Um interno do Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, em Manaus. Foto de Rogélio Casado, 1980.
Há quase dois séculos foi erguido o primeiro hospício do Brasil, batizado de Hospício Pedro II, também conhecido como Palácio dos Loucos. Aos moldes franceses, crescia a preocupação com o higienismo e a aparência da cidade. Até 1830, os considerados mentalmente incapazes, desde que não fossem agressivos, podiam circular livremente. Caso fossem agressivos, eram enviados para a cadeia, dividindo espaço com criminosos de diferentes naturezas. A necessidade de um local específico, a penetração de discursos cientificistas e de manutenção da moral e da ordem pública fez surgir os Hospícios, Colônias de Alienados e Asilos para onde passaram a ser enviados todos aqueles que perturbassem a ordem cotidiana: alcoólatras, mendigos e loucos. Recupero, a seguir, uma matéria sobre as condições de vida dos internos do Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro publicada em 1986, época em que discutia-se a reforma psiquiátrica no Brasil, com o nome A loucura mora aqui?
A
Loucura mora aqui?
“Quem
são eles, que têm vários nomes, arrancam da vida um momento de dor
e espanto e partem de dentes cerrados para o outro lado do delírio?”
Ana
Célia Ossame
As
alucinações vagem solitárias pelos corredores, torturantes
alucinações de olhos grandes e pretos, que parecem querer devorar
com o simples olhar. É a loucura? É a loucura? Quem saberia dizer…
se sobre o cimento e sob o sol, ela repousa numa distância infinita
de todos, aquecendo ainda mais a fogueira da dor que parece sentir.
Estranho esse momento, em que a vida não passa na porta e encosta na
parede, sem descansar nem cansar e nem se queimar com as faíscas da
solidão.
Estranho
dizer loucura para esses olhares doloridos de querer tocar, tocar,
tocar, sem usar as imperfeições das palavras porque o tocar é que
é completo, denso e bom.
Impossível
não dizer já que não se sabe a dor de uma poeirinha nos olhos ou
de um punhal no coração. Ou a dor da loucura.
Se
ela dói, é por causa dos portões fechados, do medo que inspira, do
medo que temos de ultrapassar a violência de viver pela paciência
de sonhar, de olhos abertos. Sabe onde mora a loucura? Dizem os
“lúcidos” que é ali, num grande casarão com cheiro de
detergente pelos corredores chamado Eduardo Ribeiro, “O Pensador”.
Pensa-se
que ali, guarda-se num canto escuro, nos murmúrios, gritos,
alucinações, dos loucos da cidade. Loucos, agressão? “A
agressividade está na sociedade, diz imediatamente o psiquiatra da
Universidade do Amazonas, Manoel Dias Galvão que num gesto de
“loucura” quebrou todos os equipamentos de tortura aos doentes
mentais. Esse é o seu orgulho, de ter rompido definitivamente com os
métodos usados na Idade Média para reprimir os loucos. Mas quem são
eles, que tem vários nomes, arrancam da vida um momento de dor e
espantoso e partem de dentes cerrados para o outro lado do delírio?
Já lhes tiraram os nomes, as formas, amarraram seus braços e
pernas, seguraram seus pescoços e salvaram a sociedade de mais uma
psicose. E quantas vezes isso não custou uma ferida no corpo e um
golpe seguro no coração, se eles definitivamente só querem tocar,
tocar, a plenitude do tocar.
Hoje,
eles se cruzam com mais frequência nos corredores do “Eduardo
Ribeiro”, o Hospital Psiquiátrico de Manaus, o único do Estado,
com 60 leitos para toda a população quando a Organização Mundial
da Saúde, diz que deve existir 1 leito para cada 1000 habitantes.
Estão abarrotando a frágil estrutura do velho casarão e precisam
de alimento, roupa e remédios.
E
eles são os indigentes “selvagens” que perderam o lugar no trem
descarrilhado da sociedade e quiseram usar as asas que dizem ter.
Rasgam as roupas que prendem as asas e protegem da pureza do sol que
queima o corpo até arrebentar a vida mora ali.
