoteipe da vida e você, ao seu modo, tentando mudá-la ou estar mesmo dentro dela.

- As zonas Norte e Leste ainda são carentes de uma 'historiografia' sobre suas origens.  Você enxerga seu livro como um trabalho pioneiro?

- Bom, embora interessado no assunto quanto a essas áreas de Manaus, já fiz até alguns levantamentos sobre esses aspectos e escrevi algo no “Atlas Geográfico e Histórico de Manaus” que também está pronto e a espera de patrocínio (não sei quando vai sair). Aliás, já haviam me solicitado fazer esses trabalhos, mas por conta de limites de tempo, recursos e saúde, achei melhor deixar para outros pesquisadores fazerem-nos e darem início a esse processo. Quanto ao livro do Manoa, sinceramente, não sei se existe algum trabalho nesse sentido (não em forma de livro), então foi dado o início, outros poderão completar ou fazer melhor, está tudo em aberto e tudo só deve vir para melhorar.


- Quais os desafios encontrados ao escrever a História de um bairro tão novo como o Manoa?

- Mesmo adepto da história presencial, admito que seja necessário um momento de maturação, deixar as coisas acontecerem e começar então a delimitação do trabalho, a coleta das fontes e, em se tratando de uma história memorialística, portanto fragmentada, dá-se ênfase a história das oralidades, dos relatos das pessoas envolvidas, que depois serão corroborados, se necessário, com as outras fontes. Entretanto, no meu caso, tanto o trabalho de Santa Luzia quanto esse atual (Manoa) o que mais atrapalha é a resistência das pessoas em dar seus depoimentos, em determinados casos nem mesmo querem lhe atender. Há uma desconfiança perene na seriedade desse tipo de trabalho por não terem exemplos confiáveis. Eles acham que serão comprometidos e expostos a algum constrangimento, o que não é verídico. Foi preciso recorrer mesmo a minha experiência e lembranças como morador e participe da própria história da comunidade. Como disse, essa indisposição com a história é cultural, nem mesmo participar dela algumas pessoas querem.

- Infelizmente, a História do Amazonas não faz mais parte da grade curricular do ensino básico do Amazonas. Como o senhor avalia essa situação? Quais os prejuízos para a atual e futuras gerações?

- Na verdade ela existe sim, mas bem precária, em forma de historinhas ou tênues referências quando se trata de identificar monumentos ou locais históricos. É claro que isso é muito ruim para a construção de uma identidade genuinamente amazônica. O resultado é essa aversão de participar até mesmo da história como protagonista. Sempre defendi a história regional como disciplina inicial nas escolas antes mesmo de saber das outras histórias, que são importantes, mas no contexto das crianças estão distantes de uma compressão global e conectá-los com o aqui. No ensino médio ela é ministrada inserida no contexto da História Globalizada, mas ainda muito confusa por falta de material disponível. Tenho livros que são usados na rede particular e até na rede pública, mas nunca me chamaram para fazer nenhuma palestra ou explanação sobre a dinâmica e a felicidade de se produzir um bom livro versando sobre a história da minha terra.

- Recentemente (2016) o senhor foi eleito membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), nossa instituição cultural mais antiga. Existe a possibilidade de se pleitear uma vaga na Academia Amazonense de Letras?

- Aliás, pertenci sim e com muito orgulho, as duas instituições culturais mais antigas do Amazonas: a Universidade do Amazonas (UFAM), herdeira da Universidade Livre de Manáos e agora no IGHA, o guardião da História e da Cultura do nosso Estado, pois são 102 anos preservando e difundindo essa herança cultural de nossa sociedade. Em relação à Academia de Letras, com certeza, qual intelectual que se preza não almejar esse sonho de chegar até o mais alto pedestal desse grande silogeu de cultura do nosso Estado. Ingressar na Academia Amazonense de Letras é o coroamento da vida de quem se dedicou a cultura do Amazonas, é ombrear-se com os mais dignitários homens de letras e das artes e essa é uma consagrada honraria que ainda me falta. Mas, não é proibido sonhar, quem sabe meus trabalhos sensibilizem nossos queridos imortais e estes vejam neles as qualidades suficientes para ser o meu passaporte para aquela casa de Adriano Jorge.

