terça-feira, 8 de junho de 2021

O clima da Manaus antiga

Rua Lobo d' Almada, 1935. Foto de Robert Swanton Platt. FONTE: University of Wisconsin-Milwaukee Libraries.

Uma das maiores dúvidas de quem acompanha páginas que divulgam fotos antigas da cidade é como as pessoas conseguiam vestir-se, no dia a dia, com roupas tão pesadas como ternos e paletós. Não sentiam calor? A cidade era menos quente que atualmente? Ao longo desse texto tentarei responder essas perguntas.

Primeiramente, vamos ao clima propriamente dito. Posteriormente abordarei aspectos relacionados ao vestuário manauara de outros tempos. 

Deixaram interessantes registros sobre nossa situação climática os viajantes, estrangeiros e nacionais, que passaram pela cidade entre a o início do século XIX e o início do século XX.

Johann Baptist von Spix e Carl Friedrich Philipp von Martius, naturalistas alemães, estiveram no então Lugar da Barra (Manaus) em 1819. Os sábios tiveram boa impressão da cidade, principalmente de seu clima - "A todos êsses encantos junte-se a majestosa tranquilidade do clima equatorial, que proporciona manhãs frescas e noites serenas em alternância regular" (SPIX, MARTIUS, 1981, p. 161).

O naturalista inglês Henry Walter Bates, que viveu na região por 10 anos, entre 1849 e 1859, descreveu o clima de Manaus como "salubre" e "delicioso", ideal para atividades agrícolas (BATES, 1944, p. 362-365).

Lourenço da Silva Araújo Amazonas, Capitão-Tenente da Armada Brasileira e membro do IHGB, no verbete Manáos, do seu 'Diccionario topográfico, histórico e descriptivo da Comarca do Alto Amazonas',  afirmou que nessa parte do Império o clima extremamente quente era amenizado pelas ventanias no verão e pelas cheias no inverno. Os três bairros da cidade, da Matriz, de São Vicente e dos Remédios, por serem cortados por igarapés, "são todos assaz apraziveis e arejados" (AMAZONAS, 1852, p. 187-188).

O Tenente Coronel João Wilkens de Mattos, Presidente da Província do Amazonas, criticava em relatório de 04 de abril de 1868 o traçado das ruas da cidade, muito estreitas, pois "em clima abrasador como o nosso, as quadras ou quarteirões devem ter de 100 metros, pelo menos de face, e as ruas de 20 de largura" (MATTOS, 04/04/1868 Apud SÁ, 2012, p. 55). O Código de Posturas de 1868 proibia o corte de árvores, varas e arbustos maiores de 5 palmos em riachos, igarapés e logradouros públicos, bem como o despejo de lixo nos cursos d' água (SÁ, 2012, p. 54-55).

Em 1893 o médico e escritor riograndense Francisco Lourenço da Fonseca, de passagem pela cidade, registrou em seu livro No Amazonas (1895) que "o clima de Manáos é humido e quente", fazendo algumas análises mais detalhadas: "As nossas observações thermometricas tem accusado oscillações de 24° centigrados (minima) pela madrugada a 31,5° (maxima), isto á sombra, e n' uma corrente d' ar. No verão, é claro, estes limites thermometricos costumam ser mais elevados..." (FONSECA, 1895, p. 97).

O escritor Euclides da Cunha, em 1905, além de tecer críticas ao artificialismo da cidade, que tentava de qualquer forma copiar os modismos no Novo Mundo, sentiu-se bastante incomodado com seu clima. Registrou em carta a Afonso Arinos que o clima de Manaus "[...] traduz-se num permanente banho de vapor - e quem o suporta precisa ter nos músculos a elástica firmeza das fibras dos buritis e nas artérias o sangue frio das sucuruíubas" (CUNHA, 1905, p. 250-251 Apud RIBEIRO, 2006, p. 152-153).

A cidade dos tempos provinciais era recortada pelos igarapés de São Vicente, da Ribeira, da Bica, do Espírito Santo, dos Remédios, da Cachoeirinha, da Cachoeira Grande, de Manaus, da Castelhana e de Monte Cristo (PEDROSA, 2018, s. p). Eles se faziam presentes na vida dos habitantes dos poucos bairros que formavam a urbe, contribuindo para deixar o clima mais ameno. Parte desses igarapés foi aterrada no final do século XIX e início do XX para dar lugar a vias públicas, o que começou a alterar significativamente a sensação térmica dos moradores.

