quarta-feira, 25 de outubro de 2017

A Loucura mora aqui? O Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro

Um interno do Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, em Manaus. Foto de Rogélio Casado, 1980.

Há quase dois séculos foi erguido o primeiro hospício do Brasil, batizado de Hospício Pedro II, também conhecido como Palácio dos Loucos. Aos moldes franceses, crescia a preocupação com o higienismo e a aparência da cidade. Até 1830, os considerados mentalmente incapazes, desde que não fossem agressivos, podiam circular livremente. Caso fossem agressivos, eram enviados para a cadeia, dividindo espaço com criminosos de diferentes naturezas. A necessidade de um local específico, a penetração de discursos cientificistas e de manutenção da moral e da ordem pública fez surgir os Hospícios, Colônias de Alienados e Asilos para onde passaram a ser enviados todos aqueles que perturbassem a ordem cotidiana: alcoólatras, mendigos e loucos. Recupero, a seguir, uma matéria sobre as condições de vida dos internos do Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro publicada em 1986, época em que discutia-se a reforma psiquiátrica no Brasil, com o nome A loucura mora aqui?

A Loucura mora aqui?

“Quem são eles, que têm vários nomes, arrancam da vida um momento de dor e espanto e partem de dentes cerrados para o outro lado do delírio?”
Ana Célia Ossame

As alucinações vagem solitárias pelos corredores, torturantes alucinações de olhos grandes e pretos, que parecem querer devorar com o simples olhar. É a loucura? É a loucura? Quem saberia dizer… se sobre o cimento e sob o sol, ela repousa numa distância infinita de todos, aquecendo ainda mais a fogueira da dor que parece sentir. Estranho esse momento, em que a vida não passa na porta e encosta na parede, sem descansar nem cansar e nem se queimar com as faíscas da solidão.

Estranho dizer loucura para esses olhares doloridos de querer tocar, tocar, tocar, sem usar as imperfeições das palavras porque o tocar é que é completo, denso e bom.

Impossível não dizer já que não se sabe a dor de uma poeirinha nos olhos ou de um punhal no coração. Ou a dor da loucura.

Se ela dói, é por causa dos portões fechados, do medo que inspira, do medo que temos de ultrapassar a violência de viver pela paciência de sonhar, de olhos abertos. Sabe onde mora a loucura? Dizem os “lúcidos” que é ali, num grande casarão com cheiro de detergente pelos corredores chamado Eduardo Ribeiro, “O Pensador”.

Pensa-se que ali, guarda-se num canto escuro, nos murmúrios, gritos, alucinações, dos loucos da cidade. Loucos, agressão? “A agressividade está na sociedade, diz imediatamente o psiquiatra da Universidade do Amazonas, Manoel Dias Galvão que num gesto de “loucura” quebrou todos os equipamentos de tortura aos doentes mentais. Esse é o seu orgulho, de ter rompido definitivamente com os métodos usados na Idade Média para reprimir os loucos. Mas quem são eles, que tem vários nomes, arrancam da vida um momento de dor e espantoso e partem de dentes cerrados para o outro lado do delírio? Já lhes tiraram os nomes, as formas, amarraram seus braços e pernas, seguraram seus pescoços e salvaram a sociedade de mais uma psicose. E quantas vezes isso não custou uma ferida no corpo e um golpe seguro no coração, se eles definitivamente só querem tocar, tocar, a plenitude do tocar.

Hoje, eles se cruzam com mais frequência nos corredores do “Eduardo Ribeiro”, o Hospital Psiquiátrico de Manaus, o único do Estado, com 60 leitos para toda a população quando a Organização Mundial da Saúde, diz que deve existir 1 leito para cada 1000 habitantes. Estão abarrotando a frágil estrutura do velho casarão e precisam de alimento, roupa e remédios.

E eles são os indigentes “selvagens” que perderam o lugar no trem descarrilhado da sociedade e quiseram usar as asas que dizem ter. Rasgam as roupas que prendem as asas e protegem da pureza do sol que queima o corpo até arrebentar a vida mora ali.

O viver claro de não aceitar o relógio de ponto, o salário mínimo, o trânsito. “Loucos são os que estão matando gente de graça por aí no trânsito”, dizem os psiquiatras Silvério Tundis, Manoel Galvão. Para esses, no entanto, não há mais lugar no “Eduardo Ribeiro”. Esses do trânsito, da política, dos poderes violentos que por servirem como mão de obra e mola para a espiral do mundo, tem um lugar reservado em outra história que se escreveria em hospitais de doentes mentais. Mas Célia Maria Lima, a diretora da Instituição que abriga os loucos alucinados de delírios, diz apenas que ninguém deixa de ser atendido, apesar das dificuldades e do apoio financeiro que o hospital recebe apenas da Sesau. Para ela, o fechamento do hospital particular Eugene Mincovski é bom na medida em que repassa para o Estado a responsabilidade sobre os doentes mentais. Porque, segundo alguns médicos, nas clínicas particulares se pratica todo o tipo de violência aos doentes além das drogas comuns que dopam e amortecem o delírio que muitas vezes se traduz em agressividade. Porque o mundo é agressivo com eles.

O Estado deve assumir, junto com a Universidade do Amazonas e o Inamps essas pessoas que são rejeitadas pela família e pela sociedade, pelo simples fato de serem improdutivas para a economia familiar e do país, diz Galvão. Há algum tempo ele testemunhou o caso de um doente mental que a família visitava frequentemente para ver se ele podia voltar para casa, porque ele trabalhava e sua mão de obra fazia falta na renda familiar.

A situação é caótica, pondera o psiquiatra do Hospital Silvério Tundis, porque o “Eduardo Ribeiro” não tem condições para manter as 120 pessoas que estão lotando a instituição, fora as 904 que recebeu para atendimento só no primeiro semestre de 86.

