O presente texto foi produzido pelo autor convidado Marcos Vinicius Alvarenga¹, acadêmico de História da Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Em Patrimônios Históricos: Ensino, pesquisa, teorias e metodologias, Marcos procura problematizar, através de uma ampla discussão, a noção de patrimônio histórico, discussão essa relacionada aos sujeitos históricos, aos lugares de fala e aos discursos que foram e continuam sendo fabricados.
Marcos Vinicius Alvarenga
Cotidiano da Comunidade Quilombola do Alto da Serra, no Distrito de Lídice, no município de Rio Claro, região do Médio Paraíba do Rio de Janeiro. Foto de 2015.
Há
um questionamento importante a ser feito:
“Por que conhecemos o inventor da lâmpada, mas não conhecemos o
inventor da canoa? ” Estamos
diante de uma ferramenta extremamente sofisticada, capaz de manter um
pescador e o fruto de seu labor ao longo do curso de rios caudalosos
em demasia como os da bacia do Amazonas sem que o primeiro, seu
condutor, se afogue!
Vamos
levar a discussão um pouco mais adiante com outro exemplo: “Por
que consideramos tão facilmente as casas brancas presentes nas
elevações das ilhas gregas do Mediterrâneo como ‘patrimônio’,
mas não o fazemos para com os cortiços ou as casas da comunidade do
Vidigal, no Rio de Janeiro?” Ora,
se pintarmos as da última localização e tirarmos uma foto poderia
até ser confundido um espaço com o outro! E, para encerrar a sessão
de perguntas, faço uma terceira “Por
que as vestes de um monarca europeu são cuidadosamente preservadas,
ao passo em que as de um escravo de origem africana do século XIX
não?”
O
objetivo deste artigo é problematizar em cima destas indagações,
evocando uma discussão mais ampla acerca do que são patrimônios
históricos, com base em exemplos fornecidos por outros escritos,
como o magnífico trabalho do professor Gerson Rodrigues
de Albuquerque, os “Trabalhadores
do Muro, o rio das cigarras”,
que estabeleceu um perfeito diálogo com suas fontes; mais do que
fontes, Gerson deu voz a sujeitos! Sujeitos em meio a suas vivências,
agentes ativos de sua própria história e não marionetes de um
teatro estruturalista em que são submissos aos seus dominantes.
Gerson
não fez uso de um monólogo do historiador 100% objetivo, o
cientista que conta as coisas “Tal
como aconteceu”, e
o “narrador”, mas estabeleceu um verdadeiro diálogo mútuo.
Marcos Silva, ao tratar-se do primeiro caso, afirma: “Narrações
orais e outros itens de patrimônio histórico, quando assim
tratados, são metamorfoseados em cadáveres dissecados pelo
analista, sem se estabelecer um diálogo entre as partes, que poderia
ser esclarecedor para ambas. “ (SILVA,
p 42)
Cabe
a nós, com nossos trabalhos de PIBIC, nossas monografias e
futuramente, nossos trabalhos de mestrado e doutorado, dar voz aos
mais diversos sujeitos (que também constituem um patrimônio!). Por
que não fazer uma história das crianças que moram na rua? Ou uma
história das empregadas domésticas? É preciso rememorar os
esquecidos do passado, tal como apontou Walter Benjamin em suas
“Teses
sobre o conceito de História”. Mesmo
que muitos do curso de História possuam como objetivo somente a sala
de aula (ensino fundamental e médio) isso também se faz necessário,
diria que ainda mais necessário! Os alunos e alunas precisam ter a
consciência de que a História é muito mais que um marechal que
“proclama” uma república, e que ele e seus pais, que são
trabalhadores, também são sujeitos históricos.
Antes
de tratarmos de patrimônio de forma mais ampla é necessária uma
discussão acerca do que chamamos de “fontes”. De acordo com a
abordagem inicial do livro “A
Pesquisa em História”, uma
parceria de Maria do Pillar, Maria do Rosário e Yara Maria, durante
o século XIX, quando a História ganha um status de “ciência”
pelos positivistas, a palavra “documento” passa a ser usada como
sinônimo de prova científica. Como documento, no sentido
positivista da palavra, entendemos o que é escrito, e não é
qualquer escrita, mas sim aquela emitida pelos governos, em síntese,
nestes é que reside a “verdade”.
