domingo, 28 de abril de 2019

O mundo às vésperas das Revoluções Industrial e Francesa

Paisagem interiorana da Holanda. Pintura de Cornelis de Bruin (1652-1726).



Em a Era das Revoluções (1789-1848), o historiador britânico Eric Hobsbawm (1917-2012) analisa a derrocada do mundo feudal, do Antigo Regime, e a transição, marcada por conflitos e profundas transformações sociais, deste para uma nova realidade, a industrial e das democracias liberais. O século XVIII foi um período marcado por duas revoluções, a Industrial e a Francesa. Da primeira têm-se a constituição da estrutura econômica que dominará o mundo Ocidental. Da segunda, o arcabouço político teórico que sustentará a economia e os governos.

O mundo em 1780, às vésperas dessas revoluções, era ao mesmo tempo menor e maior que o nosso. Menor no sentido de que, na época, se conhecia pouco sobre os territórios, principalmente as regiões interioranas. Além do mais, a densidade demográfica era consideravelmente menor que a da atualidade. Epidemias, guerras, fatores climáticos e terras improdutivas eram barreiras para o estabelecimento e crescimento de colônia em regiões afastadas das áreas mais desenvolvidas. Os seres humanos também eram menores. Fatores biológicos ligados a alimentação produziam pessoas de estatura mais baixa que as atuais.

Ele tornava-se maior dadas as dificuldades em locomoção e comunicação com outras regiões, o que abria diversas possibilidades. Existiam dois meios de transporte, o marítimo e o terrestre. O primeiro era mais eficiente que o segundo, mas ainda assim passava por alguns problemas, principalmente a variação dos ventos e dos mares. As viagens terrestres, apesar da construção de estradas e a existência de charretes e carruagens, eram perigosas, onerosas e lentas. Uma cidade portuária da América do Norte estava mais perto de Paris do que uma cidade interiorana francesa. Em uma realidade majoritariamente rural, com mobilidade por terra problemática e navegação variável, as pessoas costumavam morrer no mesmo local em que nasciam sem nunca terem conhecido outras realidades. Jornais e cartas já eram uma realidade, mas o grosso da população era analfabeta, existindo uma certa mobilidade apenas entre viajantes, mercadores e membros da burocracia estatal, que tinham a necessidade de deslocar-se para realizar suas funções, fossem elas nas colônias além-mar ou no interior das cidades provinciais.

Poucas eram as cidades densamente habitadas. Da Rússia à Itália, entre 70 e 90% da população era rural. Apenas Londres e Paris eram cidades cujas populações eram, respectivamente, de 1 milhão e 500 mil habitantes. No mais, existiam cidades com pouco mais de 20 mil habitantes, cujas vidas estavam centradas na Igreja, na Praça e na atividade agrícola. Uma cidade desse tipo era dividida do mundo rural pelos seguintes aspectos: a presença de um aparato arquitetônico e estatal mínimos (igreja, praça, cobrança de impostos) e as vestes e estatura de seus habitantes, geralmente melhores e maiores que os trabalhadores rurais.

Esse mundo estava dividido em zonas de trabalho. Nas colônias da América predominava a escravidão indígena e africana voltada para o cultivo de gêneros primários que abasteciam a Europa. A leste da Europa Ocidental ficavam as propriedades de trabalho agrário servil. Na região Oriental o sistema de trabalho beirava a escravidão. Os trabalhadores eram ‘tecnicamente’ livres, mas ainda assim estavam presos a obrigações como o pagamento de dízimos as paróquias das quais faziam parte e a utilização de mecanismos, como o moinho, por exemplo, geralmente pertencentes a grandes proprietários. Com exceção da Inglaterra, em que a agricultura já estava sendo direcionada a um mercado mais amplo, um dos fatores para o seu pioneirismo industrial, toda a produção das outras localidades sustentava a necessidade e consumo regionais.

