terça-feira, 5 de setembro de 2023

De Capitania de São José do Rio Negro à Província do Amazonas

 
Trecho da Lei n° 582 de 05 de Setembro de 1850. Fonte: Collecção das Leis do Império do Brasil de 1850. Tomo XI, parte I, p. 271. Acervo da Câmara dos Deputados.

No dia 05 de Setembro comemora-se a Elevação do Amazonas à categoria de Província. É a data maior do nosso estado. Para entendermos esse acontecimento é preciso compreender primeiro o processo de constituição política do Amazonas.

O embrião político do Estado do Amazonas foi a Capitania de São José do Rio Negro, criada pelo Império Português em 03 de março de 1755 e instalada oficialmente em 07 de maio de 1758. O historiador Arthur Cézar Ferreira Reis ensina que ela foi criada para dinamizar a administração da região Amazônica, facilitar a catequese dos indígenas e garantir a soberania portuguesa, pois as dimensões continentais do Estado do Maranhão e Grão-Pará, cuja administração estava centrada em São Luís e Belém, era um problema para a manutenção da autoridade nessa porção do território. Nada melhor do que a criação de uma nova unidade política (REIS, 1989, p. 119).

A Amazônia, é sempre bom lembrar, era um território autônomo que respondia diretamente à Portugal. Em 1621, durante a União Ibérica, foi criado o Estado do Maranhão e Grão-Pará, separado do Estado do Brasil, visando a defesa e a colonização da parte setentrional da América Portuguesa e o desenvolvimento da coleta das drogas do sertão. Em 1751, dada a ascensão metórica do Pará, o nome foi alterado para Estado do Grão-Pará e Maranhão e, em 1772, o Maranhão torna-se uma capitania independente, passando a existir o Estado do Grão-Pará e Rio Negro, com a Capitania de São José do Rio Negro subordinada à do Grão-Pará.

A Capitania de São José do Rio Negro foi crescendo lentamente, enfrentando dificuldades técnicas e financeiras, o baixo povoamento e a dependência política e econômica do Grão-Pará. No entanto, no final do século XVIII, entre 1788 e 1799, surgiu um fio de esperança em dias melhores. Nesse período assumiu seu governo o militar português Manuel da Gama Lobo d’Almada, responsável por introduzir uma série de melhoramentos. Em 1791 transferiu a capital de Barcelos para o Lugar da Barra (Manaus), por considerá-lo estratégico entre os rios Negro e Solimões, facilitando a defesa e o comércio. Construiu fábricas de panos e tecidos, padarias, cordoarias, olarias, açougues, engenhos e introduziu gado no Vale do Rio Branco (MONTEIRO, 1994, p. 51). Esses foram os anos mais prósperos da capitania.

“A inveja e o despeito, porém, preparavam um golpe fatal para a obra de Almada”, escreveu o historiador Agnello Bittencourt sobre as medidas tomadas pelo governo do Grão-Pará para conter a rápida ascensão do Rio Negro. Assustado com o crescimento da capitania e temendo a perda de seu cargo para Lobo d’Almada, o governador da Capitania do Grão-Pará, D. Francisco de Sousa Coutinho, com apoio de seu irmão, D. Rodrigo de Sousa Coutinho, ministro em Portugal, passa a perseguir Lobo d’Almada, determinando o retorno da capital para Barcelos, cortando as verbas para a capitania e o acusando de usurpar o erário. Com a honra ferida e anos de trabalho arruinados, Almada falece em 1799 (BITTENCOURT, 1985, p. 262-263; REIS, 1989, p. 146-148). O cenário era aterrador: “O Rio Negro ia atravessar um longo período de amarguras. As vilas e povoados principiaram a viver novamente dias miseráveis. A população diminuída, as lavouras e as indústrias entrariam a definhar. O censo de 1799 acusou 15.480 almas. Os cômputos anteriores assinalavam maior total” (REIS, 1989, p. 149).

De acordo com Agnello Bittencourt, por volta de 1820 já “fervilhavam nas intenções políticas da Capitania as ideias autonomistas”. Essas ideias, afirma Arthur Reis, foram bem recebidas pela população, que ansiava pela independência em relação ao Grão-Pará. A situação do Rio Negro a cada dia tornava-se insustentável, e pouco era feito pela autoridade instituída em Belém. Silves, Vila Nova da Rainha e Barcelos, em 1818, solicitaram à D. João VI a separação (BITTENCOURT, 1985, p. 263; REIS, 1989, p. 151). Em 1820 estoura em Portugal a Revolução Liberal do Porto, movimento que pedia o retorno de D. João VI e a recolonização do Brasil, desde 1815 elevado à condição de Reino Unido a Portugal e Algarves. Participaram dos trabalhos nas Cortes Gerais deputados favoráveis à emancipação da Capitania de São José do Rio Negro. Em 29 de Setembro de 1821 Dom João transformou as capitanias em províncias, com o Rio Negro subordinado ao Grão-Pará. Na Constituição Política da Monarquia Portuguesa consta o nome da Província do Pará e Rio Negro.

D. João deixou seu filho, D. Pedro, como Príncipe Regente. As Cortes exigiam o retorno do regente para poder recolonizar o território. Com apoio da elite brasileira, D. Pedro rompeu relações com Portugal e proclamou a Independência em 7 de Setembro de 1822. O Grão-Pará continuou fiel à antiga metrópole. Sabendo da resistência que encontraria em regiões com fortes laços econômicos, políticos e culturais com Portugal, o agora Imperador Dom Pedro I contratou, para impor a adesão ao Império, os militares Thomas John Cochrane e John Pascoe Grenfell, da Marinha Real Britânica, especialistas em processos de independência. Grenfell, sob comando de Cochrane, se dirigiu ao Grão-Pará. Chegou em Belém no dia 10 de agosto de 1823. Intimou o governo a aderir ao Império Brasileiro. No dia seguinte, receando um ataque à capital, a independência foi reconhecida, sendo o auto de juramento lavrado em 15 de agosto. A notícia da adesão foi chegando lentamente aos povoados e vilas, chegando ao Lugar da Barra (Manaus) em 09 de novembro.

A adesão à Independência ocorreu no Largo da Trincheira (Praça IX de Novembro), lugar simbólico onde localizavam-se a Fortaleza, a Igreja e o Cemitério, na manhã do dia 09 de novembro. A Câmara de Serpa instalou-se na Barra no dia 19, com o juramento de fidelidade à D. Pedro I realizado na manhã do dia 22. No dia seguinte foi eleita uma Junta Governativa formada por Bonifácio João de Azevedo, Raymundo Barroso de Bastos, Plácido Moreira de Carvalho, Luiz Ferreira da Cunha e João da Silva Cunha. Os dirigentes do Amazonas esperavam que a adesão trouxesse a tão sonhada autonomia (REIS, 1989, p. 156).

Conforme André Roberto de Arruda Machado, no projeto da Constituição para o Império do Brasil o Rio Negro constava como uma de suas províncias (MACHADO, 2006, p. 48). Arthur Reis, comentando a carta magna outorgada em 1824, registrou que “O Rio Negro, naturalmente, estava incluído. Apesar da clareza do texto da lei magna, logo a seguir, marcando o governo o número de deputados ao Parlamento que convocou e nomeando os presidentes para as Províncias, não incluía o Amazonas, considerando-o, tacitamente, uma dependência do Pará” (REIS, 1989, p. 157). Para Agnello Bittencourt, a Independência de 1822 “[…] não ergue da oppressão a Capitania do Rio Negro […] provocando tal situação várias explosões de ânimo” (BITTENCOURT, 1985, p. 264). Mesmo “feridos”, os amazonenses juraram fidelidade à Constituição Imperial em 1825.

Entre as décadas de 1820 e 1840 foram apresentados diferentes projetos pela emancipação do Rio Negro. Políticos paraenses como João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha – que foi o primeiro presidente da província do Amazonas – Frei José dos Inocentes e D. Romualdo Antônio Seixas foram as principais vozes favoráveis à transformação do Amazonas em unidade política independente, argumentando que o governo paraense, dada a extensão continental do território, não conseguiria dar a devida atenção à região, que tinha um enorme potencial econômico. Os políticos contrários afirmavam que o Amazonas possuía uma população rarefeita, carência de mão de obra especializada, rendas públicas e produção insignificantes (FREITAS, 2010).

O maior exemplo das “explosões de ânimo” foi o levante militar de 1832, ocorrido no Lugar da Barra (Manaus). Conforme pesquisa da historiadora Letícia Pereira Barriga, o movimento foi iniciado por praças de 1° e 2° linhas que reivindicavam o pagamento dos salários atrasados. Eles tomaram o Trem de Guerra, os armamentos e as munições, assassinando o comandante militar do Rio Negro, coronel Joaquim Filipe dos Reis. “De levante militar por insatisfação de pagamentos atrasados”, registra Barriga, “o movimento ampliou-se e assumiu um caráter separatista”. Em 22 de junho os revoltosos proclamam a Província do Rio Negro (BARRIGA, 2015, p. 02). O levante, em poucos meses, foi sufocado por tropas militares vindas de Belém, que ocuparam o Lugar da Barra em 12 de agosto, pondo fim à província (LOUREIRO, 1989, p. 14). O Código do Processo Criminal, promulgado pela Regência em 1832, transformou o Rio Negro em Comarca do Alto Amazonas, uma das três que compunham a Província do Pará, formada pelos municípios de Tefé, Luseia, Mariuá (Barcelos) e Manaus, este último elevado à vila (BITTENCOURT, 1985, p. 264; LOUREIRO, 1989, p. 14).