Depois que o Hospital do Estado criou o Pronto Socorro onde os pacientes são atendidos primeiramente, diminuiu muito o número de internamentos desnecessários. Lá só ficam os que estão em graves quadros de psicose e alucinações e podem se tornar agressivos a sociedade. Mas há uma clientela permanente de 70 doentes que sem casa, família, amigos, escampam da violência social para juntarem às suas no velho casarão localizado na Constantino Nery.

Nas suas histórias incompletas, elas marcam nomes que podem ser novos amanhã. Falam de vidas que queriam viver ou já viveram. Brutalizam o silêncio com seus gritos e chamam estrelas à luz do dia. E elas veem como faíscas nas suas mãos e nos olhos, como se quisessem queimar o casarão e cessar a dor.

Não estão livres das drogas porque o Hospital ainda não teve condições de substituí-las por métodos mais revolucionários, mais reconhecidamente eficientes. Nem se chamam “Carmem Doida” ou “Bombalá” loucos que eram aceitos pela sociedade amazonense e com os quais conviviam pacificamente. “Bombalá” saia pelas ruas regendo uma orquestra imaginária e a “Carmen Doida” morava num barranco para onde levava os restos supérfluos que os lúcidos jogavam nas poucas latas de lixo que existiam na cidade.

A alienação do mercado de trabalho é o que lhes resta e o que lhes dá a punição das grades do Hospital, do rótulo de agressividade que pode nem morar nos seus olhos pretos e selvagens ou nas mãos “sujas” da não piedade de tocar nas paredes, na terra, nas pessoas.

Para a sociedade, eles são indigentes e anônimos e loucos capazes de matar sua sede pelo relógio de ponto e pela vida. Para eles a sociedade é um ponto escuro e um túnel sem luz no fim. As paredes brancas, pintadas de lodo e uma mulher delicadamente deitada ao pé da porta escura sob o sol do meio dia que delira a segurar a parede e nem sequer imaginar o que está depois da porta. Não é o lodo, não é a porta, não é a mulher, nem a loucura. Afinal, o que está depois da porta é a loucura de ser social, de não tocar as pessoas, de não olhar querendo devorar. De não ser sem explicar, ponderar, consertar. Enquanto a nudez singular de querer a vida crua e quente descansa ali seu mais bonito sonho, o corpo da mulher que dorme é a porta que dá acesso à verdadeira loucura.


As cores do delírio

De cores fortes ou escuras, pinturas que na verdade são bordados, páscoa, Halley e carnaval, os 70 pacientes internos do Hospital “Eduardo Ribeiro” ocupam seu tempo de lazer, desenhando e pintando as estrelas que conheceram depois que a sociedade lhes rotulou de loucos.

Manias? Nada, a arte encontra ali seu límpido refúgio para pintar de cores fortes, um coelho amarelo, colorido como uma interna o imaginou. Ou então. Ou outra que pinta um coelho preto porque “sua vida é triste e escura, mas quando for melhor, alegre, que sabe ela mude a cor”.

Socorro Refkalesky, terapeuta ocupacional do Eduardo Ribeiro diz que esse momento é o melhor dos internos. “Aqui eles aqui eles se sentem em liberdade, pintam, desenham, criam muito do mundo imaginário de fora, pedaços da vida “normal” que eles guardam num canto opaco da memória. A dificuldade é convencê-los que o “recreio” acabou e que eles tem que ir almoçar”. Ninguém quer se separar das cores, da argila. Querem pintar o mundo, sair colorindo as paredes e cantar.


EU BORDO”

Uma dessas internas, pinta com suave maestria pedaços de papelão que esperam amontoados no armário da sala de Terapia Ocupacional, a inauguração da galeria de Leila Leong, para expor para o mundo “normal” a sua “loucura”. Mas não, ela não pinta, não insistam. “Eu bordo”, diz segura do que fala. Borda de vermelho sangue nuvens e pontos escuros. Borda sua imaginação e seu delírio. Borda como só quem delira sabe, quando pinta.

Outra pintou um carnaval em “Hollywood”, um quadro que é composto de máscaras coloridas, lantejoulas e penas, como no carnaval do Rio. E ao ver na televisão o carnaval, não hesitou em dizer: “Me imitaram!” Sobre as máscaras, um pedaço de papel de cigarro Hollywood é a sua referência do carnaval que imagina.

E até os bos de Parintins, a festa mágica do folclore amazonense, foi gravada ali. Um paciente nascido em Parintins, pintou com traços primitivos um boi preto e branco que denominou de “garanchoso”, uma mistura de Garantido e Caprichoso, os bois rivais da sua terra.

Também há poetas que falam de amor, da despedida, da sociedade ruim, que escapam de uma letra tremida e o sentimento latente, espocando o papel de delírio.


AS HORTAS

Aqui, a maioria dos internos são verdadeiros indígenas, diz o psiquiatra Rogélio Casado, que coordena a parte de atividades produtivas a que os doentes se ocupam. Eles produzem em roças pequenas, hortaliças, e tem até uma casa de farinha. “A maioria dos que estão internos aqui, tem uma profunda relação com a agricultura porque são do interior”, diz Rogélio.

A produção pequena de mandioca, feijão, cana, pode levantar a pergunta sobre uma possível utilização dessas pessoas na sociedade. Isso é impossível segundo o médico porque eles são completamente alienados da sociedade produtiva. Mas essa fase que no Hospital é chamada de reabilitação é tocada pelo ânimo dos médicos, terapeutas e funcionários. Porque há uma carência muito grande de recursos, faltam sementes, adubos e transporte para se levar o trabalho adiante.

Quando eles saem da agressividade e entram para a fase de melancolia, os doentes mentais do Eduardo Ribeiro encontram nessas atividades de agricultura e lazer o momento mágico de escapar seus sonhos e suas verdades. Mas essa depressão elas molduram em argila e “bordam” nos papéis, sempre com as cores que povoam sua imaginação.