Predominava o modelo político das Monarquias Absolutistas, característico do Antigo Regime. Essa organização política estava assentada em privilégios monárquicos que se refletiam em todos os níveis da sociedade, principalmente na terra, defendida pelos fisiocratas franceses como a única fonte de riqueza. Os nobres alugavam suas terras aos camponeses, cobrando uma parte da produção ou um aluguel em dinheiro. Quando esse sistema econômico tornou-se obsoleto, desgastado, os membros da corte passaram a utilizar seus títulos de nobreza para se apropriarem dos cargos burocráticos, para dessa forma manterem seu estilo de vida aristocrático. Esses privilégios sobre a terra terão um peso decisivo na Revolução Francesa, em 1789. O status monárquico e a posse de grandes propriedades de terra eram as bases dos estados europeus.

Em síntese, o mundo, mais especificamente a realidade europeia, as vésperas das revoluções industrial e francesa, era predominantemente rural e menor por suas características limitadas de conhecimento e mobilidade, mas esta última característica o tornava maior dadas as possibilidades ainda não plenamente exploradas.


REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

HOBSBAWM, Eric J. A Era das Revoluções: Europa 1789-1848. Rio de Janeiro, Ed. Paz e Terra, 20º ed., 2006.



CRÉDITO DA IMAGEM

Cornelis de Bruin Gallery.

quinta-feira, 4 de abril de 2019

Sobre vacina, antivacina e medo

A Morte. Bruno Latour, Pasteur, une science, un style, un siècle. Paris: Librarie académique Perrin, 1994, p. 30. In: SANTOS, Ricardo Augusto dos. O Carnaval, a peste e a 'espanhola'. Hist. cienc. saúde-Manguinhos vol.13, n° 1, Rio de Janeiro, Jan./Mar. 2006.

Doenças assolam a humanidade desde tempos imemoriais. Um sem número de povos sucumbiu a vírus e bactérias. Há registros da Hanseníase desde a Antiguidade. Na Idade Média, com maior incidência na segunda metade do século XIV, em que eram poucos os conhecimentos e tratamentos médicos, o Ocidente foi sacudido pela Peste Negra. Mais de seis séculos depois, na década de 1980, em que o homem já tinha “domado” boa parte das doenças que em outras épocas faziam enormes estragos, surge o vírus HIV (Human Immunodeficiency Virus), causador da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida, que prestes a completar 40 anos, já causou a morte de mais de 35 milhões de pessoas ao redor do mundo 1. Em meio a mortandade, surgiram vacinas ou formas de retardar o avanço dessas moléstias. Homens e mulheres, cientistas, mostraram o melhor da capacidade humana de superar as adversidades.

Essa capacidade humana, a ciência como um todo, no entanto, sempre foi contestada. Essa contestação produziu efeitos devastadores ao longo da história. Temos visto, nos últimos anos, o surgimento de grupos antivacinas em várias partes do mundo. São pais e políticos que, não acreditando na eficácia da imunização ou em possíveis danos que ela pode causar, além de alegarem motivos religiosos, se recusam a vacinar seus filhos. Mais que uma questão de liberdade de escolha, trata-se de bom senso. No presente texto serão apresentadas as formas como foi se desenvolvendo o medo e a resistência às vacinas.

As primeiras reações e respostas contra as doenças infectocontagiosas surgiram em fins do século XVIII, na Europa. Em 1789, o médico e naturalista britânico Edward Jenner (1749-1823), ao observar que a varíola bovina atingia de forma branda as pessoas que entravam em contato com esses animais, decidiu inocular substâncias bovinas em humanos. Essas pessoas, além de ficarem imunes a varíola bovina, também ficavam livres da varíola humana. Surgia, dessa forma, a primeira vacina e a imunização 2.

