terça-feira, 23 de novembro de 2021

O jornal A Marreta e os homossexuais de Manaus (1912)

Edição de 03/11/1912 do jornal A Marreta.

Em 03 de novembro de 1912 o jornal A Marreta, dirigido por Chico Piaba, denunciou o crescimento vertiginoso do número de homossexuais - ou invertidos, como se dizia à época - em Manaus. Ele cobrava providências urgentes das autoridades, apresentando soluções como o encarceramento deles em uma ilha isolada, onde realizariam trabalhos forçados. Nesse período, marcado pelo controle social de práticas e saneamento urbano, a homossexualidade era entendida como um "distúrbio, anomalia, carecendo de cura, correção" (MOREIRA, 2012, p. 263). Esse recorte de jornal constitui-se, dessa forma, em uma importante fonte para os estudos sobre a História da sexualidade na cidade. Jornais desse tipo, explica a historiadora Maria Luiza Ugarte Pinheiro, se apresentavam como humorísticos, mas "[...] nada mais faziam do que externar críticas moralistas e propor ações segregadoras" (PINHEIRO, 2015, p. 231):

"A MARRETA

Augmenta, dia a dia, de uma forma assustadora entre nós, o numero dos invertidos.

Esses infelizes, inuteis a sociedade, que cospurcam os direitos sagrados da natureza, que envergonham o lar e a patria, gosam aqui de toda a liberdade no exercicio de suas infames profissões.

Nas immediações do botequim "O Malho", nas proximidades do Mercado Publico e em outros pontos desta cidade, á noite se encontram, a cada passo esses miseraveis de olhares languidos, de gestos afeminados, de falla docil, confabulando com os seus pares, se ajustando para a pratica dos actos indecorosos de que fazem vida.

Eles se conhecem, ao mais insignificante signal, segundo affirmam muitos medicos que tem estudado essa questão.

O dr. Jules Proust em sua importante obra, sobre este assumpto, affirma que entre os invertidos, existe como uma especie de maçonaria, de maneira que, os de todas as nacionalidades do mundo, se conhecem e se entendem logo da primeira vista.

Esse vicio terrivel, essa aberração, que une o homem de bem ao ladrão o elegante ao sujo, o miseravel ao abastado; essa infamia que torna o homem mais altivo - um timido, um covarde, um nada, vae progredindo em Manáos de tal forma, que se os homens que nos governam não tomarem providencias urgentes e sevéras, em breve as immediações do nosso Mercado estará como os Altos da Avenida da Liberdade e outros pontos da nossa cidade como o Poço dos Negros, em Lisbôa.

Em Portugal, (embora não haja uma justificativa para esse crime) muitos o praticam para saciarem a fome. E a fome é uma coisa negra!

Em Manáos, porém, não ha em absoluto derimente. Aqui, soffre a fome quem é inutil e o que é inutil deve ser lançado fóra do nosso meio.

Os invertidos de Manáos são de indole perversa, corruptos de natureza, excessivos e bandidos.

Convidamos pois a todos os homens de bem a levantarem campanha contra taes.

Se os nossos governantes quizerem expurgal-os de nosso meio, bem o podem. E' só uma questão de querer.

Pode-se arranjar uma ilha, e nella se colocar os invertidos, obrigando-os a trabalhos forçados.

E a se fazer isso, deve-se começar pelos grandes, que occupam logares importantes em nossa sociedade.

Aqui de "Marreta" em punho, estamos promptos a trabalhar pelo saneamento moral de Manáos".

(A Marreta, 03/11/1912, p. 01).


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


MOREIRA, A. S. A homossexualidade no Brasil no século XIX. Bagoas: Revista de Estudos Gays, v. 6, p. 253-279, 2012.

PINHEIRO, Maria Luiza Ugarte. Folhas do Norte: letramento e periodismo no Amazonas (1880-1920). 3° ed. Manaus: EDUA, 2015.

terça-feira, 16 de novembro de 2021

Vila Georgette, em Manaus

Vila Georgette. FOTO: Roberto Mendonça.