No início do século XX a temperatura de Manaus oscilava entre 24° e 37° graus, segundo consta nos relatórios do Governo do Estado do Amazonas, na seção do Observatório Meteorológico de Manaus. Esse clima tropical, considerado tórrido no verão, fazia com que o Estado tivesse gastos frequentes com a pintura de prédios públicos, que não aguentavam a ação climática:

"Pinturas diversas

E' esta uma das despezas que mais pesam ao Thesouro do Estado, pela necessidade de fazelo a quasi que annualmente, devido ao clima de Manáos; assim foram pintados:

O Quartel de Segurança, nas faces externas.

- Gradis das pontes sobre os igarapés de Manáos e Bittencourt;

- bem como as pontes de ferro sobre os igarapés da Cachoeirinha e da Cachoeira Grande.

- Finalmente, mandei proceder a uma limpeza interna e externa no reservatorio do Mocó.

Este serviço dividiu-se em: limpeza geral das caixas, sua pintura a oleo, caiação geral interna e externamente, e pintura a oleo de todo o travamento de ferro, pintura fingida das faces externas e lisa das internas e divisões da casa dos guardas" (RELATÓRIO, 1905, p. 182).

Os empresários da cidade estavam cientes dos empecilhos que o clima poderia causar aos seus negócios. Alguns buscavam diferentes formas de amenizar o calor tropical, como a firma Ahlers & Cia, que em 1911 divulgava no jornal O Marítimo ter um "magnífico vapor", nomeado Cássio Reis, "dotado de accommodações apropriadas ao nosso clima, com luz electrica e camara frigorifica" (O MARÍTIMO, 16/05/1911, p. 04). Móveis e instrumentos musicais também eram construídos de forma a resistir por mais tempo às intempéries climáticas. Max Brunn, proprietário de uma loja de pianos no Centro, informava por volta de 1899 que vendia "pianos construídos especialmente para clima tropical" (O ANNUNCIADOR COMMERCIAL, 08/07/1899, p. 04).

Como resolver esse "problema"? Márcio Nery, então Chefe da Comissão de Saneamento de Manaus, propôs 5 pontos para amenizar o calor na cidade: I) a forma como as casas são construídas; II) A arborização e cuidado das praças, largos, pátios e ruas; III) o tipo de revestimento das ruas e passeios públicos; IV) o uso de água (fontes, chafarizes e bebedouros) em locais públicos; V) dicas para amenizar o calor no interior das residências (MENSAGEM, 10/07/1906, p. 132-137).

Márcio Nery registra que as casas construídas em Manaus pouco ofereciam para o aproveitamento dos ventos. Recomendava-se que os cômodos fossem amplos de forma a facilitar a ventilação e a purificação dos ambientes (MENSAGEM, 10/07/1906, p. 132). 

Rua Municipal (Avenida Sete de Setembro), no trecho da I Ponte Romana, dita Floriano Peixoto, no Centro de Manaus, em 1909. Foto de Huebner & Amaral. FONTE: Cartão postal.

A arborização de ruas, praças, largos e pátios era indispensável. "A plantação de árvores frondosas e capadas", afirma Nery, "é um benefício que se presta ao transeunte. Quando o carregador, o carroceiro, o pedestre enfim, causticado pelo calor, procura um refugio, é sob as arvores das praças e das ruas que o encontra" (MENSAGEM, 10/07/1906, p. 133). Era recomenda a plantação de eucalyptus rostrataficus religiosa, ficus benjamina, sorveira e oity. Nas ruas estreitas seriam plantadas uma fileira de árvores, enquanto nas largas duas fileiras, uma de cada lado. Os moradores deveriam ajudar com a arborização, plantando árvores, plantas e flores em seus quintais e pátios.

As ruas deveriam ser revestidas com materiais impermeáveis e resistentes como asfalto e paralelepípedos (MENSAGEM, 10/07/1906, p. 134-135). O uso de água em locais públicos poderia ser feito das seguintes formas:

"1° - Projectando-a na atmosphera, para moderar o calor e recreiar a vista, por meio de chafarizes, repuscos e outros meios de espadamar a agua no ar; 2° - Em fontes públicas, onde os pobres possam encontrar agua para as suas necessidades; 3° - Em tanques apropriados a bebedoiro de animaes; 4° - Nos apparelhos sanitarios diversos dispostos de espaço em espaço; 5° - Na lavagem das ruas e exgottos e na irrigação dos passeios, vias publicas, jardins e logradouros publicos; 6° - No Serviço de incendios; 7° Os lagos, rios e cascatas decorativas de jardins ou quaesquer outros logradouros publicos só devem ser permittidos quando as aguas se escôem facilmente para exgottos, não consentindo que ellas permaneçam paradas mais de tres dias, afim de que se não tornem viveiros de mosquitos ou outros insectos nocivos" (MENSAGEM, 10/07/1906, p. 135).