Apesar das epidemias serem uma constante, surgindo periodicamente há milhares de anos, a partir do momento em que uma vacina era desenvolvida, o número de mortos caia drasticamente. Na Província do Amazonas, por exemplo, que em 1856 acabara de passar por duas epidemias, uma de cólera morbo e outra de febre amarela, o comissário vacinador informava sobre a importância da vacina contra a varíola (bexiga), além de esclarecer as dúvidas de pessoas que não viam essa forma de prevenção com bons olhos:

E’ incontestavelmente a vaccina uma das principaes descobertas da Medicina e Jenner com ella immortalisou-se. Há porém certa repugnancia da parte do povo rude em acceitar tão benefica offerta, uns crendo que não preserva e outros que sua inoculação produz um mal igual ao da própria bexiga; aos primeiros cumpre dizer que a vaccina ou preserva ou dispoem de tal modo o sangue que rara vez é grave a bexiga no vaccinado, o que se prova até á evidencia com as estatisticas de paizes mais adiantados que o nosso em Hygiene Publica, onde as relações de obitos, depois desta miraculosa descoberta, apresentão um numero muitissimo inferior de mortes por bexigas”.

Para superar o medo da população e tornar a vacinação efetiva, o comissário pediu ajuda dos párocos da Província, para que estes guiassem seus fiéis: “Apello pois para vós, Snr. es. Parochos, para vós, aquem cumpre em primeiro logar encaminhar os espiritos de vossos freguezes; peço-vos que empregueis vossos esforços para os chamardes á vaccina3. Quase meio século mais tarde, a obrigatoriedade da vacinação, já na República, causaria, no Rio de Janeiro, uma revolta popular, denominada Revolta da Vacina 4.

Está na base da resistência à vacina, à proteção, o medo, esse sentimento coletivo e individual que acompanha a humanidade. De acordo com o historiador francês Jean Delumeau, autor do clássico História do Medo no Ocidente, em tempos de peste as populações expressam seus medos de diferentes formas, que vão da negação da doença, o distanciamento dos doentes e mortos à eliminação dos que acreditam serem os agentes propagadores das infecções (animais e grupos marginalizados)5. Esses aspectos ficaram bastante evidentes durante a epidemia de Gripe Espanhola entre 1918 e 1919, em que evitavam-se afetos e, por medo do contagio, os cadáveres dos que sucumbiam ficavam espalhados pelas ruas das cidades 6.

Mas se a doença e a ideia eminente da morte causavam medo, por qual motivo voltar-se contra medidas que visavam evitar o contagio dessas mazelas? Seria a “ignorância do povo rude”, aspecto inúmeras vezes recuperado nos documentos oficiais de época e mesmo pela historiografia? Essa ideia é bastante simplificadora, impedindo que se veja além daquelas realidades distintas. Era mais um confronto de discursos, de saberes, do que pura ignorância. De um lado, o popular, tínhamos práticas de cura seculares que incorporavam saberes indígenas, africanos e cristão católicos. Do outro, de tom mais oficializante, medidas higienizantes baseadas em valores estrangeiros. A historiadora Claudia Rodrigues recupera um episódio que exemplifica esse embate em saberes populares e saberes institucionalizados. Em 1849, durante a epidemia de febre amarela que atingiu o Rio de Janeiro, a população acreditava ser ela um flagelo divino que teve origem

[…] quando o andor de São Benedito deixara de figurar na procissão das cinzas que, anualmente, percorria a cidade. Durante dois séculos o santo devoto dos negros tivera seu lugar na procissão, após o de santa Isabel de Hungria. Naquele ano, no entanto, segundo o memorialista Vivaldo Coaracy, “alguns terceiros, mais suscetíveis às distinções de pigmento cismaram que “branco não carrega negro nas costas, mesmo que seja santo””, e São Benedito não encontrou quem lhe levasse o andor, ficando “depositado” na sacristia. “Não tardaram, naturalmente, logo as beatas a propalar nas massas crédulas a afirmativa de que tão tremendo castigo era indubitável efeito da cólera vingativa do santo ofendido” 7.

Enquanto a população defendida essa ideia, os médicos da Corte apresentavam teses que estavam em consonância com o que circulava desde o século XVIII na Europa, principalmente a defesa da teoria miasmática, segundo a qual as doenças se propagavam através dos ares que eram expelidos de matérias putrefatas.