A Vila Georgette é uma vila de casas do início do século XX localizada na rua Lauro Cavalcante, no Centro de Manaus. É uma das construções mais tradicionais da cidade, chamando a atenção de quem passa por aquela parte do Centro Histórico. Quando foi construída? A referência mais antiga foi encontrada em uma edição de 1905 do Jornal do Commercio, em uma nota em que moradores da Avenida Silvério Nery (Joaquim Nabuco), com casas que davam para o fundo da vila, reclamavam sobre o lixo que era jogado naquelas imediações (JORNAL DO COMMERCIO, 07/09/1905, p. 01). Outras referências são encontradas em queixas dos moradores da vila, como a publicada em 17 de agosto de 1908 no Jornal do Commercio, em que eles denunciavam que a iluminação do beco que dava acesso às casas, todas as noites, por volta das 22:00 horas, deixava de funcionar, tornando o trânsito no local bastante perigoso (JORNAL DO COMMERCIO, 17/08/1908, p. 02). Nesse período (1900) seu endereço era a rua Henrique Martins. Esse trecho foi renomeado como Lauro Cavalcante apenas em 1917, em homenagem ao médico Lauro E. Cavalcante, falecido naquele ano. De acordo com o historiador Mário Ypiranga Monteiro, ela foi construída pelo comerciante português Isaías Bento Luiz, fundador da Central de Ferragens. Teve como último herdeiro Isaías Soares Bento (GUERREIRO, 2019, p. 75). Era bastante comum, em todo o Brasil, que comerciantes construíssem vilas para aluguel, de forma a incrementar a renda familiar. Eles supriam as demandas por habitação surgidas com o crescimento das cidades entre a segunda metade do século XIX e o início do século XX. Sua arquitetura é tipicamente portuguesa, em estilo eclético, sem maior rebuscamento arquitetônico. Analisando as publicações de jornais de época, percebe-se que os moradores da Vila Georgette pertenciam a diferentes classes sociais: eram operários, militares, funcionários públicos e pequenos comerciantes. Mário Ypiranga registra ainda que no porão da última casa funcionava o jornal Vanguarda, de Jacy Zany, onde iniciou sua carreira jornalística em 1927 (GUERREIRO, 2019, p. 75). Em 08 de agosto de 2012 um incêndio destruiu sete casas da vila (STRAHM; PEREIRA, 2012). Ela era formada por 16 casas, reduzidas a 09 após o incêndio.

Registros antigos da Vila Georgette. FONTE: MELLO, Thiago de. Manaus, amor e memória, 1983, p. 108-109.


FONTES:

Jornal do Commercio, 07/09/1905.

Jornal do Commercio, 17/08/1908.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

GUERREIRO, Ana do Nascimento. Vilas Urbanas de Manaus - Habitação Coletiva, Herança Cultural e Lugares de Memória (1900-1950). Dissertação (Mestrado em História), UFAM, 2019.

STRAHM, Bruno; PEREIRA, Camila. Incêndio atinge Vila 'Jorgete' no Centro de Manaus. A Crítica, 09/08/2012.

segunda-feira, 15 de novembro de 2021

O movimento Republicano no Amazonas

O Amazonas aderiu à República em 21 de novembro de 1889. Naquela data o último Presidente da Província, Manuel Francisco Machado, o Barão do Solimões, entregava o Governo à Junta Governativa Provisória, constituída por Domingos Teófilo de Carvalho Leal, Manoel Lopes da Cruz e Antônio Florêncio Pereira do Lago. Não chegou-se a constituir um movimento republicano de grandes proporções como em outras regiões do Império, o que não quer dizer que ele tenha sido menos importante.

O comerciante, arqueólogo, numismata Bernardo de Azevedo da Silva Ramos (1851-1931) registra que o movimento Republicano no Amazonas ia se desenvolvendo lentamente e fazendo adeptos da causa (RAMOS, 1929, p. 01). Um dos mais antigos republicanos do Amazonas foi o jornalista e historiador paraense Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha (1841-1919), filho do primeiro Presidente da Província do Amazonas, João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha (1798-1861). Bento Aranha defendia os ideais republicanos através da imprensa, criticando tanto a família imperial quanto o Governo da Província. Por suas ações chegou a ser preso e afastado de cargos públicos.