O
viver claro de não aceitar o relógio de ponto, o salário mínimo,
o trânsito. “Loucos são os que estão matando gente de graça por
aí no trânsito”, dizem os psiquiatras Silvério Tundis, Manoel
Galvão. Para esses, no entanto, não há mais lugar no “Eduardo
Ribeiro”. Esses do trânsito, da política, dos poderes violentos
que por servirem como mão de obra e mola para a espiral do mundo,
tem um lugar reservado em outra história que se escreveria em
hospitais de doentes mentais. Mas Célia Maria Lima, a diretora da
Instituição que abriga os loucos alucinados de delírios, diz
apenas que ninguém deixa de ser atendido, apesar das dificuldades e
do apoio financeiro que o hospital recebe apenas da Sesau. Para ela,
o fechamento do hospital particular Eugene Mincovski é bom na medida
em que repassa para o Estado a responsabilidade sobre os doentes
mentais. Porque, segundo alguns médicos, nas clínicas particulares
se pratica todo o tipo de violência aos doentes além das drogas
comuns que dopam e amortecem o delírio que muitas vezes se traduz em
agressividade. Porque o mundo é agressivo com eles.
O
Estado deve assumir, junto com a Universidade do Amazonas e o Inamps
essas pessoas que são rejeitadas pela família e pela sociedade,
pelo simples fato de serem improdutivas para a economia familiar e do
país, diz Galvão. Há algum tempo ele testemunhou o caso de um
doente mental que a família visitava frequentemente para ver se ele
podia voltar para casa, porque ele trabalhava e sua mão de obra
fazia falta na renda familiar.
A
situação é caótica, pondera o psiquiatra do Hospital Silvério
Tundis, porque o “Eduardo Ribeiro” não tem condições para
manter as 120 pessoas que estão lotando a instituição, fora as 904
que recebeu para atendimento só no primeiro semestre de 86.
Depois
que o Hospital do Estado criou o Pronto Socorro onde os pacientes são
atendidos primeiramente, diminuiu muito o número de internamentos
desnecessários. Lá só ficam os que estão em graves quadros de
psicose e alucinações e podem se tornar agressivos a sociedade. Mas
há uma clientela permanente de 70 doentes que sem casa, família,
amigos, escampam da violência social para juntarem às suas no velho
casarão localizado na Constantino Nery.
Nas
suas histórias incompletas, elas marcam nomes que podem ser novos
amanhã. Falam de vidas que queriam viver ou já viveram. Brutalizam
o silêncio com seus gritos e chamam estrelas à luz do dia. E elas
veem como faíscas nas suas mãos e nos olhos, como se quisessem
queimar o casarão e cessar a dor.
Não
estão livres das drogas porque o Hospital ainda não teve condições
de substituí-las por métodos mais revolucionários, mais
reconhecidamente eficientes. Nem se chamam “Carmem Doida” ou
“Bombalá” loucos que eram aceitos pela sociedade amazonense e
com os quais conviviam pacificamente. “Bombalá” saia pelas ruas
regendo uma orquestra imaginária e a “Carmen Doida” morava num
barranco para onde levava os restos supérfluos que os lúcidos
jogavam nas poucas latas de lixo que existiam na cidade.
A
alienação do mercado de trabalho é o que lhes resta e o que lhes
dá a punição das grades do Hospital, do rótulo de agressividade
que pode nem morar nos seus olhos pretos e selvagens ou nas mãos
“sujas” da não piedade de tocar nas paredes, na terra, nas
pessoas.
Para
a sociedade, eles são indigentes e anônimos e loucos capazes de
matar sua sede pelo relógio de ponto e pela vida. Para eles a
sociedade é um ponto escuro e um túnel sem luz no fim. As paredes
brancas, pintadas de lodo e uma mulher delicadamente deitada ao pé
da porta escura sob o sol do meio dia que delira a segurar a parede e
nem sequer imaginar o que está depois da porta. Não é o lodo, não
é a porta, não é a mulher, nem a loucura. Afinal, o que está
depois da porta é a loucura de ser social, de não tocar as pessoas,
de não olhar querendo devorar. De não ser sem explicar, ponderar,
consertar. Enquanto a nudez singular de querer a vida crua e quente
descansa ali seu mais bonito sonho, o corpo da mulher que dorme é a
porta que dá acesso à verdadeira loucura.