Márcio Nery sugere, ainda, que a Prefeitura crie banhos públicos destinados às pessoas mais necessitadas, que poderiam, além de se limpar, se refrescar.

As outras formas de combater o calor eram de caráter mais particular. Elas incluíam a proteção das janelas com toldos, para evitar a penetração da luz solar no ambiente, a abertura das janelas durante a noite, quando o clima é mais agradável ou o uso de persianas, venezianas e vidraças duplas e o uso de ventiladores e resfriadores de ambiente (MENSAGEM, 10/07/1906, p. 136-137).

Analisando essas fontes do início do século XX percebe-se a preocupação do Município com a questão climática. Praças, ruas e outros logradouros foram arborizados em diferentes administrações. Bebedouros, fontes e chafarizes foram construídos em diferentes pontos da cidade. As ruas foram calçadas com paralelepípedos e limpas periodicamente, apesar das deficiências da época. Mesmo nos tempos de crise econômica esses serviços não foram abandonados, sendo desse período interessantes registros fotográficos que mostram a densidade da arborização das ruas centrais (ver a primeira fotografia).

Cachoeira do Tarumã. Cartão postal de 1975. FONTE: Acervo pessoal.

Os igarapés e balneários eram os refúgios da população aos finais de semana. Os mais conhecidos foram o Igarapé do Tarumã, largamente descrito pelos viajantes do século XIX; o Parque 10 de Novembro, inaugurado em 19 de abril de 1943; e a Ponte da Bolívia, de 1958. Eles tiveram uso regular até as décadas de 1980/1990, quando a poluição os tornou impróprios ao uso humano.

A partir desse ponto vamos analisar a moda dos manauaras daquele período e o que faziam a esse respeito para amenizar o calor.

O Professor Agnello Bittencourt (1876-1975), no trabalho memorialístico 'Manaus: pródromos e sequências', registrou que a temperatura média da cidade, entre o final do século XIX e o início do XX, era 2,5 graus mais baixa que a da época em que escrevia o trabalho (1969), mas mesmo assim o calor era, às vezes, grande. Isso não impedia o uso de modas inapropriadas ao clima local:

"Mas, não menor era a elegância da época - as mulheres espartilhadas e vestidas até os pés em pesadas sêdas; os homens, transpirando em seus fraques, croisés e casacas, muitas vêzes talhados em Londres, cartola ou chapéu-côco, colête, peito engomado e colarinho alto sob a forte canícula ou nos animados bailes, tão frequentes nos palacetes particulares, em suntuoso estilo "fin-de-siècle"" (BITTENCOURT, 1969, p. 70).

Algumas senhoras da sociedade e suas filhas após o fim de uma missa na Catedral de Nossa Senhora da Conceição. Foto de 1917. FONTE: Revista Cá & Lá, ano 2, n° 12, julho de 1917 (Biblioteca Mário Ypiranga - CCPA).

O relato de Bittencourt revela uma das disputas que as elites e classes médias das cidades tropicais enriquecidas durante a expansão industrial dos séculos XIX e XX travaram: a da moda importada e do clima local não apropriado às vestimentas. Por mais que as pessoas transpirassem, os códigos sociais, os modos e modas oriundos da Europa, sobretudo da França, falavam mais alto.

Família Armindo Fonseca passeando na Rua Municipal (Avenida Sete de Setembro). Foto de 1917. FONTE: Revista Cá & Lá, n° 13, 21/07/1917 (Biblioteca Mário Ypiranga - CCPA).

A moda europeia, apesar de se impor no cenário amazônico, teve de ser, em parte, "adaptada" ao clima da região. As roupas, mesmo as mais formais, eram feitas com tecidos leves e tinham cores claras. Nesse sentido Pedrosa (2018, s. p. ) chama a atenção para as possibilidades que os álbuns fotográficos da cidade oferecem para os estudos sobre a moda e o clima:

"Um olhar mais atento sobre as fotografias publicadas em álbuns, como o Álbum Comercial de Manaus (1896) e o Vistas de Manaus (1897), permite identificar os tipos de vestimentas das pessoas que aparecem timidamente, quase escondidas, postas em segundo plano ou, em alguns casos, em grande número em espaços públicos" (PEDROSA, 2018, s. p.).

Recorte retirado do 'Álbum Vistas de Manáos', de 1897. FONTE: Instituto Moreira Salles.