A criação da província vai ser postergada por várias décadas. A situação vai mudar quando, a partir da segunda metade do século XIX, a soberania sobre a Amazônia tornou-se uma questão de primeira ordem, pois era grande o interesse de outras nações sobre as riquezas da região. Para evitar futuras ameaças estrangeiras – sobretudo da Inglaterra, a potência industrial e política da época – e assegurar a soberania sob esse vasto território, o Império acelerou o processo de criação da Província do Amazonas (LOUREIRO, 1989, p. 16). André Luiz dos Santos Freitas afirma que é provável que a Cabanagem (1835-1840) tenha exercido influência sobre a criação da província, pois o estabelecimento de uma nova autoridade poderia evitar revoltas semelhantes (FREITAS, 2010). O deputado paraense João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha apresentou uma indicação em 1844: “Indico que se dirija á Assembléa Geral uma representação para que a Comarca do Alto Amazonas seja elevada à cathegoria de Província. Pará, 7-11-1844” (BITTENCOURT, 1985, p. 271). 

Seis anos depois, o Imperador Dom Pedro II homologou a Lei n° 582 de 5 de Setembro de 1850, elevando a Comarca do Alto Amazonas à categoria de Província do Amazonas, tendo como capital a Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, atual Manaus. Seu primeiro presidente foi João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, nomeado por Carta Imperial de 07 de junho de 1851. Fábio Augusto de Carvalho Pedrosa registra que a instalação ocorreu somente em 01 de Janeiro de 1852. Ela teve lugar em um sobrado localizado entre as ruas Oriental (posteriormente rua da Instalação), Frei José dos Inocentes e Henrique Antony, que funcionava como a Casa da Câmara Municipal. Estiveram presentes autoridades civis, militares e eclesiásticas, bem como grande número de populares. A população da cidade era estimada em pouco mais de 4.000 habitantes (PEDROSA, 2021).

A criação da Província do Amazonas, um sonho antigo dos tempos da Capitania, representou a autonomia dos amazonenses, que agora poderiam crescer sem depender do controle, muitas vezes autoritário, do governo paraense e suas elites; e a garantia da soberania do Império Brasileiro em terras distantes e quase esquecidas, mas tão cobiçadas por outras nações. O 5 de Setembro é uma data que fala sobre a identidade do amazonense.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

BITTENCOURT, Agnello. Corografia do Estado do Amazonas. Manaus: ACA – Fundo Editorial, 1985. [original de 1925].

BARRIGA, Letícia Pereira. Espírito de revolta e separação – o Rio Negro e sua luta por uma nova província na primeira metade do XIX. XVIII Simpósio Nacional de História – Lugares dos Historiadores: velhos e novos desafios, 27-31 jul. 2015.

FREITAS, André Luiz dos Santos. O Gigante Abatido: O Longo Processo de Constituição da Província do Amazonas (1821-1850). Dissertação (Mestrado em História), PUC-SP, 2010.

LOUREIRO, Antonio José Souto. O Amazonas na Época Imperial. Manaus: T. Loureiro, 1989.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fundação de Manaus. 3° ed. Manaus: Editora Metro Cúbico, 1994.

MACHADO, André Roberto de Arruda. A quebra da mola real das sociedades: a crise política do Antigo Regime português na província do Grão-Pará (1821-1825). Tese (Doutorado em História). USP, 2006.

PEDROSA, Fábio Augusto de Carvalho. A antiga Casa da Câmara Municipal e a Instalação da Província do Amazonas. Blog História Inteligente, 04/09/2023. Disponível em: https://historiainte.blogspot.com/2021/09/a-antiga-casa-da-camara-municipal-e.html fbclid=IwAR3qUcvV7Ixt0Bu_mUKXQkqYzHdlNQE2NEHZCZlfKcFzCqvoAMRq4HTAS_k

quarta-feira, 9 de agosto de 2023

"Imitadores do belo sexo": travestis na Manaus da Belle Époque

Darwin, o travesti mais famoso do Brasil no início do século XX. Em 1916 realizou algumas apresentações em Manaus. Fonte: Revista de Theatro e Sport, RJ, 26/08/1916.

Travesti, de acordo com a empresa de consultoria em diversidade Transcendemos, “é uma pessoa que foi designada homem no seu nascimento, mas se entende como uma figura feminina”. Por muito tempo a palavra, de maneira pejorativa e transfóbica, esteve associada à prostituição (TRANSCENDEMOS, s. d.). Com o avanço da luta de grupos LGBTQIAPN+, ele vem sendo ressignificado como uma forma de resistência. O Brasil é o país que mais mata pessoas trans no mundo. Em 2022, conforme levantamento da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), foram assassinadas 131 pessoas trans, mas é possível que o número seja ainda maior dada a sub notificação. Escrevi esse texto buscando compreender como elas eram vistas e viviam na Manaus do início do século XX, período marcado por um turbilhão de transformações.

Por muito tempo a homossexualidade e a travestilidade foram analisados apenas do ponto de vista religioso, entendidos como pecados que atentavam contra a obra do criador. A partir da segunda metade do século XIX, tornaram-se objetos de estudo da medicina, que as definiu como “distúrbio, anomalia, carecendo de cura, correção” (MOREIRA, 2012, p. 263). O professor Adailson Moreira, em estudo sobre a homossexualidade no Brasil do século XIX, registra que “As práticas sexuais passaram dos domínios da religião para os da ciência, com sua postura higienista” (MOREIRA, 2012, p. 256). Naquele contexto de transformações políticas, econômicas e urbanas, os “desvios” deveriam ser combatidos em nome de uma sociedade sadia, burguesa e heteronormativa.

Uma das primeiras apresentações de transformistas em Manaus ocorreu em 1899. Em 18 de janeiro daquele ano os jornais Commercio do Amazonas A Federação noticiaram que se apresentaria brevemente no Teatro Amazonas o transformista português José Minuto, discípulo do artista italiano Leopoldo Fregoli (1867-1936). O espetáculo ocorreu no dia 23 de janeiro. Dentre os inúmeros personagens, Minuto interpretou mulheres. Os dois periódicos publicaram críticas diferentes entre si. O Commercio do Amazonas informou que a presença de público foi pequena e que o transformista “representou muito correctamente, colhendo enthusiasticos applausos” (COMMERCIO DO AMAZONAS, 26/01/1899, p. 02). A Federação afirmou que o público manauara desconhecia o gênero apresentado, estando bastante ansiosa para vê-lo. Em tom de lamento, registrou que a apresentação ficou muito abaixo do esperado: “Minuto, porém, pelo que ante-hontem tivemos occasião de ver, não merece quanto delle por ahi se apregôa” (A FEDERAÇÃO, 25/01/1899, p. 01).

O Carnaval era uma época propícia para a inversão dos sexos sem medo da repressão policial, pois tratava-se apenas de uma “brincadeira”. Em uma sociedade que reprimia com violência o diferente, era o momento perfeito para se libertar das amarras. O jornal Correio do Norte, em crônica sobre as festividades de 1906 em Manaus, registrou a presença de um travesti em um carro alegórico que passava pela avenida Eduardo Ribeiro: “Um máscara, em trajes femininos, saltou em terra. Trajava um vestido liso, de cor escura, e sobre elle um bello avental de tiras bordadas, sombreadas de azul. Um lenço de seda branco, dobrado em diagonal, occultava-lhe os cabellos, - systema usado pelas criadas estrangeiras” (CORREIO DO NORTE, 15/04/1906, p. 01).

Na edição de 08 de novembro de 1916, o Jornal do Commercio, na seção Diversões, anunciou que na próxima semana estrearia, no Cine Polytheama, a “troupe de variedades” dirigida por Alfredo Albuquerque. Uma de suas atrações era Darwin, famoso “imitador do bello sexo” (JORNAL DO COMMERCIO, 08/11/1916, p. 01). No dia 11 o periódico voltaria a divulgar o evento, descrevendo Darwin como “notavel imitador do bello sexo”, dono de um “lindíssimo guarda-roupa” (JORNAL DO COMMERCIO, 11/11/1916, p. 04). As expectativas para sua apresentação eram grandes, pois àquela altura ele era considerado o melhor travesti do país. Um dia antes do acontecimento, o JC publicou que “O celebre e admiravel artista Darwin, o mais perfeito e luxuoso imitador do bello sexo, estreará, amanhã, no palco desse theatro” (JORNAL DO COMMERCIO, 17/11/1916, p. 01). No dia 18 ele publicou um anúncio com a foto do artista:

Colossal e estrondoso sucesso com a grandiosa estréa do celebre artista de fama mundial DARWIN o mais perfeito e admiravel imitador do bello sexo, com um repertorio de primeira ordem e luxuosissimo guarda roupa. DARWIN é simplesmente admirável! NÃO TEM RIVAL!! Números novos todas as noites!

E’ de tal ordem a perfeição do trabalho de DARWIN que um jornal da Capital Federal termina assim um dos seus elogios ao grande artista: “E’ o caso de perguntar-se: Darwin será realmente um homem imitando a mulher em scena ou será uma mulher fazendo-se passar por homem fora do palco?” (JORNAL DO COMMERCIO, 18/11/1916, p. 04).

Por que utilizo o artigo 'o' e não 'a' travesti? O utilizo levando em conta a trajetória de Darwin e a forma como se identificava. Nas entrevistas que deu a jornais do Rio de Janeiro, onde realizou suas principais apresentações, nunca se identificou com o gênero feminino. Dizia sempre estar feliz com o seu sexo, apesar das especulações, como registrou o Jornal do Brasil (KOCH, 2022).