FONTE:

Jornal do Comércio, 31/08/1986


CRÉDITO DA IMAGEM:

PICICA - Blog do Rogélio Casado


terça-feira, 24 de outubro de 2017

Bairros de Manaus: Dinâmica, Cotidiano e Controle

Palafitas na orla do Rio Negro. Foto de Denis Armelini, 2012.

Bairros, esses pequenos núcleos que formam uma cidade, pequenos mundos cerrados em uma realidade geográfica mais ampla, com suas características distintas que por nós são facilmente perceptíveis. O bairro raro de ruas largas, o bairro marcado pela periculosidade, o bairro pequeno, o bairro boêmio, o bairro histórico… São vários os tipos. Um nunca é igual ao outro, exceto pelos dramas cotidianos que lhes garantem certa homogeneidade e por elementos que podem se mesclar em um só.

Do que foi visto pela janela do ônibus e nas raras caminhadas, surgiram os seguintes questionamentos: O primeiro parece ser simples, de questão empírica: como é o cotidiano nos bairros de Manaus. No entanto, o cotidiano é vivido em relações diárias de poder, de sobrevivência, que muito podem dizer sobre uma cidade. O segundo questionamento é sobre como se dá a geopolítica nesses espaços, as relações espaciais, os controles que se exercem sobre a população dentro dessas divisões urbanas. Não tem como pensar o espaço urbano manauara sem recorrer à divisão entre áreas periféricas e áreas centrais de classe média ou alta, por mais que, como veremos, uma pode se confundir com a outra.

A periferia existe desde que homens e mulheres passaram a organizar-se, nas cidades, através de bairros. Ela é o lugar destinado às classes mais baixas, aos excluídos da sociedade, às práticas que não devem ser “vistas” de forma escancarada nas áreas centrais, como foi o caso do bairro Subura, em Roma, onde ficavam os lupanares que satisfaziam as elites. A periferia, o subúrbio do oitocentos, foi pensada para manter distantes os variolosos e vítimas de outras doenças, para abrigar o cemitério distante da área urbana, para erguer as moradias dos trabalhadores do Centro. Os bairros centrais e de classe média ou alta são planejados, projetados por engenheiros. Não é raro que exista uma planta com detalhes sobre as ruas, as linhas de transporte e encanamentos. Planejados no início, poucos são os que escapam às invasões, às ocupações dos taludes dos igarapés e à tomada de lotes de terra. A irregularidade é integrada. São dois tipos de moradores, dois tipos de habitação. Periferia e área urbana se confundem: O Centro vem se esvaziando desde a década de 1970, tornando-se um simples ponto de passagem, já se podendo notar focos de degradação.

Bairros periféricos possuem associações comunitárias, de moradores, para sanar parte dos problemas diários. Em bairros de classe média ou alta, essas instituições são inexistentes. Quanto mais rico o bairro, menos ele necessita de tal organização, na medida em que estes, de maior poder aquisitivo, são a expressão do que a cidade deve aparentar ser: civilizada, ordenada e com uma estrutura mínima, recebendo assim atenção e cuidados diretos do Estado. É característica dos bairros humildes que boa parte das pessoas se conheçam, através de relações construídas nas associações, igrejas, escolas e até mesmo no comércio diário. Em bairros maiores e mais ricos, manter esse tipo de contato já é mais difícil, pois sua dinâmica é mais acelerada, já que são lugares com um fluxo constante de pessoas, pequenos centros econômicos e abrigo de repartições públicas. As grandes casas ecléticas dos séculos XIX e XX já deram lugar a construções mais modernas, padronizadas, muradas e monitoradas 24 horas por dia. Quando não são casas, grandes edifícios de nomes variados se destacam na paisagem: Central Park, Portal da Cidade, Solar de Nazaré etc.

Os bairros, em alguns casos, complementam um ao outro. Dou como exemplo a relação entre dois da zona Sul: São Lázaro e Betânia. Nomes cristãos, tendo São Lázaro vivido na antiga aldeia judeia de Betânia. O primeiro é quase que inteiramente residencial, tendo um comércio pouco atrativo. Seus moradores, dessa forma, recorrem à Feira da Betânia, aos mercados e ao comércio informal de uma ponta a outra da Avenida Adalberto Valle, onde preços e variedade tornam aquele bairro o sustentáculo de víveres do primeiro. Em São Lázaro os moradores da Betânia podem procurar a estação de ônibus das linhas 704 e 708; a Vila Militar Ajuricaba; e as escolas Brigadeiro João Camarão, Anastácio Assunção e Graziella Ribeiro.

Onde o Estado não chega, existe além das associações comunitárias, nos casos mais extremos, o poder paralelo do crime organizado. Nem tão paralelo se pensarmos na questão da atuação. Grandes chefes do crime financiam times de futebol, quadras poliesportivas, casas de festas; emprestam dinheiro; e mantém a segurança do bairro em que atuam, pois crimes como roubo e assassinato chamam a atenção da polícia, o que é prejudicial para os negócios. Surge uma relação de temor e respeito com a população. Penso que na hierarquia dessas organizações se começa sendo olheiro, mensageiro ou segurança dos chefes principais, passa-se a responsável por um beco, depois torna-se responsável por uma rua, até herdar, através da confiança, o posto de dono do bairro como um todo.

Da má estruturação das ruas, do espaço formado por alguma instalação industrial, do atalho para encurtar uma viagem, da construção irregular de casas que vão definindo o traçado dos caminhos transitáveis, surgem os becos. São lugares interessantes de se analisar. Chamam a atenção pela ausência de movimentação mais intensa, pelo tamanho, pelo ar familiar, onde todos se conhecem a tempos. O Beco Carolina das Neves, na Aparecida, e o já desaparecido Beco do Macedo, no bairro de N. S. das Graças, são referências antigas. O beco também é o local onde o “poder paralelo” é mais facilmente exercido. O difícil trânsito impede a perturbação da ordem daqueles que comercializam todo tipo de produtos ilícitos, como também facilita o acerto de contas: Aquele que persegue e segura a arma sabe que vai eliminar seu rival ou devedor, enquanto resta à vítima contar com uma sorte tão curta quanto o espaço entre as casas. Quanto aos moradores, vivem em uma relação mútua de não incomodar e não ser incomodado. Me chamou a atenção, em algumas visitas a bairros das zonas Oeste e Leste, as siglas de certas facções criminosas em quadras esportivas, escolas de samba e outras construções e instituições estratégicas para o convívio social.

