quinta-feira, 17 de janeiro de 2019

Ruas de Manaus: Lima Bacury

Rua Lima Bacury. FOTO: Fábio Augusto, 2019.

A rua Lima Bacury começa no antigo Igarapé dos Remédios, posteriormente do Aterro e atual Avenida Floriano Peixoto, em frente a Praça Heliodoro Balbi (antiga Praça 28 de Setembro, Praça da Constituição), atravessa as ruas Izabel, Dr. Almínio e Avenida Joaquim Nabuco e termina no Igarapé de Educandos, trecho aterrado e transformado em Avenida Lourenço da Silva Braga. Ela fazia parte do antigo bairro dos Remédios.

Sua abertura possivelmente seu deu antes de 1870. Em 1875 a Câmara Municipal de Manaus lhe outorgou o nome de rua da Concórdia, em homenagem, de acordo com o historiador e folclorista Mário Ypiranga Monteiro “a ascensão do ministério de 25 de maio de 1875” (MONTEIRO, 1998, p. 169). Não foi possível identificar que ascensão de ministério foi essa que o autor cita, mas a palavra concórdia tem relação com paz, harmonia, podendo ser este nome uma alusão ao fim de alguma disputa política ou militar.

Coronel Francisco Ferreira de Lima Bacury (1848-1917). FONTE: Jornal A Capital, 27/10/1917.

Tal nomenclatura desaparece em 9 de março de 1892, quando a rua, por proposta do Intendente Antônio Dias dos Passos, passou a homenagear o jornalista, político e militar Coronel Francisco Ferreira de Lima Bacury (1848-1917). Lima Bacury nasceu em Manaus em 04 de outubro de 1848, falecendo na mesma cidade em 26 de outubro de 1917 aos 69 anos. Residia na rua Igarapé de Manaus. Foi amanuense da Secretaria da Província, Deputado Estadual, Federal e Inspetor do Tesouro do Estado. Foi homenageado com o nome de uma rua por sua participação nos movimentos políticos de 1891-1892 que culminaram na deposição do Governador Gregório Thaumaturgo de Azevedo e na restituição e ascensão de Eduardo Gonçalves Ribeiro ao Governo do Estado do Amazonas. Sobre o assunto, ver o texto A Revolta de 14 de Janeiro de 1892. Os anúncios dos estabelecimentos comerciais antigamente estabelecidos na rua da Concórdia, bem como os de compra e venda, passaram a indicar a mudança do nome da rua:

"Casas à venda
Vendem-se duas casas à rua da Concordia, hoje Lima Bacury.
Quem pretender dirija-se á Ismael Victorio Gomes (AMAZONAS, 14/02/1893).

Dois registros produzidos pelo fotógrafo alemão George Huebner em 1890, quando a nomenclatura ainda era Concórdia, nos permitem ter uma noção de como era essa rua desde sua abertura até os anos finais do século XIX. No primeiro temos a via no sentido de quem vai para o Igarapé dos Remédios (Avenida Floriano Peixoto); no outro, em sua parte final, à margem do Igarapé de Educandos. O terreno, por ser margeado por dois igarapés, era bastante alagadiço, além de ser irregular. A iluminação era feita por postes rústicos possivelmente no período provincial. As casas, em sua maioria, eram simples, mas algumas já apresentavam algum refinamento arquitetônico, sendo, no entanto, divididas por cercas de madeira.

Rua da Concórdia (Lima Bacury), sentido Igarapé dos Remédios, 1890. FOTO: George Huebner. FONTE: Instituto Moreira Salles.

Rua da Concórdia (Lima Bacury), sentido Igarapé de Educandos, 1890. FOTO: George Huebner. FONTE: Instituto Moreira Salles.

Por volta de 1895 funcionou nessa rua uma escola noturna cujo professor responsável era Cyrilo Leopoldo da Silva Neves (DIÁRIO OFICIAL, 17/01/1895). Em 1897, conforme a relação de obras e pagamentos efetuados entre 23 de julho de 1896 e 31 de dezembro de 1897, ela foi desaterrada ao custo de 4:375$000 réis (DIÁRIO OFICIAL, 01/03/1898). Quando do aterro daquela parte do Igarapé dos Remédios, posteriormente transformada em Avenida Floriano Peixoto, a rua Lima Bacury “[…] ficou por esse modo ligada á Praça da Constituição (Praça Heliodoro Balbi, da Polícia)” (MENSAGEM, 15/01/1901).