- O senhor sempre foi partidário de uma narrativa concisa produzida com uma linguagem acessível a todos os públicos, pois esse é um dos passos para a democratização do conhecimento. Em todos os seus livros, na introdução, faz questão de destacar esses pontos. Em sua opinião, o que ainda falta ser feito para a consolidação desse processo?

- Recentemente li um artigo de um professor de UFMG que critica o excesso de academicismo nos trabalhos universitários, onde o autor, às vezes, perde 60% do espaço que deveria expor seu projeto com citações e referências, muita das vezes sem nenhum contexto com o que está sendo exposto, puro “enchimento de linguiça” (assim mesmo ele se referiu). Esse apego formalista (necessário), mas abusivamente usando na produção historiográfica atual, prolixo e tautológico, até mesmo aqui no Amazonas, afasta o provável leitor, que quer saber de fato o que o autor quer dizer e, não sei se é para provar sapiência, erudição ou mesmo valorizar a obra do ponto de vista do volume e isso ruim se o trabalho for voltado para o conhecimento público. Mas, se for apenas para dar resposta a uma exigência formal da academia tudo bem.

- Como o senhor enxerga esse grande número de "historiadores" sem formação ou qualquer apreço mais técnico por teorias e metodologias no trato da escrita da História? Até que ponto isso oferece um risco à credibilidade dos profissionais da História?

- Infelizmente ainda temos essas situações, mas nem todas são deletérias ao processo de construção histórica, aliás, alguns desses pesquisadores “heurísticos”, mesmo sem formação acadêmica, já contribuíram para a continuação da pesquisa histórica e o fazer História, mais até do que muita gente titulada. Até porque tem muita gente se formando em história apenas para ter uma graduação e ir para as salas de aula e não se interessando na produção do conhecimento em si e acontece aquela situação: se o profissional não ocupa seu espaço, com certeza os “leigos” assim o farão. Pior ainda são os que não fazem e acham-se no direito de criticar por criticar que fez ou está fazendo, ás vezes até debochado de quem faz, por pura inveja ou incapacidade de reconhecer no colega a grandeza do esforço em contribuir, em valorizar e dignificar a história como objeto de produção de algum conhecimento. Do mesmo modo, existe muita exaltação de ícones históricos que não tem nada a ver com a história regional e muita valorização da titulação, que é bom, mas não como mecanismo de desprezo ou que desabone o trabalho de quem só quer ajudar.

- Por último, quais são seus projetos futuros?

- Tenho a audácia de dizer que tenho 20 livros de história escritos ou por concluir, alguns frutos de prêmios recebidos em concursos promovidos por respeitáveis entidades como FIEAM e que foram muito bem recepcionados pelos avaliadores e pelo público que a eles tiveram acesso. Esses trabalhos já deveria ter sido divulgados para o povo, aliás, quero deixar bem claro que não escrevo história para quem já sabe e sim para os que querem saber e participar também, meu projeto é a “História para o povo”. Mas falta incentivo oficial e a iniciativa privada só está interessada só no lucro e só publica se for autor for “medalhão” da área, se já tiver nome na “praça” porque é retorno garantido, mesmo não atentando para a qualidade do obra em determinadas situações. Vou ver se esse ano dou andamento nesses projetos, vai depender do tempo e da saúde, mas garanto que pelo menos a “História Sincera da Cidade de Manaus” vai sair até o fim do ano e vai brilhar como brilha nossa metrópole.

segunda-feira, 4 de março de 2019

Laborum Meta: O Cemitério de São João Batista, em Manaus

Arco de entrada do Cemitério de São João Batista. FOTO: Durango Duarte.