Curioso notar, em alguns casos, como são erguidas as casas. De uma surgem puxadinhos, outras moradias, construídas nos terrenos deixados como herança pelos donos da casa principal. O cenário lembra o ponto irradiador de uma fortaleza medieval, com o castelo no centro. Algumas vezes é possível observar algumas casas padrão, bem construídas, fenômeno de valorização imobiliária, surgido, na maioria das vezes, com a instalação de certos serviços no local.

Nesse breve texto, apresentei minhas perspectivas sobre o que vejo andando pelos bairros da cidade de Manaus. Escolhi o caminho da análise dual, entre periferia e bairros de classe média ou alta. Os bairros são bem mais complexos do que se pensa. São cidades dentro da cidade, alguns como 30, 60 mil moradores. São pontos de passagem, pequenos núcleos de desenvolvimento comercial e financeiro, “vitrine” da modernidade; bem como espaços de luta diária, de submissão a controles e criação de mecanismos de sobrevivência.



CRÉDITO DA IMAGEM:

Denis Armelini - UOL


quinta-feira, 12 de outubro de 2017

No tilintar do triângulo, o sabor da infância: O vendedor de cascalho da Manaus Antiga

À esquerda, desenho de Moacir Andrade retratando um cascalheiro de Manaus em 1964. À direita, o senhor Justino Horácio, vendedor de cascalho. Foto de 2012.

Vindo de longe, ainda no começo da rua, já é possível lhe escutar. Caminhando sob o asfalto ardente da cidade, ele é capaz de causar, com o tilintar de seu triângulo, a correria das crianças, que vão em direção aos seus responsáveis para pedir o simbólico valor de 2 reais para comprar um doce simples que já era consumido por seus pais, avós e bisavós há muito tempo. É o vendedor de cascalho, cascalheiro se preferirem, personagem popular que marcou inúmeras gerações. Pretende-se, com esse texto, traçar um panorama das origens desse vendedor em Manaus, bem como analisar, através de relatos e fontes escritas, seu cotidiano e relação com a população da cidade.

Não é difícil identificar um vendedor de cascalho: Chapéu ou boné para se proteger do sol, triângulo e baqueta nas mãos. Na costa, um tubo de flandres, material laminado e estanhado próprio para o acondicionamento de alimentos, que quando cheio com os cascalhos, chega a pesar 10 quilos. Os mais antigos usavam uma camisa branca de tecido leve para melhor enfrentar o calor, calça da mesma forma, chapéu de palha, chinelos ou andavam descalços. Atualmente podemos ver vendedores usando camisa regata e bermuda.

Qual a origem do cascalheiro e desse doce? Esse vendedor é típico da região Nordeste, onde o doce recebe os nomes de “taboca (Salvador), […] cavaco chinês (Aracaju, Maceió, Recife, João Pessoa, Natal), ou ainda cavaquinho, especialmente na capital pernambucana. […] Em Fortaleza, pode ser chamado também de chagadinha ou chegadim” (ARAGÃO, 2013, p. 425). O cascalho, como é chamado em Belém e Manaus, é um doce de origem Ibérica, com referências na Espanha e em Portugal desde o século XIII, onde é chamado de barquillo (Espanha) e barquilho (Portugal) (ARAGÃO, 2013, p. 426). Popularizado nos séculos XIX e XX através de atividades ambulantes, seu vendedor, o Barquillero ou Barquilhero, carregava um tubo de flandres, a barquillera (as pranchas onde a massa é assada também recebem esse nome), produzida geralmente nas cores vermelha e azul, tendo o nome do fabricante estampado, que possuía na tampa uma roleta (ARAGÃO, 2012, p. 86) semelhante à de um cassino, marcada com diferentes números. Ela era parte de um jogo de sorte: Se fosse um grupo de amigos, aquele que tirasse o menor número pagaria todos os doces. Individualmente, pagava-se por rodada. Caso a roleta parasse no número zero, todos os doces adquiridos eram perdidos.

Desenho retratando um barquillero típico de Madrid, na Espanha, no final do século XIX. Notar a roleta na tampa do tubo de flandres, utilizada no jogo com os clientes

A receita tradicional é uma mistura de farinha de trigo, açúcar, canela ou mel (atualmente adiciona-se corante), e água, sendo a massa assada entre duas pranchas de ferro (ARAGÃO, 2013, p. 426). Na América Latina, em países como México, Uruguai, Venezuela, Colômbia e Costa Rica vende-se um doce semelhante de nome oblea (ARAGÃO, 2013, p. 439), biscoito fino de farinha de trigo recheado com doce de leite, leite condensado e chocolate.