Em 29 de junho de 1889 foi fundado, no Largo de São Sebastião, o Clube Republicano do Amazonas (RAMOS, 1929, p. 01). Foram membros fundadores Domingos Theophilo de Carvalho Leal, Gentil Rodrigues de Souza, Bernardo de Azevedo da Silva Ramos, Olympio F. da Motta, Aureliano A. Fernandes, João Francisco Soares Filho, Graccho de Souza Freire, Manoel Carlos Cabral, Faustino L. Mendes, José Arthur Pinto Ribeiro Filho, João da Cruz M. Fernandes, Joaquim Serra Carvalho, Joaquim Ferreira Prata, José Telles de Souza Lima, João Rodrigues de Mello, José Pinto de Araújo Rebello Junior, Manoel Mendoza, J. V. Catharino Silva, Sergio Gollaço Vera, Raymundo Baptista Duarte, Antonio José Ferreira Netto, Francisco de Araújo Dias, Rodolpho Pinto Mesquita, Eduardo da Silva Perdigão, Capitão João Eneas da Silva, João Vianna, Julio Pinto de Almeida, Francisco Marques de Lemos Bastos, Antonio José Ferreira Netto, Hygino José Claudino Oliveira, Francisco Sisnando Baptista, Almachio Alisidino Pinto Bandeira, Francisco de Barros Cardoso, Ernesto de Pinho Ferreira, Trajano Gomes da Costa, José Jeronymo Bandeira de Mello, Augusto Botelho da Cunha e João Gonçalves Pinto (RAMOS, 1929, p. 01).

A instalação do Clube Republicano do Amazonas ocorreu em 03 de julho, data em que aportou na cidade Luís Filipe Maria Fernando Gastão de Orléans, o Conde d'Eu (1842-1922), em viagem às Províncias do Norte do Império. A direção do clube distribuiu boletins convidando a população para a solenidade, protestando contra o fato de só existirem no Amazonas jornais que defendiam a Monarquia. Bernardo Ramos conta que um desses boletins chegou às mãos do Conde d'Eu, que perguntou ao Presidente da Província: "Também por cá já há disto?". O Presidente, confirmando, perguntou se ele não gostaria que os membros dessa organização fossem castigados, no que ouviu: "Não, não vim aqui tolher a liberdade de ninguém" (RAMOS, 1929, p. 01). De acordo com Arthur Cezar Ferreira Reis, os republicanos lançaram um manifesto em que pediam, além da Proclamação da República, 

"[...] o restabelecimento do crédito e das finanças da província, diminuição dos impostos, garantia do funcionalismo provincial e municipal, organização do ensino público tornando-o livre, criação de escolas técnicas e agrícolas, proteção ao indígenas, desenvolvimento da navegação interna e externa pela livre concorrência, desenvolvimento da indústria fabril, rural e comercial, organização do trabalho" (REIS, 1989, p. 243).

No dia 21 de novembro surge o jornal O Americano, com redação e tipografia na Praça Tamandaré, atual Tenreiro Aranha. Essa folha era descrita como uma defensora dos ideais republicanos, contra a monarquia e seus privilégios. Nesse mesmo dia, após quase uma semana do ocorrido, chegou à Manaus a notícia de que na capital Federal os militares haviam proclamado a República. Arthur Cezar Ferreira Reis explica com detalhes como a notícia chegou ao Amazonas: "Não havia telégrafo pondo o Amazonas em comunicação com o Sul. A linha chegava apenas até Belém, de sorte que só à tarde, às 17 horas de 21 de novembro, fundeado no porto de Manaus, o vapor Manaus, da Companhia Brasileira de Navegação, hoje Lloyd Brasileiro, soube a cidade do que se estava passando no país" (REIS, 1989, p. 244). Joaquim Travassos da Rosa, Antonio Filipe de Souza e Antônio Pedro Borralho, membros da Junta Provisória do Pará, inteiraram o Clube Republicano do Amazonas sobre os fatos que haviam ocorrido no Rio de Janeiro.

A adesão à República ocorreu no Eden-Theatro, localizado na Praça Dom Pedro II, posteriormente Praça da República. Ali foi organizado um governo provisório constituído por três membros do Clube Republicano do Amazonas: Domingos Teófilo de Carvalho Leal, Manoel Lopes da Cruz e Antônio Florêncio Pereira do Lago. O novo governo, ao lado da população, que estava eufórica, se dirigiu ao Palácio do Governo (Paço da Liberdade) ao som da Marselhesa, onde encontrou o Presidente da Província, Manuel Francisco Machado, o Barão do Juruá. Ele não ofereceu resistência, entregando o cargo.