No dia 20 Darwin participou de um espetáculo em homenagem à colônia italiana da cidade. No dia seguinte o JC escreveu que ele se apresentaria novamente no palco do Polytheama, e que estava obtendo “ruidoso sucesso” (JORNAL DO COMMERCIO, 21/11/1916, p. 01). Ele fez novas apresentações nos dias seguintes, como consta em anúncio de 24 de novembro de 1916: “Darwin. O celebre e inexcedivel imitador do bello sexo em novos e deslumbrantes numeros do seu encantador repertorio” (JORNAL DO COMMERCIO, 24/11/1916, p. 04). A apresentação do dia 24 foi a última referência encontrada sobre sua passagem por Manaus. De acordo com as publicações do Jornal do Commercio, ele foi bastante aclamado pelos espectadores, dando provas do estrondoso sucesso que vinha fazendo no Sul do país e na Europa.

Anúncio da apresentação de Darwin no Cine Polytheama. Fonte: Jornal do Commercio, Manaus, 18/11/1916.

Entre 1919 e 1928 foram exibidos no Cine Polytheama filmes protagonizados pelo transformista estadunidense Julian Eltinge (1881-1941): o drama A Tentadora Condessa, um deleite “Para os que apreciam o transformismo, que, quando feito com esmero é uma verdadeira arte” (JORNAL DO COMMERCIO, 03/09/1919, p. 04); Madame Carfax, “na qual aquelle habil transformista americano tem uma extraordinaria creação no sexo opposto” (JORNAL DO COMMERCIO, 01/01/1920, p. 04); e Madame Charlston, descrito como “Uma encantadora história de amor” (JORNAL DO COMMERCIO, 31/10/1928, p. 04).

Julian Eltinge (1881-1941), protagonista de filmes exibidos em Manaus entre 1919 e 1928. Fonte: memoriascinematograficas.com.br.

A travestilidade, deve-se destacar, só era tolerada a nível artístico, em cinemas, teatros e boates. O historiador Wellington do Rosário de Oliveira, em estudo sobre travestilidade e gênero, afirma que “O problema é que a tensão aumentava à medida em que esses indivíduos deixavam esses espaços para se tornarem figuras públicas. Com isso, coube à polícia intervir e a imprensa remediar com o intuito de “limpar a cidade” contra os “maus costumes” (OLIVEIRA, 2021, p. 85). Fora dos palcos, os travestis e homens afeminados eram sistematicamente perseguidos e criticados respectivamente. Na seção de moda do Jornal do Commercio de Manaus, foi publicado em 1926 um artigo sobre as roupas femininas e masculinas. O autor criticou com bastante veemência a aparência dos novos chapéus masculinos, afirmando que eles estavam parecidos com os das mulheres: “O que se dá com os vestidos acontece com os chapéos, sendo mais notavel o facto de querer o sexo barbado tambem adoptar o systema ridículo para imitar as mulheres” (JORNAL DO COMMERCIO, 16/05/1926, p. 06).

No Código Penal Brasileiro de 1890, promulgado em 11 de outubro pelo presidente Marechal Deodoro da Fonseca, foi determinado no artigo 379 do sétimo capítulo, intitulado Do uso de nome supposto, titulos indevidos e outros disfarces, que “Disfarçar o sexo, tomando trajos improprios do seu, e trazel-os publicamente para enganar” (DECRETO N° 847, 11/10/1890) era crime, punível com prisão de 15 a 60 dias.

Os jornais atuavam como órgãos defensores do saneamento moral da sociedade, apresentando às autoridades soluções para acabar com as “classes perigosas” (pobres, doentes, prostitutas, negros, homossexuais). A Marreta considerava, em 1912, que “Os invertidos de Manáos são de indole perversa, corruptos de natureza, excessivos e bandidos”, e apresentava o isolamento como resposta: “Pode-se arranjar uma ilha, e nella colocar os invertidos, obrigando-os a trabalhos forçados” (A MARRETA, 03/11/1912, p. 01). Para O Chicote, em 1913, a homossexualidade era um vício cujo crescimento estava desenfreado na cidade. Ela “desce do alto, arrasta na onda a infância inexperiente e atira para as esquinas dos cinemas e sombras propicias dos jardins publicos as figuras amarellentas e repulsivas dos “brizas”. Em tom de apelo, afirmou que era necessário bani-los da cidade, uma “urbs” aquatica para uns e Sodoma e Gomorrha para outros” (O CHICOTE, 02/08/1913, p. 01).

Travestis como Darwin, que encantou os palcos brasileiros e manauaras no início do século XX, só eram “aceitos” enquanto objetos de curiosidade e divertimento. A partir do momento que quiseram viver livremente, deixar suas marcas do mundo e desenvolver suas próprias sociabilidades, passaram a ser vistos como uma ameaça, um mal a ser debelado a qualquer custo. Quantas mudanças em mais de um século. Em 2017 foi fundada em Manaus a Associação de Travestis, Transexuais e Transgêneros do Estado do Amazonas (ASSOTRAM), uma importante vitória fruto de décadas de lutas. Hoje travestis ocupam lugares de destaque na sociedade: realizam pesquisas nas universidades, militam em associações e fiscalizam o governo na câmara dos deputados federais.

FONTES:

Commercio do Amazonas, 26/01/1899.

A Federação, 25/01/1899.

Correio do Norte, 15/04/1906.

A Marreta, 03/11/1912.

O Chicote, 02/08/1913.

Jornal do Commercio, 08/11/1916.

Jornal do Commercio, 11/11/1916.

Jornal do Commercio, 17/11/1916.

Jornal do Commercio, 18/11/1916.

Jornal do Commercio, 21/11/1916.

Jornal do Commercio, 24/11/1916.

Jornal do Commercio, 03/09/1919.

Jornal do Commercio, 01/01/1920.

Jornal do Commercio, 16/05/1926.

Jornal do Commercio, 31/10/1928.

131 pessoas trans foram assassinadas no Brasil, aponta dossiê. Disponível em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2023/janeiro/131-pessoas-trans-perderam-a-vida-em-2022-no-brasil-aponta-dossie.

Decreto n° 847, de 11 de outubro de 1890. Disponível em: https://www2.camara.leg.br/legin/fed/decret/1824-1899/decreto-847-11-outubro-1890-503086-publicacaooriginal-1-pe.html.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MOREIRA, A. S. A homossexualidade no Brasil no século XIX. Bagoas: Revistas de Estudos Gays, v. 6, p. 253-279, 2012.

OLIVEIRA, Wellington do Rosário de. Travestismo, gênero e arte do disfarce: uma análise das narrativas periódicas sobre sujeitos em travesti no Rio de Janeiro (1912-1927). Revista Semina, Passo Fundo, vol. 20, n. 3, p. 75-00, set-dez 2021. Semestral.

O que é uma pessoa travesti? Disponível em: https://transcendemos.com.br/transcendemosexplica/trans/.

KOCH, Jandiro. Darwin: "imitador do belo sexo" transita pelos teatros brasileiros. Grafia Drag, 07/02/2022. Disponível em: https://www.ufrgs.br/grafiadrag/tag/darwin/

sexta-feira, 21 de julho de 2023

Entrevista: Professor Dr. Bruno Miranda Braga

Bruno Miranda Braga nasceu em Manaus, Amazonas. Historiador e geógrafo, tem graduação em História pelo Centro Universitário do Norte (Uninorte) e Geografia pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA), com especializações em Gestão e Produção Cultural pela UEA e Estudos Amazônicos pela Universidade de Brasília (UnB), mestrado em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM) e doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Foi professor substituto na graduação em História da UFAM e pesquisador no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand, o MASP, no Projeto MASP Pesquisa. Atualmente é membro do Núcleo de Estudos em História Social da Cidade – NEHSC, da PUC-SP, e do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), ocupando a cadeira n° 38, cujo patrono é o etnólogo alemão Karl von den Steinen.

Primeiramente, muito obrigado por ter aceitado o convite para conceder essa entrevista, que faz parte de um projeto de conversas com historiadores amazonenses. Para iniciarmos, que tal você falar um pouco sobre sua origem e família?

Eu que agradeço o convite, Fábio. Então, eu sou manauara, filho de uma parintinense (por isso meu amor pelo Caprichoso, risos) e um manauara. Bem, minha mãe Sônia Miranda é professora de educação básica, foi por anos alfabetizadora e mais tarde graduou-se em Letras Língua e Literaturas Portuguesa e Espanhola. Hoje não exerce mais o magistério. Já meu pai, Valmir Braga, é funcionário público aposentado, foi industriário boa parte da vida, depois foi funcionário público do estado até se aposentar. Eu sou o filho caçula dos dois. Desde cedo quis ser professor, demorei a decidir as áreas da Licenciatura que queria, mas durante meus tempos de Ensino Médio, cursado no IEA, a opção pela História e pela Geografia se confirmou. Sempre friso que não era História ou Geografia, porém História e Geografia, e assim o fiz!

A escolha das carreiras de docente e pesquisador foi uma influência familiar, já que sua mãe foi professora?

É inegável que a escolha pelo magistério teve sim profunda ligação com mamãe que é professora. Reitero que desde muito cedo, ainda criança, escolhi o magistério como mister, motivado por minha mãe. Já a questão da pesquisa foi algo que surgiu ao longo da minha graduação em história. Quando adentrei a universidade meu desejo era me formar professor. Como todo calouro, não sabia o que era “ser/ter” lato sensu, strictu sensu, menos ainda como proceder em pesquisa. Ao final da graduação já após ter feito pesquisa para minha monografia, a pesquisa foi paulatinamente tomando vez em minha vida e carreira.

O vestibular é um dos momentos mais tensos na vida dos jovens, que enfrentam pressões da família e da sociedade. Muitos ainda não fazem ideia de qual área escolher. Como você encarou esse processo?