Em Manaus, a referência mais antiga encontrada sobre os vendedores de cascalho data de 1912, em um caso de polícia: No dia 15 de setembro de 1912, Francisco de Almeida, “vendedor duma guloseima, vulgarmente conhecida pelo nome de chegadinho”, se dirigiu ao bairro dos Tocos (Aparecida) para vender seus produtos. Lá chegando, na rua Xavier de Mendonça, foi chamado por um homem, Manoel Felix de Araújo Filho, interessado nos doces. Francisco Almeida vendia três chegadinhos por um tostão. Manoel não os quis comprar diretamente, tentando primeiro a sorte: Na tampa do tubo de flandres, existia uma espécie de roleta com um marcador que apontava para diversos números. Dependendo do número em que caísse, o cliente ganhava o resultado em chegadinhos. Manoel Felix girou a roleta, que parou no número três. Ele, no entanto, não se conformou, exigindo que lhe fossem entregues quatro unidades. A partir daí, os dois passaram a discutir, tendo Manoel atingido Francisco com uma bengalada na cabeça. Em resposta, Francisco atirou-lhe seu triângulo, utilizado para atrair os fregueses, em sua cabeça. Manoel, enfurecido, desferiu uma facada no tórax de Francisco, que morreu no local, às 11:15 da manhã1. No tribunal, em 1913, julgado por assassinato por motivo torpe, foi condenado a 30 anos de prisão2. Esse, até o momento, é o registro mais antigo sobre a atuação desses vendedores na cidade, podendo, no entanto, ser este um tipo urbano ainda mais antigo. Interessante notar que, à maneira dos vendedores Ibéricos, seu tubo de flandres também possuía uma roleta na tampa, utilizada para o jogo com os clientes.

Foi de grande valia para a pesquisa a leitura dos memorialistas. Moacir Andrade registra a atuação dos vendedores de cascalho ao lado de outros trabalhadores como o vendedor de puxa-puxa, o vendedor de pirulitos, o vendedor de garapa, o vendedor de sorvete e o vendedor de bolo, entre as décadas de 1920 e 1930 (ANDRADE, 1985, 2006). Ainda de acordo com esse autor, por volta de 1935 o preço desses doces não ultrapassava um tostão cada (ANDRADE, 1985, p. 116-117), conservando quase o mesmo valor registrado no caso de 1912. O historiador Antônio José Loureiro (77) se lembra desses vendedores em sua infância, entre o final dos anos 1940 e início dos anos 1950, no bairro Praça 14 de Janeiro. André Vidal de Araújo se questionou se, além dos outros tipos populares, alguém se lembrava do “homem pobre do chegadinho” (ARAÚJO, 2003, p. 392).

Elza Souza (65), que passou sua infância e adolescência no bairro de São Raimundo, relata o seguinte:

Tenho muita saudade daquele cascalho redondo e cor de pele, diferente dos de hoje, laranjados por corantes. Isso era na década de 1960… Lembro do gosto que procuro até hoje nos cascalhos, mas parece que o bom costume morreu. Aqui no Conjunto Tocantins (bairro Chapada) um jovem passava toda noite tocando o tlem, tlem, que chama o freguês. Não o tenho visto muito.

O relato da senhora Elza Souza nos permite perceber as mudanças ocorridas no cotidiano da cidade, com a diminuição da atuação desses trabalhadores, alguns dos quais mudaram de ramo ou deixaram essa atividade, bem como a composição do doce, alterada, como diz a depoente, com a adição de corantes. Além dessas mudanças, percebe-se como o som do triângulo fica marcado na memória das pessoas. Sobre essa associação entre o som do triângulo, a venda do cascalho e as lembranças de infância, diz Gilberto Freyre:

Interessante de observar é que certos doces, vendidos por ambulantes, estão associados, no Nordeste, sons que, como o da campainha de Pavlov, em cachorros, despertam em meninos e adultos predisposições específicas de paladar: o som do triângulo dos chamados cavaquinhos, por exemplo (FREYRE, 2007, p. 49 apud ARAGÃO, 2013, p. 425).

Em Salvador, na Bahia, um vendedor de taboca toca o triângulo para atrair os clientes. Foto de 2013.

O som do triângulo atrai, faz emergir memórias de outras épocas que ativam a vontade de comprar o doce. O cascalheiro carrega em sua figura diferentes aspectos de diferentes culturas. O triângulo que ele toca é um instrumento musical originário da Idade Média, também da Península Ibérica, vindo de Portugal, onde era utilizado em celebrações religiosas, se expandindo posteriormente no restante da Europa a partir do século XIV, passando a ser empregado em orquestras no século XVIII. No Brasil, com raízes no Nordeste, a musicalidade do forró, do xote e do baião lhe deram um aspecto singular (ARAGÃO, 2012, p. 16 ; ARAGÃO, 2013, p. 432-434). O nome chegadinho, como o doce é chamado em Fortaleza, e aqui citado no caso de 1912 e por André Vidal de Araújo (1956, 2003), pode ser uma pista de que para o Norte eles possivelmente vieram nas sucessivas ondas de imigração nordestina, principalmente vindas do Ceará, verificadas em diferentes momentos de nossa História.

O cascalho é produzido em algumas fábricas espalhadas por diferentes zonas da cidade. Os cascalheiros o compram por 0,50 a unidade, revendendo-o por 2,00 reais ou na conhecida promoção de três unidades por 5,00 reais (PRATA, 2012, p. C4-C5). O antigo era empilhado, pego pelo vendedor com um guardanapo de papel e entregue na mão do cliente. Hoje, no entanto, já é possível encontrá-lo de forma padronizada em embalagens de plástico individuais, sendo vendido ao lado da broa e de outros doces.

Justino Horácio de Souza, vendedor de cascalho. Foto de 2012. Justino se veste à maneira dos vendedores antigos, com chapéu de palha, camisa branca de tecido leve, calça e chinelos.