Isso
configura algo demasiadamente problemático pois, supõe que a
História é feita somente por grandes heróis, onde estão as
mulheres, os trabalhadores e as crianças nessas narrativas? Outro
grande problema nisso é a negação de história a povos que relatam
suas trajetórias não por uma via da escrita, mas por uma rica
oralidade. É dizer, por fim, que os griots,
mestres
da tradição oral no continente africano, não possuem história.
Estariam eles eternamente condenados pela afirmação de Friedrich
Hegel de que o continente africano não possui história?
Com
contribuições como a da Escola dos Annales,
a
História passará a abarcar aspectos sociais, para além desses
“grandes homens”, como estudos sérios acerca dos campos, como
foi o caso de Marc Bloch, este que em seu livro “Apologia da
História ou o Ofício do historiador” defende que a história é a
ciência dos homens, mas que diferente da Sociologia ou da
Antropologia, tratam deste homem no tempo.
Neste
bojo, a escrita da História passa a estar lastreada em qualquer
vestígio humano, desde a literatura de um dado período, como também
a música, o cinema, e a própria história oral. Além de todo este
advento, supera-se a ideia de que o “documento
fala por si mesmo”,
é preciso fazer perguntas a ele. Entender, por exemplo, que não se
vai retirar um mero reflexo de uma dada sociedade em uma obra
literária, mas sim uma expressão das representações acerca desta.
Um
relato de viajante, outro tipo de fonte, não nos mostra a “verdade
absoluta”, mas sim a forma como aquele viajante representou aquele
dado local ao qual esteve ciente, com seus preconceitos e valores.
Ninguém é isento! Nem mesmo o historiador que escreve um dado
texto, a forma como este visualiza a realidade se reflete muito na
sua escrita.
Considerei
de suma importância para a discussão acerca de patrimônio a
abordagem realizada no livro “A
Pesquisa em História” sobre
a condução de uma pesquisa. Ela se encaixa perfeitamente ao Gerson
Rodrigues e da forma como este o conduziu, de modo a abarcar com mais
vida o seu objeto. Como ressaltei no início, mais do que uma “fonte
friamente analisada”,
o professor da Universidade Federal do Acre reconstituiu vivências
de pessoas que “tem
nome e tem rosto”, como
o sr Francisco e do sr Maurício em suas vivências naquela mata em
torno do rio Muru, este que, é de fato um patrimônio histórico,
conforme abordarei mais adiante com profundidade maior.
Retomando
à obra metodológica e teórica, sua abordagem sobre a condução de
uma pesquisa, nos é feito um importante alerta acerca do diálogo
com as fontes. Muitos trabalhos fazem uso de um “método prévio”
tal como uma “receita de bolo”, para que assim se possa analisar
suas fontes, percorrendo um caminho com início, meio e fim, herança,
segundo as autoras, cientificista do século XIX: “
Esta forma de se conceber a pesquisa histórica supõe uma submissão
do historiador, tanto aos procedimentos do método como aos recursos
da técnica, pois a ênfase recai nos procedimentos do pesquisador em
detrimento de sua relação com o objeto”.
(p 40)
Mais
adiante, evoca os argumentos do historiador Ciro Flamarion Cardoso,
afirmando que as perguntas que devemos fazer as fontes devem ser
feitas não nas fontes em si, mas antes baseadas em arcabouços
teóricos e metodológicos prévios. As autoras fazem um contraponto
a isso, defendendo um diálogo ainda maior com as fontes a fim de dar
sequência com um bom trabalho.
Não
cabe, vale lembrar, se desvencilhar de quaisquer métodos ou “base
teórica”, Gerson Rodrigues, por exemplo, dialoga com Thompson em
sua valorização da experiência dos trabalhadores do rio Muru, mas
sim não serem esses os nortes pelos quais uma pesquisa seguirá;
acrescentaria que é preciso que esses arcabouços não ofusquem
esses “esquecidos” que, como ressaltados, são sujeitos de sua
própria história!
Certa
vez, um professor da graduação (o nome e a disciplina ministrada
serão resguardados por questões éticas), contou de um caso em que
foi chamado para uma banca de mestrado, cujo trabalho se propunha a
abarcar as vivências dos seringueiros. Ao ler o trabalho da
mestranda, tudo o que pode ver nele eram “teorizações
mirabolantes” sobre as ideias de Bourdieu e Foucault. “Mas
menina, onde estão suas fontes? Que que o Bourdieu entende se
seringueiros?!”