Comigo o mais difícil foi definir a aérea da Licenciatura. Já sabia que queria ser professor só não sabia de que: pensei em Pedagogia, Letras, Artes. Mas sempre na habilitação para o magistério. Sempre costumo dizer para os vestibulandos que o que mais importa é a sua realização e a sua inserção e seu gosto. Não adianta o aluno querer cursar Direito se não gosta de História ou de Ciências Políticas, ou querer cursar Medicina se não gosta de Biologia ou Anatomia. Então sempre destaco que o aluno deve considerar isso, o Ensino Médio em nosso país foi pensado para isso também, de apresentar um leque de ciências que no universo acadêmico são presença constante. Vale sempre a pena considerar suas vontades e gostos, até mesmo para no futuro não se frustrar com tanta matemática ou com tanta história na grade de seu curso. Uma dica que vale muito é verificar as grades curriculares, eu mesmo fiz isso, e dizia a meus colegas “meu curso não pode ter Matemática ou Química ou Física” que eram as temidas, por mim, exatas (risos). Então, vestibulando, veja as grades, se tem perfil para aquele métier, e considera muito sua vontade. Pois serão 4 ou 5 anos lendo, pesquisando e estudando aquela área. E se não for algo prazeroso acarretará sua eminente desistência.

A graduação é outro grande impacto. Nos deparamos com novos conhecimentos, novas abordagens, novas visões de mundo. Em outras palavras, somos praticamente desconstruídos. Conte-nos como foi o início de sua formação.

Interessante abrir um parêntese: como eu fiz duas graduações, cada uma teve um impacto diferente. Primeiramente cursei História. História de cara é um curso que a gente entra e pensa “mas cadê o Renascimento? Cadê a Segunda Guerra Mundial?” Aí vem Marc Bloch, Chartier, Boris Fausto e os autores/teóricos. Ai caímos por terra e vemos que a História por nós pensada é uma coisa, já a graduação é outra, aí começamos a aprender. Costumo dizer que sempre gostei de Teoria da História e Historiografia sem falar em História da Amazônia, tiveram assim disciplinas que foram para mim amadas, outras nem tanto (Medieval que o diga) mas de um todo a História nos impele a ser e ler mais! Creio que a leitura no Curso de História foi primordial para meu encantamento pela ciência. Adorava e ainda prezo muito em ler os textos, fazer comentários, enfim, sentir o texto. E isso fez e faz a História ser fascinante para mim. Durante a graduação foram muitos fichamentos, uns que dava raiva sim de ter de fazê-los, mas foram fundamentais. O exercício do historiador começa na nossa graduação com os fichamentos.

E por falar em textos e fichamentos, quais autores foram marcantes nesse período?

Essa pergunta é difícil viu… Muitos textos nos marcam seja pela complexidade seja pela facilidade. Mas vou te citar os que ainda hoje são referências quase em tudo que produzo: Apologia da História ou Ofício de Historiador, de Marc Bloch. A nossa Bíblia. A veemência do autor nesse texto, o amor pela História é atemporal, o capítulo da crítica histórica é para mim uma lição eterna de como ler documentos; A invenção do cotidiano I: artes de fazer, de Michel de Certeau. Tive uma dificuldade enorme em entender esse autor, mas a teoria dos “usos e práticas” me seduziu de uma maneira única, quando o autor fala em “resistência silenciosa” como sendo “mais perigosa que a barulhenta” me fez pensar que a história é sempre feita de lutas, mas que nem todos veem outros tipos de lutas e propostas de insurreições; Os fios de Ariadne: fortunas e hierarquias na Amazônia do século XIX – Patrícia Melo. O Capítulo intitulado “Bens e homens no mundo das águas” é para mim um dos maiores escritos sobre a história da Amazônia, me marcou muito, lembro que lemos na disciplina de Amazônia II, e dali em diante sabia que queria pesquisar o século XIX; A Ilusão do Fausto – Edinea Mascarenhas. Existem textos que não morrem. A Ilusão do Fausto é um deles. Obra revolucionária, quando li também em Amazônia II me confirmou a vontade de escrever algo sobre Manaus na Belle Époque, mas noutras perspectivas. Edinea nos brinda nesse texto de maneira ousada e comprometida.

Além dos célebres autores, é impossível passar pela academia sem ser marcado pelos professores e professoras, tanto positivamente quanto negativamente em alguns casos. Qual foram aqueles que você viu e pensou: quero ser assim quando crescer?

Sem dúvidas na graduação em História me marcaram os Drs. Arcangelo Ferreira e José Vicente Aguiar, ambos foram meus professores de História da Amazônia em diferentes temporalidades, e me ensinaram muito, sendo e fazendo. A Mestra Cristiane Manique foi quem me introduziu a Ciência histórica de fato. Foi minha professora de Introdução aos Estudos Históricos, Metodologia da História, Teoria da História e Laboratório do Ensino e da Pesquisa em História. Com ela em suas diferentes aulas aprendi o “grosso” da nossa ciência, como pesquisar e produzir a narrativa historiográfica, além do mais foi minha orientadora de Monografia histórica, marcando-me até o presente. Mestra Elisângela Maciel e Dra. Adriana Brito também me marcaram bastante. Mantenho ainda hoje boas relações com ambas se tornando amigas de profissão com muita cordialidade.

Você tem formação em História e Geografia, duas das principais ciências humanas, que mantém um diálogo bastante profundo. Como enxerga essa relação?

Penso que uma completa a outra e ambas completam a cultura e a sociabilidade. História se dedica aos homens no tempo, Geografia, os homens no espaço. Tempo e Espaço são indispensáveis para pensar as diferentes formas de ser/fazer da humanidade. São duas categorias presentes em qualquer pesquisa. Lembro que um dia num congresso sobre a História Indígena, a conferencista falou “assim como há uma história, há também uma geografia indígena”, parafraseando-a penso que para tudo há uma história e uma geografia, e isso concerne boa parte das ciências humanas e sociais que as duas disciplinas englobam. Sou suspeito pra falar de ambas, em minha formação as duas foram primaz para pensar e estruturar meu pensamento e vertente teórico-metodológico.

Até hoje você é lembrado por sua passagem como professor substituto na graduação em História da UFAM, tido como bastante atencioso aos alunos e com uma didática e domínio do conteúdo de dar inveja. Como foram as primeiras experiências como professor?

As minhas primeiras experiências como professor de história foram desafiantes e instigantes. Comecei ministrando aulas em um famoso curso preparatório para vestibular da cidade e ali, o domínio do conteúdo e da didática se tornam essenciais. Depois me tornei professor do Plano Nacional de Formação de Professores para a Educação Básica, o PARFOR da UEA, e surgiram mais desafios: o PARFOR nos ensina muito, a dinâmica, o ritmo da viagem para o Alto Rio Negro, Alto Solimões, Calha Média do Solimões já se torna um desafio, então saber que tinham pessoas me esperando fazia-me querer ser mais, ensinar sendo, como eu gosto de apontar. Na UFAM eu concretizei no meu período de substituto uma tentativa de tornar as “disciplinas pedagógicas e didáticas” interessante aos alunos, uma vez que o curso é uma Licenciatura e muitos, ainda hoje pouco apreciam as disciplinas da formação docente, mais um desafio, fazer os alunos se interessarem pelas disciplinas didáticas. O resultado foi muito bom. Então assim, ao longo da minha breve (até aqui) carreira eu procurei e procuro verificar maneiras de ensinar sendo, a partir daí vem o domínio do conteúdo, a dinâmica, mas o ponto primevo é a didática, é pensar algo que os alunos pensem “poxa quero fazer isso quando eu lecionar”. Meus primeiros anos foram desafiantes, mas com o sentimento de estar feliz fazendo aquilo que sempre quis.

Sua dissertação de mestrado, Manáos uma Aldeia que virou Paris: saberes e fazeres indígenas na Belle Époque Baré 1845-1910, defendida em 2016, hoje é uma referência para os estudos sobre a constituição do espaço urbano de Manaus e as tentativas de apagamento e a resistência dos 'excluídos da história'. Percebo que ela dialoga com premissas postuladas por Edinea Mascarenhas Dias em a A Ilusão do Fausto, mas você buscou ir além. Qual foi o caminho trilhado em sua produção?

Sem sombras de dúvidas o proposto pelo clássico da nossa historiografia A Ilusão do Fausto da professora Edinea foi leitura inspiradora para tal feito. É uma história bem peculiar: tudo iniciou antes mesmo de eu estar na Faculdade de História. Ainda aluno no IEA, um dia olhando a Eduardo Ribeiro, a Cúpula do Teatro Amazonas e todo seu entorno das janelas da minha sala pensei “como seria isso aqui tudo no século de sua criação? Como os indígenas viviam aqui?” E fiquei com aquela questão, lembro que comentei com o professor Laerte, ícone das humanas no IEA sobre e ele me indicou o texto da professora Edinea. Li sem entender muito, era um garoto de 16 anos. Me fascinaram as imagens do texto. Já na faculdade tudo foi definido. O caminho seria o mesmo que Edinea definiu: não negar o Fausto, mas destacar que ele não foi para todos, porém todos estavam naquele espaço/tempo: indígenas, negros, escravizados, prostitutas, mendigos, doentes… o foco foi destacar o elemento indígena, que era o mais visível e o que mais tentavam esconder, porém o que mais permanecia. E na guisa da Edinea mostrar que “pobres” na Belle Époque manauara, era um termo genérico: era pobre o trabalhador urbano, o indígena, o negro, a prostituta, o doente, o migrante nordestino, o seringueiro, tudo que contrariava o belo, era pobre. E desse termo genérico, disse “vou focar nos indígenas e nos seus saberes e fazeres”, em diante tudo fluiu e foi acontecendo, começaram a aparecer nas minhas fontes indígenas de diferentes grupos, realizando diferentes coisas na cidade: sendo batizados, fugindo das obras da Igreja Matriz, tomando banho no Igarapé de São Vicente, atirando flechas no Porto, vendendo doces e “encantamentos” no Mercado, etc. A cidade estava assim para o indígena como este estava para a cidade.