Aguinaldo Nascimento Figueiredo (59), professor e historiador, lembra de sua infância e adolescência dos vendedores Zé do Cascalho, já bastante idoso na época, que atuava na área do Cajual, no Morro da Liberdade; e do Mané Periquito, que atuava nos bairros de Santa Luzia e Educandos. Justino Horácio de Souza (64) trabalha como vendedor ambulante há 33 anos, vendendo cascalho desde 2010. Vindo de Coari em 1982, criou nove filhos com a venda picolé, leite e cocada, mas para ele o melhor de todos os produtos é o cascalho, o qual chega a vender cerca de 150 a 200 unidades nos finais de semana (PRATA, 2012, p. C4-C5). Hamilton Leão (49), escritor, lembra-se com detalhes do cotidiano de um vendedor que atuava na zona Sul entre as décadas de 1970 e 1980, além de outro que perpetuou o trabalho desse profissional:

O cascalheiro já com seus 70 anos de idade era uma figura conhecida nas ruas dos bairros pelos badalos insistentes de seu triângulo para anunciar a venda de cascalhos. Sua peregrinação diária era como um sacerdócio e a criançada já o esperava ansiosamente ao ouvir o singelo tocar do instrumento de trabalho daquela figura simpática que carregava os esperados amarelos cones doces num tambor de alumínio. Casas onde tinham bastantes crianças era a certeza da venda de seu produto, pois ficava insistentemente tocando o triângulo com seu som inconfundível de telengotengo, telengotengo, telengotengo, até a criança aparecer e comprar o esperado doce crocante da tarde. Os pais as vezes ficavam em situação de vergonha quando os filhos caindo em choro queriam deliciar do diário cascalho, mas não tinham como pagar. Mas isso não era problema para o querido cascalheiro, que sempre negociava com os pais e fiava para ser pago outro dia.

Bons momentos aqueles vividos na infância, ao deliciar aquele petisco doce e crocante feito de farinha de trigo e baunilha, que fazia um gostoso barulhinho ao ser mastigado e derretido na boca. A vontade de comer mais um ficava, mas era preciso se preparar para outro dia e com uma moedinha separada, porque, com certeza, ele estaria lá com seu insistente telengotengo, telengotengo, chamando-nos para provar mais uma vez o cascalho amarelo. O tempo se foi e com ele a lembrança do antigo cascalheiro, morador do bairro Mauazinho e hoje falecido, que percorria a ruas dos bairros da zona Sul para levar alegria com o toque de seu triângulo anunciando seus bons cascalhos. Hoje, para recordar aqueles momentos, a figura do saudoso cascalheiro foi continuada pelo Sr. Delson Carvalho que diariamente, vindo do bairro Jorge Teixeira peregrina a tarde pelas ruas dos bairros da zona Sul para anunciar o velho e gostoso cascalho, tocando seus instrumentos de sons audíveis a longa distância, fazendo lembrar os bons momentos de infância. Telengotengo, telengontengo, telengotengo.

Além de outros aspectos vistos em relatos anteriores, Hamilton cita um bastante importante naquelas décadas: a questão de fiar o doce, de receber o pagamento no outro dia. Era uma relação de sobrevivência entre o vendedor e a clientela, baseada na confiança que era construída diariamente através de diálogos, contatos e pelo desejo do cascalheiro de vender o seu produto e dos pais de verem os filhos satisfeitos consumindo o doce. Vale lembrar que um único vendedor poderia ser conhecido em vários bairros, pois o cascalheiro, em média, percorre por dia cerca de 10 a 15 quilômetros.

A caracterização, a receita, os tempos mudaram. A atuação do cascalheiro, assim como a de outros personagens urbanos como o vendedor de rala-rala, o pela-porco (cabeleireiro informal) e a rezadeira, vem diminuindo progressivamente. Essa é uma consequência da urbanização acelerada, que traz em seu bojo transformador, raramente planejado, a padronização e a exclusão do que antes era bem-visto ou recorrente na vida da população. As mudanças são perceptíveis. O cascalheiro está integrado à memória coletiva, esta entendida como “o que fica do passado no vivido dos grupos ou o que os grupos fazem do passado” (NORA apud LE GOFF, 1996, p. 472). O registro de sua atuação e relação com o meio em que está inserido garante a preservação de sua identidade social enquanto parte de um grupo reduzido de trabalhadores do meio urbano local.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

ANDRADE, Moacir. Manaus: ruas, fachadas e varandas. Manaus: Gráfica de Gracimoema Sampaio, Humberto Calderaro, 1985.

ANDRADE, Moacir. Acontecimentos de um Amazonas de Ontem. Manaus: Imprensa Oficial do Amazonas, 2006.

ARAÚJO, André Vidal de. Introdução à Sociologia da Amazônia. 2° Ed revista, Manaus: Editora Valer/Governo do Estado do Amazonas/Editora da Universidade Federal do Amazonas, 2003. (Coleção Poranduba).

ARAGÃO, Thaís A. Doce som urbano: O triângulo e as territorializações dos vendedores de chegadinho em Fortaleza. Dissertação (Planejamento Urbano e Regional), PROPUR-UFRGS, 2012.

ARAGÃO, Thaís A. O triângulo e o biscoito fino para as massas: reverberações culturais de uma prática ambulante. In: 9o Encontro Internacional de Música e Mídia, 2013, São Paulo. O gosto da música – 9o Encontro Internacional de Música e Mídia. São Paulo, 2013. p. 424-440.

LE GOFF, Jacques. História e Memória. 4° Ed. Campinas: Editora da Unicamp, 1996.

PRATA, Lucas. O triângulo anuncia a chegada do 'cascalheiro'. Em Tempo, 25/09/2012, p. C4-C5.


FONTES:

Jornal do Comércio, 15/09/1912
Jornal do Comércio, 19/02/1913


ENTREVISTAS:

Antônio Loureiro, 14/08/2017
Aguinaldo Nascimento Figueiredo, 14/08/2017
Elza Souza, 15/08/2017
Hamilton Leão, 17/08/2017

NOTAS:

1 Jornal do Comércio, 15/09/1912
2 Jornal do Comércio, 19/02/1913


CRÉDITO DAS IMAGENS:


ANDRADE, Moacir. Manaus: ruas, fachadas e varandasManaus: Gráfica de Gracimoema Sampaio, Humberto Calderaro, 1985.

www.barquillerosdemadrid.es

Jornal Em Tempo, 23/09/2012

blogtina.blogspot.com

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Lugares Pitorescos de Manaus II


O espaço urbano, ao longo do tempo, não sofre mudanças apenas em sua fisionomia, no espaço construído, mas na relação que a sociedade mantêm com o meio. Nomenclaturas de origem popular, secularmente utilizadas como referência para praças, ruas, becos e formações geográficas, herança medieval longínqua, sucumbem às mudanças das ‘oficializações’, às integrações a outros bairros e ao esquecimento, subsistindo em alguns momentos na pena do jornalista ou do cronista de época. Nessa segunda parte do texto serão abordados os seguintes lugares: Costa D’ África, Beco do Rego da Maria Pia, Cidade das Palhas, Buraco do Pinto, Canto do Quintela, Bairro Preguiça, Bairro dos Bilhares e Curva da Morte.