Deve-se salientar que também ocorria a incorporação, pela população, de discursos médicos que posteriormente mostravam-se inconsistentes. Ela também via a vacinação obrigatória como uma forma do Estado aumentar o controle sobre sua vida. O historiador Eliézer Cardoso de Oliveira, que estudou a epidemia de varíola e o medo da vacina em Goiás entre o século XIX e a década de 1930 do século XX, citando o historiador Sidney Chalhoub, afirma que

[…] o principal argumento dos médicos adversários da vacina era, além da sua ineficiência em alguns casos, a transmissão de doenças humanas (como a sífilis) e animais para o vacinado. Esses médicos eram minoria, mas, para desespero dos administradores públicos, faziam grandes estragos nas campanhas de vacinação. A população se apropriava desses argumentos, o que reforçava o medo da vacina8.

O atual movimento antivacina teve início na década de 1990 e com um “embasamento científico”. Em 1998 o médico gastroenterologista inglês Andrew Wakefield publicou no periódico científico Lancet um artigo em que defendia que as vacinas contra o sarampo, a rubéola e a caxumba causavam autismo em crianças. Descobriu-se, no entanto, que esse estudo foi fraudado. O médico teve a licença cassada. Apesar de ter suas teses refutadas, Wakefield, até hoje, as divulga ao grande público 9. Existem grupos de pais na Europa e nos Estados Unidos que se recusam a vacinar seus filhos. Mais recentemente, um político italiano antivacina, que afirmava que a obrigatoriedade das vacinações era um mecanismo de controle social, foi internado com catapora 10. Esse discurso vindo de um líder político mostra a dimensão que o movimento vem tomando. O mesmo começa a ocorrer no Brasil. Em um período marcado pela rápida produção e disseminação de informações por não especialistas, as ciências são diariamente contestadas, vide as ondas de revisionismo histórico. O mesmo vem ocorrendo na área da saúde, onde doenças que haviam sido erradicadas há décadas começam a surgir novamente e cada vez mais fortes.


NOTAS:

1 Mensagem do Secretário-Geral da ONU para o Dia Mundial contra a AIDS 2018. UNAIDS. Disponível em: https://unaids.org.br/2018/12/mensagem-do-secretario-geral-da-onu-para-o-dia-mundial-contra-a-aids-2018/. Acesso em 04/04/2019.

2 UJVARI, Stefan Cunha. A História da Humanidade contada pelos Vírus. Bactérias, Parasitas e Outros Microrganismos. São Paulo: Contexto, 2012.

3 Estrella do Amazonas, 11/06/1856.

4 Para uma análise crítica dessa revolta, ver SEVCENKO, Nicolau. A revolta da vacina – mentes insanas em corpos rebeldes. São Paulo: Brasiliense, 1984.

5 DELUMEAU, Jean. História do Medo no Ocidente: 1300-1800, uma cidade sitiada. São Paulo: Companhia das Letras, 1989.

6 Mensagem do Governador a Assembleia Legislativa, 1919, p. 25. e Jornal Imparcial, 18 de novembro de 1918. In: GAMA, Rosineide de Melo. Dias Mefistofélicos: A Gripe Espanhola nos Jornais de Manaus (1918-1919). Manaus: Universidade Federal do Amazonas, 2013. Dissertação de Mestrado em História.

7 COARACY, Vivaldo. Apud RODRIGUES, Claudia. Lugares dos mortos na cidade dos vivos: tradições e transformações fúnebres no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Secretaria Municipal de Cultura, Departamento Geral de Documentação e Informação Cultural, Divisão de Editoração, 1997, p. 43.

8 OLIVEIRA, Eliézer Cardoso de. A Epidemia de Varíola e o medo da vacina em Goiás. História, Ciências, Saúde – Manguinhos, Rio de Janeiro, v.20, n.3, jul.-set. 2003, p. 954.

9 Como os movimentos antivacina se tornaram um perigo para o planeta. Revista Galileu, 26/10/2018.

10 Político antivacinas da extrema direita italiana é internado com catapora. G1, Globo, 19/03/2019.