Na
anedota acima, muitos graduandos interpretaram o docente como se
estivesse censurando o uso de teóricos, ou, mais especificamente,
desses dois teóricos. Isso é cair em um grande engano: sua crítica
se relacionava com a feita pelos demais autores aqui mencionados: a
censura a trabalhos onde você parte muito da teoria para a prática,
ou à aqueles em que você só fica na teoria e não aborda os
patrimônios históricos no que eles são, em um contato que remete
até mesmo a afetividade.
Podemos
fazer um paralelo entre a noção tradicional de documento como algo
escrito, e escrito por pessoas “relevantes”, e que prova com a
noção de patrimônio histórico como estritamente arquitetônico.
Quando
falamos em patrimônio histórico muito provavelmente o que vem na
mente de uma pessoa é o Teatro Amazonas, o Teatro Municipal de São
Paulo (o próprio Marcos Silva o explora como exemplo em seu texto),
ou o famoso Cristo Redentor. Dificilmente as pessoas reconheceram
como patrimônio um sotaque, uma determinada festividade, ou
(retomando para o exemplo inicial) uma canoa. No entanto, Marcos
Silva nos adverte que essa diversificação não deve ser confundida
com a diversidade de temas abordados pelos historiadores: “(...)
está-se diante de fazeres sociais. Para cada material interpretado,
há um contato com lutas, acordos, potencialidades, limites. ”
Ele
faz este alerta sobretudo para os relatos orais, como já mencionado
e citado anteriormente para se referir ao trabalho de Gerson. E mais
do que isso, a canoa usada por esses sujeitos, sua fala, suas
histórias da mata, a forma como executam o trabalho, todos são
patrimônios que contém trajetórias de vida imbuídas.
Marcos
Silva aponta para a não separação de patrimônio histórico de
ensino de história, mostrando como ambos estão inteiramente
ligados. São, segundo ele, partes de um mesmo processo, onde se
procura
“(...)
evidenciar múltiplas virtualidades e opções contidas no ensino de
história como experiência que abrange o domínio ampliado sobre um
campo erudito e o diálogo com os universos de vivências sociais dos
grupos humanos estudados e daqueles que o estudam. “
(SILVA, p 40).
Eis
a importância inclusive de se estabelecer um diálogo em sala de
aula sobre a própria noção de patrimônio a fim de destruir este
“lugar comum” que o define como um elemento arquitetônico, na
grande maioria algo que de fato é pertencente à elite, em que
muitas vezes o aluno de uma família proletária não o identifica
com suas vivências e tradições; ao ampliar o leque deste debate,
se evidencia que elementos banalizados, como sua fala, também se
trata de um patrimônio histórico.
Marcos
Silva trata disso no exemplo do Teatro Municipal de São Paulo, local
criado especificamente para a elite no século XX e que, ainda hoje,
mesmo com atrações gratuitas, muitas pessoas humildes possuem uma
certa vergonha de assistirem a um espetáculo; é possível fazer um
paralelo deste exemplo com o Teatro Amazonas, onde de fato há muitas
atrações gratuitas nos dias atuais, mas que muitos manauaras
possuem receio de assistirem às atrações.
REFERÊNCIAS
ALBUQUERQUE,
Gerson Rodrigues de. Trabalhadores do Muru, o rio das cigarras. Rio
Branco/AC, EDUFAC, 2005.
BLOCH,
Marc. Apologia da história, ou, O ofício de historiador. Rio de
Janeiro/RJ, Jorge Zahar, 2001.
BURKE,
Peter. O que é História Cultural? Rio de Janeiro/RJ, Jorge Zahar,
2008.
HERNANDEZ,
Leila Leite. A África na sala de aula: visita à história
contemporânea. São Paulo/SP, Selo Negro, 2005.
SILVA,
Marcos. História: o prazer em ensino e pesquisa. São Paulo/SP,
Brasiliense, 1995.
VIEIRA,
Maria do Pilar; PEIXOTO; Maria do Rosário; e KHOURY, Yara Aun. A
Pesquisa em História. São Paulo/SP, Ática, 1989
SOBRE O AUTOR
¹ Marcos Alvarenga é graduando em Licenciatura Plena em História pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM). Seus interesses de pesquisa remetem ao estudo da nacionalidade através da literatura em África, a negritude e a presença negra na Amazônia.
CRÉDITO DA IMAGEM:
www.ceert.org.br