Ao comentar a Proclamação da República, um articulista de O Americano escreveu:

"O povo brazileiro, neste momento solemne em que se apresenta perante o mundo proclamando a sua liberdade, e expulsando do seio da patria os vampiros da realeza, essa familia privilegiada que especulava com a nossa generosidade, para alimentar a vaidade de uma supposta fidalguia, o povo brazileiro se mostra verdadeiramente heroico, verdadeiramente grande" (O AMERICANO, 21/11/1889, p. 01).

O Governo Provisório do Amazonas administrou o Estado até 04 de janeiro de 1890, quando foi nomeado para o cargo o político e militar gaúcho Augusto Ximeno de Vilerroy (1862-1942), que o ocupou até 02 de novembro do mesmo ano. Nesse pouco tempo empreendeu algumas mudanças: dissolveu a Assembleia Provincial e as câmaras municipais, fazendo novas nomeações, acabou com o ensino religioso, criou novas escolas, o Instituto Normal Superior e extinguiu o Museu Botânico. Encerra-se assim a primeira fase do movimento republicano no Amazonas.

FONTES:

O Americano, 21/11/1889.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

RAMOS, Bernardo de Azevedo da Silva. A República no Amazonas, I. Jornal do Commercio, Manaus, 09/06/1929, p. 01-01.

RAMOS, Bernardo de Azevedo da Silva. A República no Amazonas, II. Jornal do Commercio, Manaus, 23/06/1929, p. 01-01.

REIS, Arthur Cezar Ferreira. História do Amazonas. 2° ed. Belo Horizonte: Itatiaia [Manaus]: Superintendência Cultural do Amazonas, 1989.

segunda-feira, 1 de novembro de 2021

Lágrimas de Saudade: o Dia de Finados

Cemitério de São João Batista, em Manaus, durante o Dia de Finados de 1935. Colorização digital. FOTO: Robert Swanton Platt. FONTE: University of Wisconsin - UWM Libraries.

Hoje boa parte da humanidade reverenciará seus mortos. A História registra que a data foi instituída primeiramente na Abadia de Cluny, na França, em 02 de novembro de 998 pelo Abade Odilon, posteriormente Santo Odilon (962-1049). Ele determinou que a partir daquele momento, em todo 02 de novembro, Igreja e comunidade dedicariam orações aos mortos para que estes diminuíssem a estadia no Purgatório e alcançassem o Paraíso. A partir daí a data tornou-se uma das principais do calendário cristão. Mas muito antes disso os seres humanos já se dedicavam com afinco aos que faleciam. Os homens pré-históricos enterravam seus semelhantes com objetos como pedras, conchas, estatuetas e armas, o que mostra, já naquele período, a crença na vida após a morte. O filósofo e antropólogo francês Edgar Morin, autor de O Homem e a Morte (1970), afirma que não existe nenhum grupo, por mais arcaico que seja, que abandona seus mortos, e que os cuidados dedicados a eles, como a construção de monumentos, são uma das principais características de nossa espécie.

Quando os portugueses e espanhóis chegaram à América, depararam-se com diferentes sociedades, cada uma com suas formas de encarar a morte. Os Maias e Astecas, por exemplo, celebravam seus mortos no nono mês do calendário solar, realizando grandes festas com banquetes, danças e músicas. Os povos do litoral brasileiro, registrou Frei Vicente do Salvador em História do Brasil (1500-1627), embrulhavam os cadáveres nas redes em que dormiam e os sepultavam em covas profundas com comida, tabaco, água e armas. As mulheres e filhas se pintavam e choravam dias a fio. Às práticas nativas mesclaram-se as oriundas da Velha Europa Medieval, Cristã Católica. Em seguida vieram as influências africanas através dos escravos, com seus cultos aos ancestrais. Os enterros, como já ocorria na Europa desde a Antiguidade tardia, passaram a ser realizados no interior e ao redor das igrejas. Quanto mais importante e rica a pessoa, mais próxima do altar ela era sepultada. Ricos templos de Salvador, Recife, Rio de Janeiro e Minas Gerais ainda ostentam lápides de séculos passados.