Anos mais tarde você ingressou no doutorado em História na PUC-SP. Sua tese de doutorado Chão de vidas, rios de memórias: histórias indígenas do Amazonas Imperial 1845-1888, defendida em 2022, é monumental. Nela você buscou compreender o cotidiano indígena do Amazonas na época imperial, desnudando aquela ideia tradicional do 'índio genérico', como se cada comunidade não tivesse suas especificidades. Conte-nos como foi sua produção.

Foi desafiadora ao máximo. Eu sempre disse a mim mesmo que quando fosse cursar doutoramento seria com o propósito de responder antes de tudo inquietações minhas. Quando escrevi o projeto de tese me propus a compor não uma história, mas diferentes histórias que se encontravam num elemento comum: esse elemento comum eram as populações indígenas. Era uma inquietação particular em desvendar como eram/estavam os mundos indígenas no Amazonas Provincial. Se até antes nos séculos XVII E XVIII grandes historiadores já haviam mostrados os xamanismos, as lideranças, as práticas de cura e o cotidiano de diferentes etnias, me perguntava “cadê esse povo no XIX? É consenso entre os historiadores do Brasil Imperial que a questão indígena para aquele século ainda é um campo em plena construção, é algo em andamento. Nisso me filiei plenamente na História Indígena que usa de certa “sensibilidade antropológica” como diz o mestre John Manuel Monteiro, e a História Cultural, e procurei na minha tese fazer uma História dos sentimentos e sensibilidades indígenas, dei ao indígena além da voz protagonista, a ação de sujeito histórico. Sempre ouvimos falar que “os índios eram os braços do Amazonas provincial”, que “eles dependiam da província” e inverti a lógica: era a província que dependia dos indígenas para tudo: eles eram os trabalhadores das obras públicas, os guias dos rios e matas seja dos naturalistas, seja das expedições demarcatórias do Império e da Província, eles que dominavam o conhecimento das ervas e fármacos da floresta, dos peixes e frutos bons, do manejo do solo e das estações sazonais dos rios do Amazonas. Nessa lógica procurei entender como os indígenas trabalhavam, estudavam, lideravam, dançavam e festejavam. Para o Brasil oitocentista como um todo se criou uma coisa que chamo de “discurso da aniquilação” que simplesmente sumiu com os povos indígenas no XIX, atrelando a eles o estigma de “ociosos, vagabundos e preguiçosos” simplesmente pelo fato de seus fazeres serem a outros modos. Então busquei nas fontes dizer “quem eram eles”, dar nomes, aí me apareceram macuxi, wapixana, baré, werekena, parintintim, sateré, tikuna, matsé, e uma gama de povos. Procurei mostrar como cada um agia e demonstrava suas organizações. E isso está na fonte. E não precisamos, como muitíssimo bem disse John Manuel Monteiro “forçar a mão” para escrever essa história. Eles, os povos indígenas, estão nas fontes, tudo é uma questão de perspectiva de leitura e construção da narrativa. Logo me “casei” numa portentosa união com a antropologia e fiz História Cultural Indígena mostrando sobretudo sua presença em todo o Amazonas do oitocentos.

Você se define como um Historiador Cultural. A palavra cultura tem um peso fortíssimo, pois é polissêmica, dando margem a diversas interpretações e gerando debates acalorados. No entanto, sabemos que a História Cultural é um campo historiográfico que nos apresenta inúmeras possibilidades. Foi essa variedade de temas que lhe atraiu?

Então o campo da cultura é polissêmico por “abraçar tudo” como dizem alguns colegas de outras vertentes da História. As inúmeras possibilidades da História Cultural tendem a complementar os vazios do Político, do Econômico e do Social. O que mais me atraiu na História Cultural foi sua amplitude teórico-metodológica. Diferente de suas “irmãs mais velhas” como diz o historiador inglês Peter Burke, a História Cultural parte de um exercício semântico da sensibilidade: o exercício da narrativa historiográfica não tende apenas a destacar nomes, valores, monumentos e esfinges, mas verificar cheiros, sabores, rostos. Isso me seduziu na História Cultural: a possibilidade de escrever história pelos ritmos, pelas danças, pelos sentidos dos rituais indígenas, pelos rostos desses… então o que mais me atraiu e continua atraindo é essa possibilidade quase como que uma encantriz de narrar a partir de coisas que não estão grafadas, mas estão nas fontes, especialmente nas fontes imagéticas, que gosto muito de utilizar.

No início de 2022 você foi eleito membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA), ocupando a cadeira n° 38 cujo patrono é o etnólogo alemão Karl von den Steinen, tomando posse hoje. Fizeram parte dessa instituição pesquisadores renomados como Arthur Cézar Ferreira Reis, Mário Ypiranga Monteiro e Agnello Bittencourt. Quais são suas expectativas ao adentrar nessa casa centenária e de que forma pretende contribuir para sua aproximação com a comunidade?

Primeiro quero destacar a alegria e honra que é tomar posse de uma cadeira nesse estimado espaço da cultura e da pesquisa da nossa cidade, a mais antiga instituição do gênero. O IGHA está presente em todos os meus textos, trabalhos e pesquisas. Seu acervo é um dos que mais utilizo desde a monografia da licenciatura. A cadeira que passarei a me assentar era a que sempre quis: Karl von den Steinen, proeminente etnógrafo alemão que em nosso país muito contribuiu para o conhecimento dos povos indígenas. Sem dúvidas é um desafio estar a posteriori dos nomes que você citou pela carga grandiosa que as pesquisas destes nos legaram. Ainda hoje é quase inconcebível findar um curso de História sem ter lido algo de Arthur Reis, de Mário Ypiranga. É difícil estudar Amazônia e não ter lido Agnello. Estar no local que eles estiveram um dia é se apropriar e gerar novidades, uma vez que eles em seus tempos nos brindaram com essas novidades. A expectativa é grande e auspiciosa, pretendo junto ao Instituto potencializar aquilo que temos e ser/fazer mais, considerar a longevidade do IGHA é apontar para as vindouras realizações do Silogeu. Espero que estando ali a comunidade acadêmica e interessada em nossa história avance, seja e faça mais. Temos tanto a pesquisar e apresentar ainda sobre nossa capital e nosso estado. Então a expectativa é de cada vez sermos mais.

Quais são seus planos futuros?

Então a pesquisa é algo que nunca para, atualmente eu estou como Especialista Visitante do CNPq num projeto educacional do Museu da Amazônia MUSA, e está sendo uma experiência muito boa. Meu plano maior é voltar ao magistério, que é minha realização maior, voltar também a “amores que deixei no caminho” por conta da tese, ou seja, finalizar umas pesquisas que ainda não findei. Colaborar com o engrandecimento do IGHA, que passará a ser minha eterna casa de pesquisa histórica. E esperar, uma das coisas que aprendi ao longo dessa minha breve trajetória até aqui, é saber esperar. Não somos nós que escolhemos a ciência, é ela que nos escolhe e acolhe. Então esperar o que a história reserva a mim (risos).

Para finalizarmos, você é um historiador jovem, mas com uma bagagem cultural e experiência imensos. Quais conselhos você dá para aqueles que almejam ser historiadores?

Leia, reserve um tempo pra você, e se atualize! Ser historiador é estar aberto a muitas possibilidades e não fechar portas. Invista em você e no seu crescimento, faça cursos, adquira livros, participe de congressos, ouse. Para mim ser historiador hoje é ousar, é saber a partir da leitura da palavra mundo, como ensinou Paulo Freire, o que dizer, o que narrar e como narrar. Ousando construímos narrativas novas, conhecemos problemas novos e concebemos metodologias novas, então ouse! Vão te criticar, vão, mas também irão te aplaudir e dizer “olha ela fez isso, ele trouxe isso…” Sempre digo que o bom historiador lê muito e nessa leitura ele constrói aliados. A importância da leitura em nosso mister é conhecer, então leia, mesmo àqueles autores/teóricos que por alguma razão tu não concordas, leia. Logo, o conselho é leia, conheça, ouse e faça! Seja a diferença e construa uma boa narrativa histórica. Não invente, não caia em sensacionalismos, o bom historiador foge disso, mas, faça um texto que ao lerem as pessoas aprendam.

sexta-feira, 12 de maio de 2023

Como escrever um TCC de História

Pintura de Albert Anker, 1908.

Um dos momentos mais marcantes na vida de um acadêmico, sem dúvidas, é a escrita do TCC (Trabalho de Conclusão de Curso), também conhecido como monografia. Não é para menos, pois sem ele você não consegue colar grau, pôr as mãos no tão sonhado diploma e nem exercer uma profissão. Nesse texto pretendo dar algumas dicas de como escrever um bom trabalho final de História.

O QUE É O TCC?

De acordo com algumas universidades, como a Universidade Federal do Amapá (UNIFAP) e a Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM), “O Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) é uma atividade acadêmica obrigatória que consiste na sistematização, registro e apresentação de conhecimentos culturais, científicos e técnicos, produzidos na área do Curso, como resultado do trabalho de pesquisa, investigação científica e extensão. O TCC tem por finalidade estimular a curiosidade e o espírito questionador do acadêmico, fundamentais para o desenvolvimento da ciência” (UFVJM, s. d.). Em síntese, no trabalho de conclusão de curso o acadêmico irá demonstrar, através de pesquisa, todos os conhecimentos adquiridos durante sua formação. Tudo o que aprendemos na graduação em História, como ler e analisar textos e documentos e pesquisar em arquivos, deve ser aplicado no TCC.