O Cemitério de São João Batista está localizado no bairro de Adrianópolis (antigo bairro do Mocó, Vila Municipal), na zona Centro-Sul de Manaus. Foi a quarta necrópole oficial (excetuando-se os cemitérios indígenas) aberta na cidade, antecedida pelas dos Remédios, São José e São Raimundo; e é a mais antiga em funcionamento, tendo sido Tombado, através do Decreto N° 11.198 de 14/06/1988, como Patrimônio Histórico Estadual. O terreno em que foi erguido, assim como todo o bairro, pertencia a família do Capitão de Mar e Guerra Nuno Alves Pereira de Mello Cardoso, tendo sido comprado pelo município em 1890 e 1903 (MENDONÇA, 2002).

No expediente de 3 de julho de 1890, do governo de Augusto Ximeno de Villeroy, a Intendência Municipal ficou autorizada a “[…] desapropriar o terreno escolhido e indicado e a fazer construir nele um cemiterio” (GOVERNO DO EXM. SR. DR. A. X. DE VILLEROY, EXPEDIENTE DO GOVERNO DO ESTADO DO AMAZONAS, DE 4 DE JULHO DE 1890 In AMAZONAS, 09/07/1890). A Intendência Municipal autorizou, em 19 de setembro de 1890, que o Intendente João Carlos Antony fizesse o orçamento das despesas para construção do novo cemitério, seu arruamento, destocamento e construção de uma cerca de arame farpado. Na sessão ordinária de 03 de março de 1891, “o sr. Intendente Antony communicou á Intendencia que o terreno destinado ao novo cemiterio acha-se todo destocado e prompta a respectiva cerca” (INTENDENCIA MUNICIPAL, Sessão Ordinaria de 03/03/1891).

Com as obras já bastante avançadas, o Governador Eduardo Gonçalves Ribeiro decretou o fim dos enterros nos cemitérios de São José e São Raimundo:

Decreto N° 95, de 2 de abril de 1891

Proíbe inumação nos cemitérios de S. José e S. Raimundo Nonato, manda que os enterramentos sejam feitos no novo cemitério e dá outras providências a respeito.

O Governador do Estado do Amazonas, tomando na devida consideração o que expuseram o Provedor da Santa Casa de Misericórdia e o Dr. Inspetor de Higiene Pública sobre o inconveniente de continuarem as inumações a ser feitas nos Cemitérios de S. José e S. Raimundo Nonato, por estarem cheios, e atendendo que o novo cemitério mandado preparar pela Intendência Municipal já está apto para receber enterramentos, decreta:

Art. 1° - Ficam absolutamente proibidos enterramentos nos cemitérios de S. José e S. Raimundo Nonato, passando a serem feitos no novo cemitério mandado preparar pela Intendência Municipal.

Art. 2° - Passam a ser administrados e mantidos pela mesma Intendência os cemitérios públicos, cessando in totum os encargos que com eles tinha e os proveitos que deles auferia a Santa Casa de Misericórdia.

Art. 3° - A Intendência manterá ou alterará, como julgar acertado, as tabelas dos rendimentos dos cemitérios, bem como a do pessoal neles empregados.

Art. 4° - Enquanto não for publicado novo regulamento para todos os cemitérios do Estado, será no da capital executado o de n° 11, de 26 de maio de 1859, nas partes que não estiverem explicita ou implicitamente revogadas por deliberações posteriores e nas que não o forem pela Intendência com relação à administração e preços da tabela.

Art. 5° - Revogam-se as disposições em contrário.

Palácio do Governo do Estado do Amazonas, em Manaus, 2 de abril de 1891, 3° da República.

Eduardo Gonçalves Ribeiro” (DECRETOS, LEIS E REGULAMENTOS. Administração Fileto Pires Ferreira, 1889 a 1896. Manáos, Imprensa Oficial, 1897. Tomo II – 1891, p. 105. Acervo da ACA).