Os cemitérios como conhecemos são produto de uma nova mentalidade em relação à morte surgida entre os séculos XVIII e XIX. Os enterros em Igrejas e seus terrenos passaram a ser combatidos em nome da saúde pública, pois esses lugares estavam localizados na área urbana, emanando, segundo especialistas, gases putrefatos sobre a população. Médicos recomendaram às autoridades a construção de cemitérios afastados das regiões mais habitadas. Mas mesmo na Europa, dita adiantada, foi encontrada resistência por parte dos adeptos desse costume. Cemitérios no Brasil apenas por volta de 1850, quando epidemias de cólera e febre amarela forçaram suas construções. Em Manaus, então Cidade de Nossa Senhora da Conceição da Barra do Rio Negro, os mortos eram enterrados na antiga Igreja de Nossa Senhora da Conceição, na Igreja de Nossa Senhora dos Remédios e em seus largos. Crianças, jovens e adultos enterrados em terrenos úmidos, pegajosos, muitas vezes impróprio, mas santos. Era o que importava no final. Era no claustro da Igreja de Nossa Senhora dos Remédios que a família Antony ia chorar a sua inocente Leocádia, falecida em 09 de janeiro de 1854 e ali sepultada. Era nas Igrejas que a população da Barra visitava seus entes queridos. O primeiro cemitério da cidade surgiu de improviso em 1854 através do cercamento do terreno que ficava atrás da Igreja dos Remédios e que já era utilizado como local de sepultamento. O Cemitério dos Remédios funcionou até 1856, quando, sem espaço para receber a grande quantidade de vítimas da febre amarela, foi desativado. Nesse mesmo é aberto na Estrada da Cachoeira Grande (Avenida Epaminondas) o Cemitério de São José, concluído em 1859.

Por mais de três décadas as romarias de Dia de Finados dirigiram-se ao Cemitério de São José, à época em região afastada da zona urbana, como preconizavam as autoridades. Em frente a ele foi aberto, em 1865, um largo, logo batizado de Largo da Saudade, hoje Praça da Saudade. Os preparativos começavam semanas antes, com a limpeza e ornamentação dos túmulos. As visitas tinham início no dia 01. Seguia-se um roteiro. Às 9 horas eram realizadas as missas e a encomendação das almas pelo Vigário Geral. As músicas eram cantadas pelos alunos do Instituto de Educandos Artífices. Novos ofícios religiosos eram realizados pela parte da tarde. À noite encerrava-se a visitação. Sobre a comemoração de 1885, um articulista do ‘Jornal do Amazonas’ escreveu que “a concorrência foi enorme, e a dor foi sincera”. O mesmo ocorria distante do Centro, no bairro de São Raimundo, que contava com um cemitério para as vítimas da varíola desde a década de 1870. Em 1888 ele passou a atender o público em geral. A memorialista Elza Souza, autora de Do “Alto” da minha colina – sem os bucheiros o bairro de São Raimundo Perdeu o Encantamento (2008), registra que algumas famílias abastadas da cidade construíram no local mausoléus luxuosos, que contrastavam com os montículos de terra das pessoas mais humildes oriundas do próprio bairro, habitado em sua maioria por retirantes, pescadores e operários.

Os cemitérios de São José e de São Raimundo, ambos sem espaço, foram desativados em 1891, ano em que foi inaugurado, no dia 05 de abril, o Cemitério de São João Batista, no antigo bairro do Mocó (Vila Municipal, Adrianópolis/Nossa Senhora das Graças), ainda hoje em atividade. O novo cemitério era obra do Governo modernizador de Eduardo Gonçalves Ribeiro (1862-1900). Manaus, agora capital da borracha, necessitava de obras à altura de sua nova condição de cidade exportadora e centralizadora das atividades econômicas da região. A necrópole, melhorada ao longo dos anos, tornou-se reflexo dessa busca pelo progresso. Cemitério da elite, espaço cívico, última morada de grandes personalidades e pessoas afortunadas, enterradas nas quadras principais em mausoléus suntuosos, verdadeiras obras de arte esculpidas em mármore e assinadas por marmorarias e artistas renomados. O luxo em um local em que se acreditava ocorrer um nivelamento social explica-se pelo desejo do burguês de buscar sempre diferenciar-se e atestar seu poder. O homem continuaria vivendo enquanto fosse lembrado, defendia a filosofia Positivista. Cemitério também do povo, mas em quadras mais afastadas e em jazigos simples. Diferenças em vida que permaneciam na morte. Que trágico e poético.