ESCOLHA E DELIMITAÇÃO DO TEMA

Os professores são unânimes nesse ponto: escolha um assunto que lhe agrade. Uma das piores coisas que se pode fazer é escrever sobre algo que você não gosta. Qualquer leitura, por mais simples que seja, se torna enfadonha quando o assunto abordado não nos interessa. Quantas disciplinas encaramos sem gostar, não é mesmo? Mas os créditos valem o sacrifício.

Ao entrar na graduação, preciso escolher logo de cara o assunto que vou abordar no TCC? Não, não se afobe. Temos, é claro, alguns casos de pessoas que já entram no curso decididas com o que vão trabalhar. Mas o mais comum é que a escolha vá se desenrolando ao longo dos períodos. E você tem todo o direito de mudar de opção. Ao entrar na graduação, tinha em mente falar sobre a história de Manaus. Escolhi falar sobre as origens de suas primeiras ruas. Ao ter contato com o livro História da Morte no Ocidente, de Philippe Ariès, optei por escrever sobre a proibição dos enterros nas igrejas e o surgimento dos cemitérios na capital. Exemplos de assuntos:

História da Igreja;

Historiografia;

História Política;

Questões de gênero;

História da Amazônia;

Na pesquisa histórica utilizamos dois tipos de recortes: espacial e cronológico. Eles servem para delimitar a pesquisa, pois é praticamente impossível darmos conta, por causa dos prazos, de abordar períodos muito longos. Imaginem só o trabalho hercúleo que seria falar sobre a História da Amazônia. É algo muito amplo que foge da nossa capacidade, pois são milhares e milhares de anos para serem analisados. Como solução, escolhemos dentro desse assunto um tema, estabelecendo limites. Ex: economia gomífera no Amazonas (1880-1920). E não precisa ser necessariamente um recorte de várias décadas, podendo ser analisados alguns poucos anos. Em meu TCC, Os mortos e suas moradas na terra dos Barés: o fim dos enterros nas igrejas e seus arredores e a construção do cemitério de São José, em Manaus (1848-1859), estudei um período de 11 anos, justificando o recorte por ter constatado que foi nessa época que surgiram os primeiros discursos contra os enterros tradicionais e quando foram construídos os primeiros cemitérios públicos da cidade.

O que um bom TCC de História precisa ter? Vejamos o que dizem alguns professores:

– "O objeto de investigação claro para o leitor e o recorte temporal"Profa. Dra. Keith Valéria de Oliveira Barbosa.

– "Um TCC precisa ter o objeto de pesquisa bem definido espacialmente e temporalmente. Isso já deve estar apresentado no título. Deve ter uma base teórica e metodológica que dialoguem, pois a escolha das fontes, a sua coleta e o seu tratamento precisarão estar fundamentadas"Profa. Dra. Kátia Cilene do Couto.

– "Um bom TCC de história precisa ter basicamente dois elementos: 1) uma leitura/revisão bibliográfica consistente, seja com quem você concorda ou discorda como autor; e 2) um plano de pesquisa bem elaborado, sejam as fontes primárias ou secundárias. Algo que defina ‘eu vou trabalhar com isso’!"Prof. Dr. Bruno Miranda Braga.

Escolhido o assunto e delimitado o tema, você deve se perguntar sobre a viabilidade da pesquisa. Tenho tempo? Qual sua relevância? Existem fontes e referências bibliográficas disponíveis? Se existirem, estão ao meu alcance (compra, troca e empréstimo de materiais e livros)? Esses são os principais pontos a serem avaliados antes do início do trabalho. Vejam abaixo algumas monografias de História publicadas nos últimos anos na UFAM:

Da Vida para a História: a crise de 1954 e a repercussão da morte de Vargas na imprensa manauara. Autora: Larissa Leite Colares. Ano: 2019.

Desde a época em que fazia curso preparatório a autora gostava de estudar a vida de Getúlio Vargas, principalmente a sua morte. Já na graduação, decidiu que sua monografia seria sobre a o impacto da morte de Vargas em Manaus, entrando em contato com o professor de Brasil Republicano, que decidiu orientá-la.

O Egito faraônico no período Armaniano (1352-1336 A. C.): Cultos, Diplomacia, Poderes e Problematizações. Autora: Inara Kézia Gama Araújo. Ano: 2021.

A autora vinha pesquisando esse tema em projetos de iniciação científica. Pensou em abordá-lo na monografia pensando na pluralidade que esse período representa na egiptologia.

ESCOLHENDO O (A) ORIENTADOR (A)

Baseado na minha experiência e nas conversas com amigos de curso, afirmo que existem dois tipos de orientador: anjos e carrascos. Os anjos são aqueles que lhe acolhem, respeitando suas escolhas e fazendo críticas e sugestões construtivas, indicando fontes e referências e contribuindo para a realização da pesquisa. As seções de orientação são bastante produtivas. Ele também cuida dos seguintes aspectos:

Ajuda na estruturação do trabalho;

Informa sobre as normas técnicas que devem ser obedecidas e as corrige;

Corrige e revisa o trabalho ao longo de sua execução;

Os carrascos, por outro lado, têm o prazer de depreciar a pesquisa de seus orientandos e, sempre que podem, dão uma de Mestre dos Magos (desaparecem quando mais precisamos). As seções de orientação parecem mais uma estadia no Purgatório. Lembro que, certa vez, quando fazia um projeto voltado para o estudo da Amazônia, a orientadora só queria aceitá-lo se incluísse o referencial teórico de sua formação, no caso Michel Foucault. Com a minha negativa, perdi a orientação.

Escolha um (a) orientador (a) que tenha afinidade com o assunto que você escolheu. E também com você. As sociabilidades são muito importantes na vida acadêmica. Muitas dores de cabeça serão evitadas dessa forma. Aliás, qual seria a lógica em escolher um especialista em História Social do Trabalho para lhe orientar em uma pesquisa sobre História Cultural no Brasil Colônia?

No entanto, por conta do grande número de trabalhos, pode ser que aquele professor que você esteja interessado não tenha mais vagas abertas. Isso acontece com frequência. Não desanime. Dialogue com o que foi escolhido, mesmo que não seja o que você esperava.

MONTANDO O PROJETO

MONOGRAFIA HISTÓRICA I

O TCC, ou monografia histórica, é dividido em duas partes: Monografia Histórica I e Monografia Histórica II. A primeira é o projeto do seu trabalho, e deve ter a seguinte estrutura: Introdução; Justificativa; Objetivos; Metodologia; Fontes; e Referências Bibliográficas.

A introdução, como o próprio nome indica, é a parte em que você introduz o leitor ao tema do trabalho, apresentando as questões norteadoras, fazendo uma revisão da literatura existente, apresentando as fontes que serão utilizadas e o referencial teórico. Na justificativa você deve, obviamente, justificar a importância de sua pesquisa para a comunidade científica e as contribuições que ela traz para a temática pesquisada. Observações:

Faça uma revisão consistente da literatura, mas não exaustiva. Lembre dos prazos. Escolha alguns dos principais autores e apresente suas perspectivas;

O mesmo ocorre com o referencial teórico. Não é necessário escolher um planetário de autores. Fique com os fundamentais: vai escrever sobre metodologia da pesquisa histórica? Não esqueça de Marc Bloch. Vai falar de história das mulheres? Tenha em mãos trabalhos de Michelle Perrot;

Os objetivos são divididos em objetivo geral e objetivos específicos. O objetivo geral é amplo e está relacionado com o problema da pesquisa: qual o objetivo principal do trabalho? Dica: use verbos de compreensão/aplicação como explicar, ilustrar e demonstrar. Os objetivos específicos são a ponte de acesso ao objetivo geral. Neles são utilizados verbos de análise como analisar, comparar, categorizar e compreender. O ideal é que sejam formulados um objetivo geral e dois ou cinco específicos.

Na metodologia devem ser abordados os procedimentos utilizados na condução da pesquisa: pesquisa de campo, revisão bibliográfica, entrevistas, pesquisa documental, levantamento fotográfico, estudo de caso etc.

Na seção fontes deve ser arrolada a documentação empregada: jornais, revistas, leis, decretos, requerimentos, certidões de nascimento e óbito, registros paroquiais, fotografias, relatórios municipais e estaduais e outros tipos de documentos. Nas referências bibliográficas são elencados os artigos, livros e obras consultadas.

MONOGRAFIA HISTÓRICA II

A Monografia Histórica II é o trabalho em si, contendo os resultados da pesquisa. Têm a seguinte estrutura: capa; folha de rosto; agradecimentos (opcional); resumo; resumo em língua estrangeira; lista de figuras (se forem utilizadas); sumário; introdução; desenvolvimento; considerações finais; fontes; e referências bibliográficas.

A capa deve contar o cabeçalho com o nome da universidade, do instituto e do departamento, o nome do autor, título, cidade e ano de entrega. A folha de rosto começa com o nome do autor, seguida do título e, abaixo, informações sobre o trabalho e o nome do orientador (a). Por último, cidade e data novamente. Em seguida temos o resumo, que deve ser um compilado do tema estudado, trazendo as questões que serão trabalhadas, o objetivo, metodologia empregada, as considerações finais e as palavras-chave (de 3 a 5). Ele deve ser feito novamente na próxima página, só que em língua estrangeira (inglês, espanhol e francês).

Na introdução, o tema deve ser apresentado, contextualizado e delimitado, bem como as questões que norteiam a pesquisa, os objetivos e a metodologia. Os capítulos que compõe o trabalho também devem ser expostos, só que de forma sucinta. O tamanho da introdução varia, mas geralmente a encontramos com extensão de 3 a 5 páginas. No final, ela vai depender do tamanho da pesquisa. No desenvolvimento são apresentados os resultados da pesquisa, divididos em capítulos. É recomendável que o trabalho tenha de 3 a 5 capítulos.