Negros libertos fotografados em Manaus durante a Expedição Thayer (1865-1866), liderada por Louis e Elizabeth Agassiz.

Costa D’ África: A Costa D' África foi uma região existente em Manaus na época da província, com referências desde a década de 1860. Essa área, considerada um bairro na época, era habitada por africanos livres. Em 1866, Gustavo Ramos Ferreira, vice-presidente da Província do Amazonas, registrava que existiam no Amazonas cerca de "57 africanos livres, já de posse de suas respectivas cartas de emancipação" (SAMPAIO, 2005, p. 2). Os moradores desse bairro, já livres, conseguiram integrar-se, em parte, na sociedade da época, ocupando cargos públicos, militares e servindo de mão de obra em construções na capital. A Costa D' África estava localizada em terras ao Norte do antigo Cemitério de São José (área do Atlético Rio Negro Clube, em frente à Praça da Saudade), entre as ruas Leonardo Malcher e Luiz Antony. Os registros mais significativos desses africanos de Manaus foram feitos em uma casa da Estrada de Epaminondas durante a expedição de Louis e Elizabeth Agassiz e reproduzidas na obra Viagem ao Brasil (1865-66).

Passagem que leva ao Beco da Escola, atrás da E. E. Cônego Azevedo. Foto de 2014.

Beco do Rego da Maria Pia: De origem popular, o antigo Beco do Rego da Maria Pia está localizado no bairro de Aparecida, começando na rua Xavier de Mendonça e passando por trás da Escola Estadual Cônego Azevedo. Nesse beco, há décadas, morou uma avantajada senhora portuguesa de nome Maria Pia, que todos os dias, pela manhã, tinha o hábito de jogar os detritos de seu penico pela janela de casa. Adiciona-se o fato de que os detritos caiam em sua pequena horta, sendo que o que nela era plantado (frutas, legumes e verduras) era posteriormente vendido na feira do bairro. Esse beco também era chamado de Tapa-Guela e beco do Pai da Vida. O beco já não recebe mais essas nomenclaturas populares, sendo conhecido apenas como Beco da Escola.

Cidade das Palhas, atual bairro da Alvorada. Foto de 1974.

Cidade das Palhas: No início dos anos 1960, o Dr. Cezar Najar Fernandes, engenheiro agrônomo peruano, indignado com a situação dos moradores da Cidade Flutuante, grande favela fluvial existente desde a década de 1920, decidiu, junto de alguns amigos, criar um bairro em terras próximas do Estádio Vivaldo Lima, o qual ajudou a construir. Foram abertos caminhos, foi feita a topografia, o arruamento e a divisão dos lotes. Essas famílias que saíram da Cidade Flutuante começaram a construir casas de madeira e palha nesse local, que ficou conhecido como Cidade das Palhas.

Rua Ramos Ferreira, uma das vias que no passado formava o Buraco do Pinto. Foto de 2015.

Buraco do Pinto: O Buraco do Pinto foi uma depressão existente entre a rua Ramos Ferreira e as avenidas Joaquim Nabuco e Major Gabriel. Por essa depressão passavam os igarapés do Aterro e de Manaus. Por décadas essa região foi palco de acidentes de trânsito e de reclamação dos moradores do Centro, pois além de ser perigosa para o tráfego, servia de lixeira a céu aberto. Sobre a nomenclatura, diz o folclorista e historiador Mário Ypiranga Monteiro, existem duas versões sobre sua origem. A primeira, fantasiosa, seria a de que, em um dia de chuva, uma pessoa teria encontrado nessa depressão um pinto. A segunda seria a de que o nome teria origem em um taverneiro chamado Pinto, morador da Joaquim Nabuco. A nomenclatura, no entanto, ainda de acordo com Mário Ypiranga, teria por nome oficial Capitão Manuel Tomás Pinto Ribeiro, segundo Escriturário do Tesouro Estadual falecido em 02/06/1917. Coube à população dar o nome de ‘Buraco do Pinto’. A área sofreu um primeiro aterro em 1944, na administração municipal de Francisco do Couto Vale. Em 1957, na administração do governador Plínio Ramos Coelho, o Buraco do Pinto foi definitivamente aterrado e asfaltado.

Cruzamento das Avenidas Sete de Setembro e Joaquim Nabuco. Foto de 2017.

Canto do Quintela: O Canto do Quintela compreende o cruzamento das avenidas Sete de Setembro e Joaquim Nabuco, onde funcionou o primeiro supermercado CO (Casas do Óleo), da família Assayag. Bem antes de funcionar esse empreendimento, existiu nesse local a Mercearia Quintela, de proprietário português, que deu origem à nomenclatura popular. A referência mais antiga sobre essa mercearia data de 1906, através de um anúncio publicado no 'Almanaque Brinde Palais Royal (1906, p. 130), no qual lê-se o seguinte:

"Mercearia Quintella, de Quintella & Irmão - N' esta bem acreditada casa encontra-se sempre um repleto sortimento de todos os generos alimenticios quer nacionaes ou estrangeiros. Tem sempre em deposito grande sortimento de louças de barro como taes: FILTROS, TALHAS, POTES, BILHAS, vasos para plantas, etc. Variado e grande sortimento de louças finas de porcellana, pó de pedra, granito, como sejam: PRATOS, CHICARAS, TIGELLAS, etc. Especialidade em COPOS DE CHRYSTAL, VIDRO e CANDIEIROS DIVERSOS. Preços sem competência. Rua Municipal, 94 – Manáos".