O Jornal do Commercio, em 1948, na sua Coluna Social, recomenda para enfrentar o calor manauara, além dos lugares ventilados e dos banhos frios, "(...) roupas leves, folgadas e porosas" (JORNAL DO COMMERCIO, 25/05/1948, p. 02). Uniam-se aos tipos de vestimentas dos habitantes os mecanismos de amenização climática (arborização, fontes, chafarizes etc).

De 1965 a 1973 a pesquisadora Maria de Nazaré Góes Ribeiro, do INPA (Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia), analisou os aspectos climatológicos da cidade utilizando dados da Estação Metereológica da Reserva Florestal Adolpho Ducke. As menores temperaturas foram registradas em 1965 (17,3°), 1967 (15,1°) e 1968 (14,3°). Nesses anos as máximas foram de 37°, 36,6° e 36,6° respectivamente. (RIBEIRO, 1976, p. 231).

Entre as décadas 1960 e 1990 a cidade cresceu de forma desordenada em decorrência da migração ocasionada pela Zona Franca. Em 1960, de acordo com o IBGE, a população era de 175.343. 30 anos depois, em 1990, esse número saltou para 1.010.544 habitantes. Em uma cidade com um elevado déficit habitacional, foram necessárias, para abrigar tantas pessoas, a derrubada de áreas verdes e a ocupação de leitos de igarapés, o que alterou novamente a sensação térmica. Município e Estado foram incapazes de sanar tais problemas.

Pode-se concluir, sem querer encerrar o tema e levando em conta as lacunas da presente pesquisa, que o clima de Manaus não mudou. O que mudou foram as formas de amenização, que praticamente desapareceram. A cidade, em 2012, após pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), foi classificada como a segunda cidade menor arborizada do país com mais de 1 milhão de habitantes, ficando atrás apenas de Belém. Os igarapés e balneários foram poluídos e destruídos entre as décadas de 1970 e 1990. Manaus distanciou-se enormemente desses elementos, tornando seu clima cada vez mais menos suportável.


FONTES:


Relatório, 1905.

O Annunciador Commercial, 08/07/1899.

Mensagem, 10/07/1906.

O Marítimo, 16/05/1911.

Jornal do Commercio, 25/05/1948.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


AMAZONAS, Lourenço da Silva Araújo. Diccionario topográfico, histórico e descriptivo da Comarca do Alto Amazonas. Recife: Tipografia Comercial de Meira Henriques, 1852. (Biblioteca Guita e José Mindlin).

BATES, Henry Walter. O naturalista no rio Amazonas. Tradução, prefácio e notas do Prof. Dr. Candido de Mello-Leitão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1944. 2 v. (Coleção Brasiliana).

BITTENCOURT, Agnello. Fundação de Manaus - Pródromos e Sequências. Manaus: Editora Sérgio Cardoso, 1969.

FONSECA, Francisco Lourenço da. No Amazonas. Lisboa: Companhia Geral Typographica Editora, 1895.

PEDROSA, Fábio Augusto de Carvalho. Vida e Morte dos Igarapés e Balneários de Manaus. 24/10/2018. Disponível em: https://historiainte.blogspot.com/2018/10/vida-e-morte-dos-igarapes-e-balnearios.html. Acesso em 08/06/2021.

PEDROSA, Fábio Augusto de Carvalho. Modos e Modas dos Manauaras no século XIX. 02/11/2018. Disponível em: http://historiainte.blogspot.com/2018/09/modos-e-modas-dos-manauaras-no-seculo.html. Acesso em 12/09/2020.

RIBEIRO, Fabrício Leonardo. Cartas da selva: algumas impressões de Euclides da Cunha acerca da Amazônia. História: Questões & Debates, Curitiba, n. 44, 2006, p. 147-162.

RIBEIRO, Maria de Nazaré Góes. Aspectos Climatológicos de Manaus. Acta Amazônica, vol. 6, n. 2, jun. 1976,  p. 229-233.

SPIX, Johann Baptist von; MARTIUS, Carl Friedrich Philipp von. Viagem pelo Brasil: 1817-1820. Belo Horizonte: Editora Itatiaia, 1981.

SÁ, Jorge Franco de. Manaus: higiene, meio ambiente e segurança do trabalho na época áurea da borracha. Manaus: Edua, 2021.

SOUZA, Marina. Manaus e Belém são as capitais menos arborizadas, indica IBGE. G1 Amazonas, 25/05/2012. Disponível em: http://g1.globo.com/am/amazonas/noticia/2012/05/manaus-e-belem-sao-capitais-menos-arborizadas-indica-ibge.html. Acesso em 08/06/2021.

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