Conclusão ou considerações finais? É um termo que gera debate na academia. Uma parte da comunidade científica defende que são termos diferentes que possuem o mesmo significado. A outra afirma que considerações iniciais e conclusão possuem diferenças: as considerações finais indicam que não existe uma verdade única sobre a pesquisa. Novos pontos de vista podem ser lançados ao tema, fazendo surgir novos resultados. A conclusão, por outro lado, transmite a ideia de totalidade, verdade absoluta, ideia rechaçada nas ciências. Para as considerações finais, você deve recapitular, de forma geral e sucinta, o tema pesquisado, reapresentar a justificativa, a metodologia, os objetivos, as hipóteses e, por fim, os resultados.

Nas fontes devem ser listados os documentos utilizados (leis, decretos, requerimentos, certidões de óbito e nascimento etc) e, na bibliografia, os textos, artigos, teses, dissertações e monografias que foram consultados.

CONCLUSÃO

O TCC, ou monografia, não é um bicho de sete cabeças. Infelizmente se sabe que é grande o número de pessoas que saem do ensino médio sem saber redigir um texto, problema que aflora na hora de realizar trabalhos acadêmicos. Por isso a importância, na graduação em História, de disciplinas como Metodologia da Pesquisa Histórica, em que temos contato com o instrumental de pesquisa. Você não precisa escrever a nova Apologia da História para ser aprovado por uma banca. A grande maioria dos trabalhos de conclusão de curso, não só de História como de outras áreas, são revisões bibliográficas. Com um bom orientador, fontes e referenciais teóricos, é possível fazer um bom trabalho, ser aprovado e tornar-se historiador.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Conjuntos, condomínios e o problema de moradia em Manaus

Conjunto Cidade Nova, na zona Norte de Manaus. Fonte: Acervo da fanpage Manaus Sorriso.

Manaus, há tempos, sofre com um enorme deficit habitacional. A corrida da borracha entre 1880 e 1910 trouxe milhares de pessoas para a cidade, que passaram a viver em péssimas condições em cortiços. Essa situação piorou na época da crise, a partir de 1920, quando milhares migraram do interior para a capital em busca de melhores condições de vida, dando origem à Cidade Flutuante, um aglomerado de habitações no Rio Negro que chegou a ter 12 mil moradores. Existiram, deve-se mencionar, algumas vilas operárias, mas elas não atendiam a demanda existente. Entre as décadas de 1950 e 1960 o Estado apostou na construção de conjuntos habitacionais para amenizar o problema. O primeiro conjunto residencial da cidade foi o Conjunto Juscelino Kubitschek, localizado na extinta Praça General Carneiro, entre as avenidas Carvalho Leal, Codajás e Castelo Branco, no bairro Cachoeirinha, na zona Sul. Construído através do DAPS (Departamento de Assistência e Previdência Social) e da Construtora Lippi, no Governo de Plínio Ramos Coelho, foi inaugurado pelo Presidente Juscelino Kubitschek em 1957.

No Regime Militar, a Cidade Flutuante foi demolida no Governo de Arthur Cézar Ferreira Reis (1964-1967). Foram projetados dois conjuntos habitacionais para realocar parte – geralmente com melhor condição financeira – de seus habitantes: os conjuntos de Flores e Costa e Silva, construídos em 1967 e 1968, respectivamente, pela Companhia de Habitação do Amazonas (COHAB-AM). O grosso dos moradores recebeu uma ínfima ajuda financeira, dando origem a ocupações improvisadas em bairros como Compensa, São Lázaro, Crespo, São Jorge e Alvorada. Com a instalação da Zona Franca, em 1967, a população cresceu em grandes proporções com a vinda de trabalhadores do interior e de outros Estados. De acordo com o IBGE, a população de Manaus era de 175.343 habitantes em 1960. Em 1970 ela chegou a 314.197.

Um dos mais antigos conjuntos da cidade, voltado para as classes média e alta, faz parte do bairro Nossa Senhora das Graças, na zona Centro-Sul. Trata-se do Conjunto Isaías Vieiralves. Projetado pelo arquiteto Rubens Madela, foi construído pela Incorporadora Irmãos Valle Ltda, de Goiânia, especializada em apartamentos de luxo, e pela EMBRATEC – Empresa Técnica de Construções, responsável pela contratação dos funcionários. As primeiras residências foram entregues em 1970. Tinham pouco mais de 100m², 3 quartos, dois banheiros, garagem, quarto para empregada, área de serviço, sala ampla, sala de jantar e copa-cozinha. As obras foram concluídas em 1974. Seu nome é uma homenagem a Isaías Vieiralves (1884-1958), cearense de Sobral que veio para o Amazonas em 1914, estabelecendo-se como guarda-livros no rio Juruá e fundando em Manaus a Vieiralves Imobiliária S. A., uma das responsáveis pela venda de casas no conjunto. Manauense, Vila Amazonas, Ica Maceió e Haideya III são outros conjuntos existentes nesse bairro.

O bairro Dom Pedro, na zona Centro-Oeste, nasceu como um conjunto habitacional. As terras, que no início pertenciam a José Gabriel Rolim, foram adquiridas pelo empresário Isaac Benzecry, que posteriormente as vendeu para a Cooperativa Habitacional dos Trabalhadores de Manaus (COOPHAB – TRABAM), que iniciou em 1972 a construção do Conjunto Habitacional Dom Pedro I, nome dado em referência à comemoração dos 150 anos da Independência do Brasil, festejada naquele ano. A inauguração ocorreu em 20 de março de 1974. As obras foram realizadas pela construtora Flávio Espírito Santo. Posteriormente foi construído o Conjunto Dom Pedro II. Considerado um dos bairros nobres da cidade, é formado pelos conjuntos Dom Pedro I e II, Kyssia I e II, Déborah e pelos loteamentos Parque Jerusalém e Tropical. Nele estão localizadas a sede da Polícia Federal do Amazonas, a Fundação Centro de Controle de Oncologia do Estado do Amazonas (Fcecon), a Fundação de Medicina Tropical Alfredo da Mata (FMT), a Vila Olímpica, o Centro de Convenções (Sambódromo), a Delegacia Geral da Polícia Civil do Amazonas, o Liceu de Artes e Ofícios Cláudio Santoro, o Centro de Educação Tecnológica do Amazonas e a Secretaria de Estado da Juventude e Lazer.

Vista aérea do Conjunto Dom Pedro, na zona Centro-Oeste de Manaus. Fonte: Instituto Durango Duarte.

Ao longo da década de 1970 surgiram vários conjuntos, como o Ajuricaba, da Sociedade de Habitação do Amazonas (SHAM), na Alvorada; Bancários, da construtora Nóvoa e Cia Ltda., no Santo Antônio; Eldorado e Castelo Branco, no Parque 10 de Novembro, o primeiro a cargo da Soaplan – Sociedade Amazonense de Planejamento e Administração Ltda, e o segundo da SHAM; Coophasa, da Cooperativa Habitacional dos Subtenentes e Sargentos do Amazonas, no Nova Esperança; Parque das Laranjeiras, da ELA – Empresa Líder de Asses Ltda, em Flores; Petro e Tiradentes, o primeiro da A. Gaspar e o segundo a cargo da CERTAM – Companhia de Engenharia Ltda, no Aleixo; Ayapuá, erguido pela ARCA – Arquitetura e Construção do Amazonas, entre Ponta Negra e Compensa; e Santos Dumont, da A. Gaspar, no bairro da Paz.

Na Avenida Constantino Nery, no bairro Chapada, localiza-se o Conjunto dos Jornalistas. Iniciativa da Orientação às Cooperativas Habitacionais (INOCOOP-AM) e da Cooperativa Habitacional dos Jornalistas Profissionais, com financiamento da Caixa Econômica Federal, foi idealizado no final da década de 1970 e construído pela construtora A. Gaspar entre 1980 e 1981. Cada apartamento possui 2 quartos, sala, banheiro, cozinha e área de serviço. A poucos metros dele encontra-se o Conjunto Tocantins, também construído pela A. Gaspar na década de 1980, sendo entregue em 1985.

O bairro Cidade Nova, na zona Norte, surgiu como um imenso conjunto através de planejamento habitacional feito no Governo de José Bernardino Lindoso em 1979. Ele foi criado para abrigar migrantes do interior e de outros Estados que vieram para a cidade trabalhar no Polo Industrial. Foi inaugurado oficialmente em 23 de abril de 1980. O nome Cidade Nova foi dado pois acreditava-se que o mesmo seria desmembrado da capital, tornando-se uma nova cidade que faria parte da Região Metropolitana de Manaus. Isso não ocorreu. O bairro é dividido em 24 núcleos e cinco subdivisões: Cidade Nova 1, Cidade Nova 2, Cidade Nova 3, Cidade Nova 4 e Cidade Nova 5. Em 1986 é inaugurado na Cidade Nova o Conjunto Manôa, construído pelo IPASEA e posteriormente pela SUHAB (Superintendência Estadual de Habitação) no Governo de Gilberto Mestrinho. Destinava-se a funcionários públicos.

O grosso da população, que entre 1980 e 1990 saltou de 642.492 para 1.010.544, não conseguiu moradia nos conjuntos. Foram feitas invasões, originando bairros como São José, Jorge Teixeira, Zumbi, Colônia Terra Nova e Cidade de Deus, nas zonas Norte e Leste, as principais áreas de expansão urbana nas últimas décadas.

Conjunto Viver Melhor, na zona Norte de Manaus. Fonte: divulgação.