Além da proibição dos enterramentos nos antigos cemitérios, é interessante notar o caráter secular da nova necrópole, sendo encerrada a administração da Santa Casa, que cuidava dos Cemitérios da cidade. Essa foi uma das mudanças ocorridas com a separação entre Estado e Igreja, promulgada pela Constituição de 1891, ficando estabelecido no artigo 72, § 5º, que “os cemitérios terão caráter secular e serão administrados pela autoridade municipal, ficando livre a todos os cultos religiosos a prática dos respectivos ritos em relação aos seus crentes, desde que não ofendam a moral pública e as leis” (CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA DOS ESTADOS UNIDOS DO BRASIL, DE 24 DE FEVEREIRO DE 1891). No entanto, como salientou a historiadora Adriana Gomes,

[…] na prática, os cemitérios ficaram mantidos sob o controle de particulares ou ordens confessionais, alguns com o caráter de monopólio. A ineficácia da secularização dos cemitérios forjou a liberdade assegurada aos crentes quanto a realização de seus cultos de acordo com a confissão religiosa profetizada” (GOMES, 2014, p. 5).

Isso ocorreu no novo cemitério, com a Prefeitura, ao longo dos anos, sedendo áreas para enterramentos exclusivos de membros de irmandades religiosas, destacando-se as da Santa Casa de Misericórdia (1891), Santíssimo Sacramento (1904) e Filhas de Sant’Anna (1913).

Terminadas as obras, o Cemitério foi inaugurado em 05 de abril de 1891. No dia 17 do mesmo mês recebeu aquele que é considerado o primeiro inumado, o poeta, político e historiador Aprígio Martins de Menezes, cujo túmulo encontra-se destacado da quadra em que está localizado. Deve-se salientar que, durante as pesquisas para a confecção do livro ‘Manaus entre o Passado e o Presente’, a equipe de Durango Martins Duarte encontrou o nome de uma criança chamada Maria como sendo a primeira enterrada, no dia 6 de abril de 1891 (DUARTE, 2009, p. 147). O aumento das rendas estaduais e municipais propiciado pelas atividades ligadas à borracha garantiu a construção e remodelação de um cemitério digno de uma cidade onde eram gerenciadas as atividades comerciais de importação e exportação. Ele fazia parte de um pacote de obras criado para dotar a capital de uma estrutura condizente com sua posição de grande centro comercial assumida em fins do século XIX.

Capela de São João Batista. FOTO: Fábio Augusto, 14.02.19.

O cemitério foi sofrendo transformações significativas até ser conhecido da forma como é nos dias de hoje. A cerca de arame farpado foi substituída por uma de pau a pique em 1900 por ordem do Superintendente Arthur Cezar Moreira de Araújo, bem como foi construída uma rampa de acesso pelo Boulevard Amazonas (Avenida Álvaro Botelho Maia) e um portão com saída para a Avenida Major Gabriel. Em 1901, através do projeto de Lei N° 233, foi concedido um jazigo perpétuo a Etelvina D’ Alencar (1884-1901), imigrante nordestina assassinada na Colônia Campos Salles (AMAZONAS, 10/07/1902, p. 97). Foi na administração do Superintendente Adolpho Guilherme de Miranda Lisboa (1902-1907) que foram realizadas as mudanças mais drásticas. Através da Lei N° 338, de 27 de maio de 1904, “Autoriza a Superintendência Municipal a reconstruir o cemitério de São João, desta cidade, e abre para esse fim o necessário crédito na Lei orçamentária em vigor” (LEI N° 233, DE 27 DE MAIO DE 1904 In: MENDONÇA, 2008, p. 148). Autorizado pela Lei N° 430, de 12 de dezembro de 1905, “manda proceder nesta necrópole a construção de muro com portões e gradil de ferro nas faces que limitam com o boulevard Amazonas e avenida Major Gabriel e no local do antigo necrotério uma Capela de estilo” (MENDONÇA, 2008, p. 142). O muro e os gradis ficaram prontos em 1905; a Capela de São João Batista, em 1906. No portão foi fixada uma frase em latim que dá o tom positivista ao cemitério: Laborum Meta, que significa fim dos trabalhos. A morte, nessa corrente filosófica, era vista como um processo que igualava os homens; e o Cemitério o espaço onde seria cultuada a memória desses homens. Exemplo disso são os grandes funerais de membros da elite política, intelectual e econômica local, noticiados na imprensa em forma de necrológios ou matérias especiais. Em 1913, o enterro de Agesilau Pereira da Silva (1846-1913), advogado e Presidente da Província do Amazonas entre 1877 e 1878, foi descrito da seguinte forma pelo Jornal do Comércio:

O enterro do illustre politico doutros tempos teve o cunho soberbo de uma apotheose consagradora, toda ella moldada na manifestação de um cultual sentimento affectivo, que bem significou as ultimas perolas de sua corôa de gloria. Dahi a innumeravel quantidade de representantes de todas as classes que, em romaria, lhe visitaram os despojos durante a noite de ante-hontem e o dia de hontem, e aquella intermina legião de amigos e admiradores que o acompanharam á ultima moradia e assistiram, com os olhos em lagrimas, descer o seu corpo ao seio da Grande Mãe” (JORNAL DO COMÉRCIO, 28/01/1913).

Entre 1911 e 1922, de acordo com o Relatório da Commisão Organizadora do Tombo dos Próprios do Município, organizado a mando do Prefeito Basílio Torreão Franco de Sá, foram feitos os seguintes reparos e obras: Pintura do gradil, dos portões de ferro e caiação dos muros, em 1911; a concessão, através da Lei N° 772, de 02 de outubro de 1913, de uma área para os enterramentos das irmãs de Sant’Anna; a reconstrução da capela e a construção de uma casa para a administração, em 1916; Limpeza geral, delimitação dos quarteirões com cercas de pitangueiras, levantamento das sepulturas perpétuas, identificadas com marcos de alvenaria, com as iniciais S.P., a numeração e a data de inumação em 1921; e a construção, em 1922, dos muros dos lados norte e oeste, “numa extensão de 588,70m; três sentinas, um grande mictório, um quarto para guardar ferramentas e materiais e um banheiro, terminando também a edificação do sumidouro, então apenas iniciada. Todas estas obras foram feitas com alvenaria de pedra e tijolo” (RELATÓRIO DA COMMISSÃO ORGANIZADORA DO TOMBO DOS PRÓPRIOS DO MUNICÍPIO, 1922).

Monumentos funerários do Cemitério de São José, localizados na quadra 04 do Cemitério de São João Batista. FOTO: Fábio Augusto, 14.02.19.

Em 11 de janeiro de 1926, a Prefeitura, na gestão de Hugo Carneiro, lançou um edital destinado aos interessados em transladar os restos mortais de seus familiares do antigo Cemitério de São José para o de São João Batista (DIÁRIO OFICIAL DO ESTADO DO AMAZONAS, 11/01/1926). No dia 18 de dezembro desse mesmo ano é publicado o edital de exumações. Foi construído, em 1932, um ossuário que guarda os restos mortais de 48 pessoas originalmente enterradas no Cemitério de São José e cujos restos não foram reclamados. Os monumentos funerários, enfileirados na quadra 04, foram transferidos no mesmo ano. No ano de 1928 a Prefeitura cede uma área do São João Batista, que ocupa as quadras 03, 04 e 05, para a construção do Cemitério Judeu, que passou a ser administrado pelo Comitê Israelita do Amazonas, criado em 1929. Até 1927 os enterros de judeus eram feitos em solo cristão (PONTE, 2013, p. 19).

Elaborei um pequeno roteiro destinado aqueles que desejam visitar o Cemitério de São João Batista. Ele é composto por 18 túmulos, pela quadra do Cemitério de São José e o Cemitério Judeu. Chamam a atenção pela arquitetura e pela história dos que neles estão inumados.