As
cores do delírio
De
cores fortes ou escuras, pinturas que na verdade são bordados,
páscoa, Halley e carnaval, os 70 pacientes internos do Hospital
“Eduardo Ribeiro” ocupam seu tempo de lazer, desenhando e
pintando as estrelas que conheceram depois que a sociedade lhes
rotulou de loucos.
Manias?
Nada, a arte encontra ali seu límpido refúgio para pintar de cores
fortes, um coelho amarelo, colorido como uma interna o imaginou. Ou
então. Ou outra que pinta um coelho preto porque “sua vida é
triste e escura, mas quando for melhor, alegre, que sabe ela mude a
cor”.
Socorro
Refkalesky, terapeuta ocupacional do Eduardo Ribeiro diz que esse
momento é o melhor dos internos. “Aqui eles aqui eles se sentem em
liberdade, pintam, desenham, criam muito do mundo imaginário de
fora, pedaços da vida “normal” que eles guardam num canto opaco
da memória. A dificuldade é convencê-los que o “recreio”
acabou e que eles tem que ir almoçar”. Ninguém quer se separar
das cores, da argila. Querem pintar o mundo, sair colorindo as
paredes e cantar.
“EU
BORDO”
Uma
dessas internas, pinta com suave maestria pedaços de papelão que
esperam amontoados no armário da sala de Terapia Ocupacional, a
inauguração da galeria de Leila Leong, para expor para o mundo
“normal” a sua “loucura”. Mas não, ela não pinta, não
insistam. “Eu bordo”, diz segura do que fala. Borda de vermelho
sangue nuvens e pontos escuros. Borda sua imaginação e seu delírio.
Borda como só quem delira sabe, quando pinta.
Outra
pintou um carnaval em “Hollywood”, um quadro que é composto de
máscaras coloridas, lantejoulas e penas, como no carnaval do Rio. E
ao ver na televisão o carnaval, não hesitou em dizer: “Me
imitaram!” Sobre as máscaras, um pedaço de papel de cigarro
Hollywood é a sua referência do carnaval que imagina.
E
até os bos de Parintins, a festa mágica do folclore amazonense, foi
gravada ali. Um paciente nascido em Parintins, pintou com traços
primitivos um boi preto e branco que denominou de “garanchoso”,
uma mistura de Garantido e Caprichoso, os bois rivais da sua terra.
Também
há poetas que falam de amor, da despedida, da sociedade ruim, que
escapam de uma letra tremida e o sentimento latente, espocando o
papel de delírio.
AS
HORTAS
Aqui,
a maioria dos internos são verdadeiros indígenas, diz o psiquiatra
Rogélio Casado, que coordena a parte de atividades produtivas a que
os doentes se ocupam. Eles
produzem em roças pequenas, hortaliças, e tem até uma casa de
farinha. “A maioria dos que estão internos aqui, tem uma profunda
relação com a agricultura porque são do interior”, diz Rogélio.
A
produção pequena de mandioca, feijão, cana, pode levantar a
pergunta sobre uma possível utilização dessas pessoas na
sociedade. Isso é impossível segundo o médico porque eles são
completamente alienados da sociedade produtiva. Mas essa fase que no
Hospital é chamada de reabilitação é tocada pelo ânimo dos
médicos, terapeutas e funcionários. Porque há uma carência muito
grande de recursos, faltam sementes, adubos e transporte para se
levar o trabalho adiante.
Quando
eles saem da agressividade e entram para a fase de melancolia, os
doentes mentais do Eduardo Ribeiro encontram nessas atividades de
agricultura e lazer o momento mágico de escapar seus sonhos e suas
verdades. Mas essa depressão elas molduram em argila e “bordam”
nos papéis, sempre com as cores que povoam sua imaginação.
FONTE:
Jornal do Comércio, 31/08/1986
CRÉDITO DA IMAGEM:
PICICA - Blog do Rogélio Casado
Muito obrigado por esse precioso relato de nossa história.
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