Recentemente, o Governo do Estado, através da SUHAB e da Caixa Econômica Federal, construiu, na zona Norte, os conjuntos habitacionais Viver Melhor I e II, no bairro Lago Azul, e Viver Melhor III e IV, no bairro Colônia Terra Nova. Esses são apenas alguns exemplos do que foi feito até hoje para tentar sanar um problema urbano crônico, fruto da falta de planejamento de diferentes administrações municipais e estaduais. Observando boa parte desses casos, percebe-se que os grupos mais beneficiados com moradias foram as classes média e alta, enquanto os mais necessitados, que não podiam arcar com a compra dos imóveis, recorreram às ocupações irregulares para ter direito de habitar a cidade que ajudaram a construir.

Agora vejamos como se deu a construção de condomínios, símbolos da verticalização iniciada entre as décadas de 1970 e 1990, período marcado por significativos avanços nas técnicas construtivas, na otimização do uso do espaço urbano e pela busca, das classes média e alta, de novos modelos de habitação que oferecessem segurança, lazer e serviços de forma integrada.

A Avenida Getúlio Vargas foi uma das mais requisitadas para a construção de prédios residenciais. No início da década de 1960 foi erguido o Condomínio Edifício Palácio do Rádio, propriedade do radialista Josué Cláudio de Souza, da Rádio Difusora. Com pedra fundamental lançada em 1957, foi inaugurado em 1962. A construção ficou a cargo da Cointer Ltda. Ele fazia parte um ambicioso projeto denominado ‘Cidade do Rádio’, que previa a construção de três edifícios residenciais de 12 andares, contando com supermercado, piscina, playground, auditório e serviços de luz e água próprios. Ao lado da Policlínica Gilberto Mestrinho se situa o Condomínio Edifício Monte Carlo, de 18 andares, planejado pela Soaplan – Sociedade Amazonense de Planejamento e Administração Ltda e construído entre 1973 e 1984. O Condomínio Edifício Mônaco, na esquina com a rua 24 de Maio, começou a ser construído em 1973. Com as obras paradas por vários anos, foi concluído em 1984.

Condomínio Edifício Cidade de Manaus, construído na década de 1970. Fonte: Google Maps.

Na Avenida Eduardo Ribeiro estão alguns clássicos da década de 1970. O Condomínio Edifício Cidade de Manaus, na esquina com a rua 24 de Maio, foi projetado pelo arquiteto Ary Macedo e construído entre 1969 e 1972 pela Construtora América do Sul – CASUL. Inaugurado em 31 de março de 1973, possui 24 pavimentos. Do outro lado da esquina ergue-se outro gigante, o Condomínio Edifício Palácio do Comércio, construído pela Cia. Rio Branco de Engenharia e Comércio. Inaugurado em 1978, possui 23 andares. Em frente a ele temos o Condomínio Edifício Zulmira Bittencourt. Na esquina com a rua Saldanha Marinho situa-se o Condomínio Edifício Manaus Shopping Center. Com 20 andares, foi construído entre 1973 e 1976 pela Construtora Adolpho Lindenberg S. A. Em seu lugar existiu, entre 1913 e 1973, o Cine Odeon. No térreo funcionou o Studio Center, cinema da empresa de Adriano Bernardino. Na parte alta da avenida, em frente ao Ideal Clube, na esquina com a Monsenhor Coutinho, onde ficava o Palacete Miranda Corrêa, domina a paisagem o Condomínio Edifício Maximino Corrêa, de 20 andares, projetado pelos arquitetos Luís Carlos Antony e Fernando Pereira da Cunha, com incorporação da firma Grande Rio S. A. e construção executada entre 1971 e 1973 pela Construtora Santa Catarina. Os anúncios o descreviam como um prédio luxuoso, com apartamentos de 2 e 3 quartos, dependência para empregada, playground e piscina. Teve financiamento da TROPICAL – Companhia de Crédito Imobiliário, com repasse do Banco Nacional de Habitação (BNH). Foi inaugurado em 30 de novembro de 1973.

A poucos metros do Manaus Shopping Center, na Saldanha Marinho com a Costa Azevedo, está o Condomínio Edifício Rio Madeira, construído pela Construtora Novoa & Cia Ltda. entre 1970 e 1973. Possui 12 pavimentos e um centro comercial. Também é na Saldanha Marinho, na esquina com a rua Barroso, que fica o Condomínio Edifício Alfredo da Cunha, construído entre 1970 e 1977 pela construtora Sociedade de Obras Ltda. Têm 49 apartamentos e uma galeria comercial no térreo. Ainda na Saldanha, próximo da Avenida Getúlio Vargas, o Condomínio Edifício Beta, construído entre 1973 e 1977, destaca-se pelos seus amplos apartamentos que chegam a 150m². Nele residiram personalidades ilustres da sociedade amazonense, como o poeta e imortal da Academia Amazonense de Letras (AAL) Almir Diniz de Carvalho e o historiador Coronel Roberto Mendonça.

Entre o antigo Cine Polytheama e o Palácio Rio Negro, na avenida Sete de Setembro, estão dois interessantes condomínios: o Condomínio Edifício Antônio Simões, empreendimento da Novacasa Imobiliária Industrial Ltda., com financiamento da Amazon-Lar (Associação de Poupança e Empréstimo) na qualidade de agente financeiro do Banco Nacional de Habitação (BNH) e construído pela Construtora Artec entre 1969 e 1976; e o Condomínio Edifício Infante Dom Henrique, construído pela construtora A. Gaspar no final da década de 1970 e entregue em 1981.

Na tradicional Avenida Joaquim Nabuco, outrora endereço da burguesia durante a Belle Époque, o Condomínio Edifício David Nóvoa, na esquina com a rua Lauro Cavalcante, representa bem os esforços de modernizar a cidade nos primeiros anos da Zona Franca. Seu lançamento ocorreu em 27 de setembro de 1968. Com 17 pavimentos, foi construído entre 1968 e 1972 através de consórcio entre a Importadora Nasser Comércio e Engenharia, de Belém, e a Construtora Nóvoa Ltda., de Manaus. Na época de sua inauguração foi considerado o edifício mais luxuoso da cidade. Nas proximidades da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios, na rua Miranda Leão, encontramos o Condomínio Edifício Bader Sadala, propriedade da tradicional família Sadala, cujo nome homenageia a matriarca Bader Sadala, natural do Líbano. Sua construção teve início em 1985, foi paralisada em 1987 e concluída em 1990.

Condomínio Edifício Bader Sadala. Fonte: Google Maps.

No início da avenida Constantino Nery, ainda no Centro, ao lado do Terminal de Integração I, chama a atenção o Condomínio Edifício Manoel José Ribeiro, um tanto maltratado. Construído entre 1987 e 1989 pela Construtora Plinic, possui 80 apartamentos. Na Leonardo Malcher estão dois edifícios construídos pelo engenheiro paulista Luís Carlos Nistal: o Condomínio Edifício Maria Beatriz, de 1991-1992; e o Condomínio Edifício Anaira, na esquina com a rua Tapajós, erguido entre o final da década de 1980 e início de 1990.

O Condomínio Edifício Simon Bolívar, em rua homônima, perto da Praça da Saudade, é um genuíno representante da verticalização ocorrida em Manaus na década de 1980. Foi construído entre 1984 e 1987 pela Construtora Rayol Ltda., do saudoso empresário Murilo Rayol. Um pouco mais distante dali, na rua Ferreira Pena, o Condomínio Edifício São João Del Rey destaca-se pelo alto padrão e amplos apartamentos. Sua construção se deu entre 1987 e 1989 pela Construtora Rayol Ltda.

Até aqui é perceptível como o Centro foi a área em que teve início a verticalização. Com a ausência de leis de proteção ao patrimônio histórico, muitos bens de época foram demolidos para dar lugar a edifícios residenciais. A partir da publicação de planos diretores e do Tombamento da região central, esse processo foi levado para outras zonas, principalmente as Centro-Sul e Centro-Oeste. Um dos bairros mais afetados foi o Parque 10 de Novembro, na zona Centro-Sul. Na Avenida Djalma Batista foi erguido o então luxuoso Condomínio Amazonas Flat, projetado pelo premiado arquiteto Severiano Mário Porto e construído pela Engecenter entre 1986 e 1991. Primeiro apart-hotel de Manaus, foi considerado um dos prédios mais modernos e luxuosos da época, com apartamentos de 1, 2 e 3 quartos, 2 piscinas, sauna, quadra de tênis, squash, central telefônica, centro comercial, garagem coberta e circuito de TV. Em poucos meses todas as unidades foram vendidas.

Atualmente, de acordo com o IBGE, a cidade possui um déficit de moradia de 105.587 habitações. Seria necessária a construção de 5 mil casas por ano. Manaus tem uma população de 2.219.580 habitantes, dos quais 195 mil vivem na extrema pobreza. A tragédia ocorrida no bairro Jorge Teixeira, causando oito mortes, é parte de uma lamentável e histórica ausência do poder público no que diz respeito a políticas de habitação pública. Faltam políticas ambientais, sociais e habitacionais sólidas. Quanto aos condomínios, estima-se que eles existam em número de 500, atendendo diferentes tipos de gostos e bolsos. Aos interessados em conhecer de forma aprofundada o problema de moradia na cidade e sua verticalização, recomendo as dissertações Habitar na cidade: Provisão estatal da moradia em Manaus, de 1943 a 1975, da historiadora Vládia Pinheiro Cantanhede; e Solo Criado: estudo sobre o processo de verticalização em Manaus, do geógrafo Fellipe Costa Barbosa.

Artigo publicado na coluna Memória JC, do Jornal do Commercio, em 04/04/2023, p. A5.