A Prefeitura organizava – como ainda faz – todos os detalhes para as comemorações. Cuidava da limpeza das quadras, do aparo da vegetação, da disponibilização de bondes suficientes para levar a população para o Cemitério de São João Batista e da segurança pública. Nos jornais eram publicados anúncios de venda de velas, flores, cruzes, imagens sacras, instalações elétricas e outros adereços para túmulos. Em frente ao cemitério eram instaladas barracas para a venda de comidas e bebidas. A mesma agitação era verificada nos bairros periféricos de São Raimundo e Colônia Oliveira Machado. Este último tinha um cemitério, o de São Francisco, aberto no Governo de Constantino Nery (1904-1908). Nessa época, e por época podemos compreender aqui o período 1890-1960, utilizava-se uma indumentária própria para esse dia. De acordo com o antropólogo e historiador Thales Olympio Góes de Azevedo, autor de ‘Ciclos da vida: ritos e ritmos’ (1987), as mulheres usavam roupas pretas e roxas em combinação com o branco e véu para cobrir o rosto. Os homens usavam fumo no braço direito ou na lapela e roupa escura, cinza e branca. Essas cores eram associadas à morte e ao luto. 

Na década de 1960 os cemitérios de São João Batista, Santa Helena, no bairro de São Raimundo, e São Francisco, no bairro Colônia Oliveira Machado, já estavam sem espaço. Para sanar esse problema foram construídas na década seguinte mais duas necrópoles: o Cemitério de Nossa Senhora de Aparecida, conhecido como Cemitério Tarumã, e o Cemitério Parque de Manaus, ambos localizados no bairro Tarumã, na zona Oeste. O Cemitério Parque de Manaus seguia o modelo dos modernos cemitérios parques norte-americanos, sem construções e apenas com placas de identificação. Abria-se um novo tempo, o da praticidade. Economizava-se tempo e dinheiro.

Que alívio, depois de um ano turbulento por conta da Covid-19, que acabou impedindo a visitação aos campos santos em novembro de 2020, poder se deslocar para reverenciar aqueles que foram caros em vida. O mesmo ocorreu em 1918, durante a pandemia de Gripe Espanhola. Nesse Dia de Finados o manauara visitará não só o Cemitério de São João Batista, entre os bairros de Adrianópolis e Nossa Senhora das Graças, o Cemitério de São Francisco, hoje no Morro da Liberdade, o Cemitério de Nossa Senhora de Aparecida e o Cemitério Parque de Manaus, no bairro Tarumã, mas também o Cemitério de Nossa Senhora da Piedade, no Tarumã; e o Cemitério de Santo Alberto, na Colônia Antônio Aleixo. Não mais de bonde, mas de carro e ônibus. Nem de preto, cinza, branco ou roxo. Os simbolismos foram abandonados. Mas irá com o mesmo sentimento de saudade que tão bem caracteriza essa data há milênios.


Cemitério de São Francisco, em Manaus

Alguns jazigos do Cemitério de São Francisco. FOTO: Roberto Mendonça, 2018.

A Colônia Oliveira Machado, inicialmente conhecida como Colônia Santa Maria, era uma colônia agrícola criada pela Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas em 08 de julho de 1854. Nela trabalhavam colonos de origem portuguesa e espanhola que vieram para o Brasil para substituir a mão de obra escrava africana após o fim do tráfico de escravos em 1850. A colônia não apresentou resultados satisfatórios, ficando abandonada até 1888, quando passou a receber famílias de migrantes nordestinos que fugiam da seca. Em 02 de abril de 1889 o Presidente Joaquim de Oliveira Machado a batizou com o seu nome (LEÃO, 2010). O local carecia de boa infraestrutura. Faltava o básico, como escolas, estabelecimentos comerciais e um cemitério público, que só surgiria no final daquele século. Antes disso, os moradores mais antigos relatam que os enterros eram feitos nos terrenos de suas propriedades.

