Palafitas na orla do Rio Negro. Foto de Denis Armelini, 2012.
Bairros,
esses pequenos núcleos que formam uma cidade, pequenos mundos
cerrados em uma realidade geográfica mais ampla, com suas
características distintas que por nós são facilmente perceptíveis.
O bairro raro de ruas largas, o bairro marcado pela periculosidade, o
bairro pequeno, o bairro boêmio, o bairro histórico… São vários
os tipos. Um nunca é igual ao outro, exceto pelos dramas cotidianos
que lhes garantem certa homogeneidade e por elementos que podem se
mesclar em um só.
Do
que foi visto pela janela do ônibus e nas raras caminhadas, surgiram
os seguintes questionamentos: O primeiro parece ser simples, de
questão empírica: como é o cotidiano nos bairros de Manaus. No
entanto, o cotidiano é vivido em relações diárias de poder, de
sobrevivência, que muito podem dizer sobre uma cidade. O segundo
questionamento é sobre como se dá a geopolítica nesses espaços,
as relações espaciais, os controles que se exercem sobre a
população dentro dessas divisões urbanas. Não tem como pensar o
espaço urbano manauara sem recorrer à divisão entre áreas
periféricas e áreas centrais de classe média ou alta, por mais
que, como veremos, uma pode se confundir com a outra.
A
periferia existe desde que homens e mulheres passaram a organizar-se,
nas cidades, através de bairros. Ela é o lugar destinado às
classes mais baixas, aos excluídos da sociedade, às práticas que
não devem ser “vistas” de forma escancarada nas áreas centrais,
como foi o caso do bairro Subura, em Roma, onde ficavam os lupanares
que satisfaziam as elites. A periferia, o subúrbio do oitocentos,
foi pensada para manter distantes os variolosos e vítimas de outras
doenças, para abrigar o cemitério distante da área urbana, para
erguer as moradias dos trabalhadores do Centro. Os bairros centrais e
de classe média ou alta são planejados, projetados por engenheiros.
Não é raro que exista uma planta com detalhes sobre as ruas, as
linhas de transporte e encanamentos. Planejados no início, poucos
são os que escapam às invasões, às ocupações dos taludes dos
igarapés e à tomada de lotes de terra. A irregularidade é
integrada. São dois tipos de moradores, dois tipos de habitação.
Periferia e área urbana se confundem: O Centro vem se esvaziando
desde a década de 1970, tornando-se um simples ponto de passagem, já
se podendo notar focos de degradação.
Bairros
periféricos possuem associações comunitárias, de moradores, para
sanar parte dos problemas diários. Em bairros de classe média ou
alta, essas instituições são inexistentes. Quanto mais rico o
bairro, menos ele necessita de tal organização, na medida em que
estes, de maior poder aquisitivo, são a expressão do que a cidade
deve aparentar ser: civilizada, ordenada e com uma estrutura mínima,
recebendo assim atenção e cuidados diretos do Estado. É
característica dos bairros humildes que boa parte das pessoas se
conheçam, através de relações construídas nas associações,
igrejas, escolas e até mesmo no comércio diário. Em bairros
maiores e mais ricos, manter esse tipo de contato já é mais
difícil, pois sua dinâmica é mais acelerada, já que são lugares
com um fluxo constante de pessoas, pequenos centros econômicos e
abrigo de repartições públicas. As grandes casas ecléticas dos
séculos XIX e XX já deram lugar a construções mais modernas,
padronizadas, muradas e monitoradas 24 horas por dia. Quando não são
casas, grandes edifícios de nomes variados se destacam na paisagem:
Central Park, Portal da Cidade, Solar de Nazaré etc.
Os
bairros, em alguns casos, complementam um ao outro. Dou como exemplo
a relação entre dois da zona Sul: São Lázaro e Betânia. Nomes
cristãos, tendo São Lázaro vivido na antiga aldeia judeia de
Betânia. O primeiro é quase que inteiramente residencial, tendo um
comércio pouco atrativo. Seus moradores, dessa forma, recorrem à
Feira da Betânia, aos mercados e ao comércio informal de uma ponta
a outra da Avenida Adalberto Valle, onde preços e variedade tornam
aquele bairro o sustentáculo de víveres do primeiro. Em São Lázaro
os moradores da Betânia podem procurar a estação de ônibus das
linhas 704 e 708; a Vila Militar Ajuricaba; e as escolas Brigadeiro
João Camarão, Anastácio Assunção e Graziella Ribeiro.
Onde
o Estado não chega, existe além das associações comunitárias,
nos casos mais extremos, o poder paralelo do crime organizado. Nem
tão paralelo se pensarmos na questão da atuação. Grandes chefes
do crime financiam times de futebol, quadras poliesportivas, casas de
festas; emprestam dinheiro; e mantém a segurança do bairro em que
atuam, pois crimes como roubo e assassinato chamam a atenção da
polícia, o que é prejudicial para os negócios. Surge uma relação
de temor e respeito com a população. Penso que na hierarquia dessas
organizações se começa sendo olheiro, mensageiro ou segurança dos
chefes principais, passa-se a responsável por um beco, depois
torna-se responsável por uma rua, até herdar, através da
confiança, o posto de dono do bairro como um todo.
Da
má estruturação das ruas, do espaço formado por alguma instalação
industrial, do atalho para encurtar uma viagem, da construção
irregular de casas que vão definindo o traçado dos caminhos
transitáveis, surgem os becos. São lugares interessantes de se
analisar. Chamam a atenção pela ausência de movimentação mais
intensa, pelo tamanho, pelo ar familiar, onde todos se conhecem a
tempos. O Beco Carolina das Neves, na Aparecida, e o já desaparecido
Beco do Macedo, no bairro de N. S. das Graças, são referências
antigas. O beco também é o local onde o “poder paralelo” é
mais facilmente exercido. O difícil trânsito impede a perturbação
da ordem daqueles que comercializam todo tipo de produtos ilícitos,
como também facilita o acerto de contas: Aquele que persegue e
segura a arma sabe que vai eliminar seu rival ou devedor, enquanto
resta à vítima contar com uma sorte tão curta quanto o espaço
entre as casas. Quanto aos moradores, vivem em uma relação mútua
de não incomodar e não ser incomodado. Me chamou a atenção, em
algumas visitas a bairros das zonas Oeste e Leste, as siglas de
certas facções criminosas em quadras esportivas, escolas de samba e
outras construções e instituições estratégicas para o convívio
social.
Curioso
notar, em alguns casos, como são erguidas as casas. De uma surgem
puxadinhos, outras moradias, construídas nos terrenos deixados como
herança pelos donos da casa principal. O cenário lembra o ponto
irradiador de uma fortaleza medieval, com o castelo no centro.
Algumas vezes é possível observar algumas casas padrão, bem
construídas, fenômeno de valorização imobiliária, surgido, na
maioria das vezes, com a instalação de certos serviços no local.
Nesse
breve texto, apresentei minhas perspectivas sobre o que vejo andando
pelos bairros da cidade de Manaus. Escolhi o caminho da análise
dual, entre periferia e bairros de classe média ou alta. Os bairros
são bem mais complexos do que se pensa. São cidades dentro da
cidade, alguns como 30, 60 mil moradores. São pontos de passagem,
pequenos núcleos de desenvolvimento comercial e financeiro,
“vitrine” da modernidade; bem como espaços de luta diária, de
submissão a controles e criação de mecanismos de sobrevivência.
CRÉDITO DA IMAGEM:
Denis Armelini - UOL
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