Em notícia publicada no Jornal do Comércio, em 04/09/1917, dizia-se que “A rua Municipal, canto da mercearia Quintela, descia o bond numero oito, linha deavenida-circular1. Em outra notícia, de 25/01/1930, escrevia-se que “Por futil motivo Antonio Souza aggrediu hontem, ás dezenove horas, no canto do Quintela, a Manoel Sebastião da Silva”2. No Canto do Quintela viveu a violinista Ária Paraense Ramos, morta aos 19 anos em 17 de fevereiro de 1915 em um acidente no Ideal Clube.

Bairro do Preguiça: O bairro do/da Preguiça estava localizado entre as ruas Pico das Águas, Maceió e João Alfredo. A primeira versão de sua origem popular, diz Mário Ypiranga, é muito simples: em um afluente do Igarapé da Cachoeira Grande, passando pela parte de trás do Parque Amazonense, encontraram uma preguiça. O historiador, no entanto, após pesquisas, encontrou referências de que naquele local residiu um morador de nome José dos Santos Preguiça, operário pintor, tirador de goteiras e consertador de pontes, com referências de seus serviços desde 1899. Em 28 de julho de 1917, os moradores daquele bairro fizeram um abaixo-assinado pedindo que o nome fosse mudado para Nery da Fonseca3.

Atual Paróquia do bairro de São Geraldo. Foto de 2014.

Bairro dos Bilhares: O Bairro dos Bilhares corresponde ao atual bairro de São Geraldo, na zona Centro-Sul. O nome Bilhares fazia referência à Casa Bilhares, bar e casa de jogos propriedade do desembargador Floresta Bastos. O acesso se dava pelos bondes da Companhia de Transportes Villa Brandão (1893), que fazia a rota entre o Mercado Público e a Cachoeira Grande, no início do que viria a ser o bairro de São Jorge. O nome do bairro foi alterado para São Geraldo em 1950, por ação dos Padres Redentoristas. Em uma nota publicada no Jornal do Comércio em 07/10/1950 lê-se o seguinte: “Terá início, hoje, no bairro de São Geraldo, antigo Bilhares, a quermesse promovida pelos Padres Redentoristas, cujo produto reverterá em favor das obras da construção da capela”4. A Capela do Preciosíssimo Sangue foi inaugurada em 1953. Apesar da mudança, o nome Bilhares continuou sendo utilizado por um bom tempo como referência para aquele local, como atestam notícias até a década de 1980.

Avenida Castelo Branco com rua Ipixuna. Ano não identificado.

Curva da Morte: Existem menções à Curva da Morte pelo menos desde a década de 1950, sendo um indício de que os acidentes que popularizaram aquela parte do bairro da Cachoeirinha eram de longa data. O anúncio de uma peça teatral de 1959 informa que o espetáculo estava “situado na Av. Waupés, junto da Curva da Morte, bairro de Cachoeirinha, sob a direção de Walter Freitas”5. A Curva da Morte compreende o cruzamento da Av. Castelo Branco (antiga Waupés) e da rua Ipixuna. Por um bom tempo o bairro permaneceu sem pavimentação e entrecortado por igarapés, o que fazia os motoristas que vinham pela Castelo Branco, para evitar a Silves, ter que dobrar na Ipixuna, rua fechada e de difícil tráfego. Nesse cruzamento ocorreram graves acidentes com vítimas fatais entre as décadas de 1960, 1970 e 1980. Algumas eram vitimadas na frente de suas casas, tentando atravessar para a outra parte da via6. O número de mortos por acidentes de tráfego entre 1965 e a metade do ano de 1966 era de 67 pessoas7.

São vários os lugares pitorescos, de nomenclaturas curiosas, esquecidos ou não, que marcaram a população da cidade, que utilizava outras formas, um aspecto geográfico, um comércio, um morador ilustre, para se localizar no espaço e no tempo. Outros vão surgindo ao longo dos anos, como referência para ruas, becos, avenidas, praças e inúmeras invasões irregulares pela área urbana, que aos poucos tornam-se bairros. Daria para escrever um livro denso explicando as origens de cada um. São elementos de outras épocas, de outras mentalidades, de um cotidiano marcado por um ritmo mais lento de relações entre o homem e o meio.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SAMPAIO, Patrícia Melo. Escravidão e Liberdade na Amazônia: notas de pesquisa sobre o mundo do trabalho indígena e africano. 3° Encontro Escravidão e Liberdade no Brasil Meridional, 2005.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus, Editora da Universidade do Amazonas, 1998.

BESSA, Roberto. Memorial Aparecida: síntese da história de um bairro. Manaus, Edições Muiraquitã, 2010.

ALLAN, Virgínia. São Geraldo – Uma História em duas conjugações: Passado e Presente. Manaus, Edições Muiraquitã, 2008.

FONTES:

Jornal do Comércio, 04/09/1917
Jornal do Comércio, 25/01/1930
Jornal A Capital, 28/07/1917
Jornal do Comércio, 07/10/1950
Almanaque Brinde Palais Royal, 1906

NOTAS:

1 Jornal do Comércio, 04/09/1917
2 Jornal do Comércio, 25/01/1930
3 Jornal A Capital, 28/07/1917
4 Jornal do Comércio, 07/10/1950
5 Jornal do Comércio, 19/12/1959
6 Maria Rejane Rocha, aos 13 anos, morreu ao ser atropelada pelo chofer Walmir Gonçalves Barros na frente de sua casa, na rua Ipixuna, n° 1081, enquanto tentava atravessar a via. Jornal do Comércio, 26/06/1972.
7 Mortos por acidentes de tráfego, 1966. A. Raposo & Cia.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Viagem ao Brasil (1865-1866)
Google Maps, 2014
Coronel Roberto Mendonça
Otoni Moreira Mesquita, 2015, 2017