Quem já teve a oportunidade de experimentar os pratos da cozinha amazonense, seja em Manaus ou em outro município do estado, sabe como seus sabores ficam marcados na memória gustativa. O ácido, o doce de frutas únicas, o gosto incomparável de carnes de caça, de peixes e quelônios diversos, motivos de grande celebração, os caldos, ervas e outros temperos, acompanhados de farinhas torradas e saborosas, são apenas alguns dos exemplos que formam essa que é sem dúvida uma das cozinhas mais variadas e exóticas do Brasil, quiçá do mundo. Reproduzo, abaixo, os escritos de Luiz de Miranda Corrêa sobre a culinária amazonense publicados no livro Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro (1969), interessante guia histórico e turístico da época da Zona Franca.
Banca de tambaqui no Mercado Adolpho Lisboa, em Manaus. Foto de 1968.
A cozinha amazonense é das mais ricas, e sem dúvida, a mais exótica do país. Basicamente indígena, recebeu grande contribuição portuguesa, e já nos dias da borracha, foi enriquecida por certos elementos africanos trazidos pelos imigrantes oriundos do Pará, Maranhão e Ceará.
Inicialmente é necessário que falemos nos peixes do Amazonas. A variedade é tão grande - peixes de pele, de escamas ou de casca - que o amazonense selecionou um pequeno número para seu uso. Deles o mais famoso é o pirarucu, espécie de bacalhau da água doce, que se come fresco ou seco, de mil e uma maneiras. Filé de pirarucu fresco é um pitéu excelente, mas o pirarucu seco preparado na brasa, chamado "do céu" ou "de casaca", não lhe fica nada atrás. O mais nobre entre todos os peixes é, talvez, o tucunaré, que se pode encontrar em dimensões gigantescas, quase do mesmo tamanho dos pirarucus. A melhor maneira de se preparar um tucunaré é separá-lo em postas e cozinhá-lo, ou então de forno, recheado de ervas exóticas e farinha suruí. Entre os peixes de grande porte, destaca-se também, o tambaqui. Espécime deliciosamente gordo, com poucas espinhas faz os encantos dos gourmets amazonenses, especialmente em caldeiradas ou moqueado, que é uma maneira de churrascar o peixe. A pescada é um peixe fino e fica muito bem em caldeiradas, preparadas com requinte, parecendo sopa à Leão Veloso. Já o jaraqui é peixe popular, de grande aceitação pelo paladar esquisito, apesar do grande número de espinhas. O curimatã, outro peixe popular, é mais saboroso e o mais indicado para a moqueação. Para quem gosta de peixe frito, os dois melhores são o pacu e a sardinha, esta última trazida pelos conquistadores portugueses. E o nativo de paladar mais exigente delicia-se com o bodó, peixe cascudo de cara feia mas de gosto estranho e apetitoso. A variedade de peixes é imensa. Quantas espécies registradas? 2.000? 3.000? Mais ou menos isso.
Farofa de tracajá, servida no casco do animal.
O prato mais amazonense entre todos é a tartaruga. Hoje em dia, com a pesca sob controle do Governo Federal, atinge preços astronômicos e, em Manaus, é sinônimo de festa nacional. O cuidado do Governo, entretanto, é fácil de justificar e mesmo de louvar. Comiam-se os ovos (um paladar requintado jamais esquecerá o sabor do ovo de tartaruga, comido cru, com farinha d' água), usavam-se as tartarugas pequenas para decoração em aquários ou souvenirs para turistas, e comiam-se as grandes, em tal quantidade, que a espécie estava ameaçada de extinção.
Como pescar uma tartaruga? Como prepará-la?
A pesca da tartaruga é conhecida como viração. Aguarda-se a vazante dos rios, quando se formam belíssimas praias onde os quelônios vem desovar. Então os índios e os caboclos ficam na espreita, e após a desova correm atrás das tartarugas virando-as de casco para baixo. Pescou-se, então, a tartaruga e, dependendo do tamanho do animal, um ou mais homens carregam-na, para a canoa. O destino final é o curral onde são guardadas, em grande quantidade, para a venda paulatina.
O preço de mercado é caro. Mas uma tartaruga de bom tamanho pode alimentar mais de 40 pessoas. Dela se fazem vários pratos diferentes. O sarapatel, o pachicá, o filé (às vezes ao tucupi), o picadinho e o guizado. O picadinho, por exemplo, é servido no peito e é o prato de mais fácil aceitação pelos não iniciados. O picadinho e o filé. E mixira de tartaruga é alimento de guardar por muito tempo.
Ir ao mercado, em Manaus, é mais do que uma obrigação doméstica, é, pode-se dizer, uma festa. [...] Na parte reservada a mercadorias diversas, bem na ala central do prédio, nas várias divisões, pode-se encontrar legumes e verduras, desde os tomates e as couves até o exótico jambu, tão necessário ao tacacá e ao pato no tucupi. Frutas, variando das laranjas, melancias e melões, às bananas gigantescas e aos tucumãs, umaris, sorvas, pupunhas, taperabás, graviolas, abacaxis e ananases, doces de fazer inveja aos seus parentes do Havaí. Existem também as barracas das farinhas, variando das secas, como a suruí, à farinha d' água, à farinha do uarini, cor de gema de ovo, tão certinha que parece feita à máquina. Encontra-se, também a farinha de tapioca, excelente para bolos, mingaus e pudins, empregada nas casas tradicionais da cidade para fazer "bolos podres" e "tapioquinhas de coco".
Uma feirante de Manaus exibindo a variedade de frutas da região
Outros pratos amazonenses tem características mais amazônicas e são saboreados de Belém do Pará ao Acre. Entre eles o pato ao tucupi e o tacacá. O tucupi é um caldo extraído da mandioca e seu paladar lembra ligeiramente o curry indiano. Usa-se como caldo no pato assado, misturado ao jambu, legume exótico que faz a língua tremer, levemente afrodisíaco. Pode-se usar também o tucupi como molho para caças e pescados e, como já dissemos acima, para a tartaruga.
O tacacá também é feito na base do tucupi. Servido em cuias pretas e muito quente, lembra uma sopa em que o tucupi é misturado à goma, preparada com polvilho. A essa mistura junta-se o jambu e o camarão seco do Maranhão. Está pronta a beberagem que se degusta ao cair da tarde nas esquinas de Manaus.
Peixe, tartaruga e comidas preparadas na base do tucupi são os ingredientes básicos da comida amazonense, uma das mais deliciosas e exóticas do país.
CORRÊA, Luiz de Miranda. Roteiro Histórico e Sentimental da Cidade do Rio Negro. Manaus, Artenova, 1969, p. 85/95, 97.
CRÉDITO DAS IMAGENS:
Tibor Jablonsky e Orlando Valverde, 1968. Biblioteca do IBGE
Heard Country Parks & Recreation
Acervo A Crítica
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