O Cemitério da Colônia Oliveira Machado, dito de São Francisco (atualmente localizado no bairro Morro da Liberdade, surgido através de desmembramento da Colônia Oliveira Machado), tem origens que remontam ao ano de 1898. No Governo de José Cardoso Ramalho Júnior foi decretada a Lei N° 240 de 13 de Outubro daquele ano, que “auctoriza o Governo do Estado a abrir o crédito necessario para a construcção de um cemiterio na colonia ‘Oliveira Machado’” (DIÁRIO OFFICIAL, 19/10/1898, p. 01). Autorizada a abertura de crédito, o cemitério foi aberto e concluído anos mais tarde “[…] pelo governo do Estado na administração do Dr. Antonio Constantino Nery [1904-1908]” (RELATÓRIO DA COMISSÃO ORGANIZADORA DO TOMBO DOS PRÓPRIOS DO MUNICÍPIO, 1922). Durango Duarte cita o ano de 1908 como sendo o de sua fundação. O primeiro enterro, de Manoel José de Santana, foi realizado em 12 de maio daquele ano (DUARTE, 2009, p. 153).

Mesmo sendo contemporâneo do Cemitério de São João Batista, sua localização e, claro, a condição de cemitério suburbano, o tornava um local de difícil acesso pelo poder público, o que o fazia sofrer com problemas em sua estrutura e conservação. Em relatório apresentado ao Conselho Municipal em 05 de outubro de 1909, o Superintendente Agnello Bittencourt afirmava que o cemitério da Colônia Oliveira Machado estava “com a cerca a desabar” (RELATÓRIO, 05/10/1909).

Apesar da situação de abandono, os moradores da região não deixavam se relacionar com esse espaço. No dia 01 de janeiro de 1908, Luiz Maciel de Mattos ofereceu um cruzeiro ao cemitério da Colônia Oliveira Machado em agradecimento ao fato de o bairro não ter sido atingido pela varíola em 1907. Durante a entrega compareceram 500 pessoas, que comemoraram o acontecimento com a queima de fogos (JORNAL DO COMMERCIO, 03/01/1908, p. 01).

Em 1928, pensando na acessibilidade dos frequentadores, o vereador Severiano de Souza apresentou à Câmara Municipal um parecer autorizando a Prefeitura a abrir uma estrada que ligasse o bairro de Constantinópolis (Educandos) ao Cemitério da Colônia Oliveira Machado (JORNAL DO COMMERCIO, 11/05/1928, p. 01). Apenas em 1937 essa estrada seria aberta, ligando o cemitério à Estrada João Zany por um ramal acessível a veículos. As obras foram realizadas por Pedro Telles pela importância de 2:136$258 réis (MENSAGEM, 15/04/1937).

Uma caminhada por essa necrópole nos permite observar sua simplicidade e o histórico abandono. Construída em terreno de geografia ondular, caracterizada por pequenas e médias elevações, não possui túmulos suntuosos. Os jazigos familiares são simples, construídos em sua maioria por pedreiros e também por pessoas sem experiência na área, com materiais como tijolos e azulejos. Alguns exemplares são de mármore e granito, revelando certo poder aquisitivo dos proprietários. Aos interessados em visitá-lo, ele está localizado na antiga rua Coronel Pedro de Souza, atual Antônio Lacerda, no bairro Morro da Liberdade.


FONTES:


Diário Official, 19/10/1898.

Relatório da Commisão Organizadora do Tombo dos Próprios do Município, Manáos, Typographia Cá & Lá, 1922.

Relatório apresentado ao Conselho Municipal em sessão extraordinaria de 5 de Outubro de 1909 pelo Superintendente Cel. Agnello Bittencourt.

Jornal do Commercio, 03/01/1908.

A edilidade. Jornal do Commercio, 11/05/1928.

Mensagem que o Prefeito de Manaos Agronomo Antonio Botelho Maia dirigiu á Camara Municipal em a primeira reunião ordinaria de 15 de abril de 1937.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


DUARTE, Durango Martins. Manaus entre o passado e o presente. Manaus: Ed. Mídia Ponto Comm, 2009.

LEÃO, Hamilton de Oliveira. Colônia Oliveira Machado. Manaus: Edições Muiraquitã, 2010.