Roteiro – Cemitério de São João Batista:

Quadra 02: Eduardo Gonçalves Ribeiro (1862-1900), Joaquim Rocha dos Santos (1851-1905), José Jefferson Carpinteiro Péres (1932-2008); Quadra 04: Túmulos do Cemitério de São José; Quadra 05: Simplício Coelho de Rezende (1841-1915), Ária Paraense Ramos (1896-1915); Quadras 03, 04 e 05: Cemitério Judeu (1928); Quadra 06: Delmo Campelo Pereira (1933-1952), Joana Taveira da Cruz (1819-1911), Jazigo da família Nogueira da Silva e Aprígio Martins de Menezes (1844-1891); Quadra 07: Adriano Jorge (1879-1948), Jazigo da família de José Carneiro dos Santos; Quadra 08: Jazigo da família Salem José e escultura do cachorro Douglas, Gilberto Mestrinho de Medeiros Raposo (1928-2009), Álvaro Botelho Maia (1893-1969); Quadra 10: Leopoldo Tavares da Cunha Melo (1891-1962); Quadra 11: Santa Etelvina D’ Alencar (1884-1901), Shalom Emanuel Muyal (m. 1910); Quadra 13: Teresa Cristina (1964-1971).























Eduardo Gonçalves Ribeiro.























Joaquim Rocha dos Santos.
















José Jefferson Carpinteiro Péres.






















Simplício Coelho de Rezende.
























Ária Paraense Ramos.















Cemitério Judeu.

























Delmo Campelo Pereira.
























Joana Taveira da Cruz.
























Jazigo da família Nogueira da Silva.
























Aprígio Martins de Menezes.
























Adriano Jorge.























Jazigo da família de José Carneiro dos Santos.























Jazigo da família Salem José.



















Gilberto Mestrinho de Medeiros Raposo.















Álvaro Botelho Maia.
















Leopoldo Tavares da Cunha Melo.















Etelvina D' Alencar.























Shalom Emanuel Muyal.

























Teresa Cristina.








FONTES:

Governo do Exm. Sr. Dr. A. X. de Villeroy, Expediente do Governo do Estado do Amazonas, de 04 de julho de 1890 In: Amazonas, 09/07/1890.

Intendência Municipal, Sessão Ordinária de 03/03/1891.

Decretos, Leis e Regulamentos. Administração Fileto Pires Ferreira, 1889 a 1896. Manáos, Imprensa Oficial, 1897. Tomo II – 1891, p. 105. Acervo da ACA.

Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, de 24 de fevereiro de 1891. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao91.htm. Acesso em 03/03/2019.

AMAZONAS. Mensagem lida perante o Congresso dos Srs. Representantes por occasião da Abertura da 2° Sessão ordinaria da 4° Legislatura pelo Exm. Sr. Dr. Governador do Estado Silverio José Nery em 10 de julho de 1902.

Jornal do Comércio, 28/01/1913.

Relatório da Commisão Organizadora do Tombo dos Próprios do Município. Manaus, 1922.

Diário Oficial do Estado do Amazonas, 11/01/1926.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

DUARTE, Durango Martins. Manaus entre o Passado e o Presente. Manaus: Ed. Mídia Ponto Comm, 2009.

MENDONÇA, Roberto. Centenário da Vila Municipal. Manaus: Governo do Estado do Amazonas/Secretaria de Estado da Cultura, Turismo e Desporto. Série Memória, 6° Ed, N° 91, novembro de 2002.

____________________. Administração do Coronel Lisboa. Manaus: Edições Muiraquitã, 2008.

GOMES, Adriana. O processo de secularização do Brasil no limiar da República e a criminalização do espiritismo. Sacrilegens – Revista dos Alunos do Programa de Pós-Graduação em Ciência da Religião – UFJF, 2014.

PONTE, Maximiliano. Certas mulheres que vieram de longe: As “pobres mulheres” sepultadas no Cemitério São João Batista de Manaus. Boletim do Arquivo Histórico Judaico Brasileiro (AHJB), n° 48, agosto de 2013.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Instituto Durango Duarte.
Fábio Augusto