Se tem notícia, entre 1914 e 1915, do funcionamento da sede da Sociedade União dos Alfaiates de Manáos nessa rua e, na década de 1920, da existência de uma vila chamada Costa. Em 1956 ela teve o calçamento consertado, bem como recebeu a “[…] mudança da tubulação de esgôtos do trecho entre Dr. Almínio e Izabel” (MENSAGEM, 1956, p. 120). Em 1958 o trecho entre a Avenida Joaquim Nabuco e rua Dr. Almínio foi recalçado. Foi da rua Lima Bacuri que se idealizou, em 1972, a ponte que ligaria o Centro ao bairro de Educandos. Os primeiros pilares foram construídos, mas o projeto foi modificado e escolhida a ligação pela rua Quintino Bocaiuva que resultou na Ponte Pe. Antônio Plácido de Souza, concluída em 1975. Até a demolição do Cine Guarany em 1984, a Lima Bacury era uma rua de trânsito livre. Quando o cinema veio abaixo, poucos anos depois foi erguido um ponto de ônibus que fechou o trânsito de carros para a Avenida Floriano Peixoto.

Ao longo da via podem ser vistas construções de estilos e épocas variadas, como os belos casarões da família Péres. Boa parte, no entanto, já foi demolida ou encontra-se grosseiramente modificada. Dois partidos políticos foram sediados nessa rua, o Partido Democrático Trabalhista (PDT) e o Partido Socialista Brasileiro (PSB). Movimentam a tradicional Lima Bacuri alguns estabelecimentos, podendo ser destacados a Livraria Sebo Alienígena, referência em vinis, livros e revistas, o Bar do Metal, o Bar da Claudinha e, desde fins da década de 1970, a Escola de Samba Balaku Blaku.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus, Editora da Universidade do Amazonas, 1998.


FONTES:

Amazonas, 14/02/1893.

Diário Oficial, 17/01/1895.

Diário Oficial, 01/03/1898.

Mensagem lida perante o Congresso dos Snrs. Representantes em sessão extraordinaria de 15 de Janeiro de 1901 pelo Dr. Silverio José Nery, Governador do Estado.

Mensagem à Assembleia Legislativa apresentada pelo Governador do Estado do Amazonas Plínio Ramos Coelho por ocasião da abertura da sessão Legislativa de 1957.


CRÉDITO DAS IMAGENS:

Jornal A Capital, 27/10/1917.

Instituto Moreira Salles.

Jornal A Capital, 27/10/1917.



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Meus agradecimentos ao amigo Eros Augusto Pereira da Silva pela cessão do livro do historiador Mário Ypiranga Monteiro. Infelizmente o primeiro dos dois volumes da obra foi furtado da Biblioteca Pública do Estado do Amazonas, na rua Barroso, impossibilitando a pesquisa no local.


sexta-feira, 11 de janeiro de 2019

Ruas de Manaus: Rui Barbosa

Rua Rui Barbosa. Foto de 1973. FONTE: Instituto Durango Duarte.

A rua Rui Barbosa, de apenas 2 quarteirões e uma das mais antigas de Manaus, tem início na Avenida Sete de Setembro, do lado do Colégio Amazonense Dom Pedro II, atravessando a rua Henrique Martins e terminando na rua Saldanha Marinho. Até ser conhecida pelo nome atual, teve outros cinco.

Seu primeiro nome foi rua do Curral ou do Curral das Éguas, nomenclatura de origem popular que “lhe adveio da concentração de mulheres erradas (atividade prostitucional)” (JORNAL DO COMÉRCIO, 17/06/1976) naquela parte da cidade conhecida como bairro da República, fronteiro ao bairro do Espírito Santo, desde os primeiros tempos da Província. Nela ficava, na esquina com a rua da Palma (Saldanha Marinho), a tipografia do jornal Amazonas; o já desaparecido casarão de Pedro Henriques Cordeiro; as tabernas de Joaquim das Neves Garcia, Sergio Rodrigues Pessoa e Antônio Sarmento Pereira (AMAZONAS, 27/07/1881); os alugadores de carroça José Castor Juanati e Manuel Gonçalves da Costa; e a Torrefação de Café de José Ferreira da Silva (ALMANACH, 1884). Por proposta do vereador Antônio Davi de Vasconcelos Canavarro, a Câmara Municipal, em 31 de julho de 1867, mudou seu nome para Rua da União.

Ela conservou esse nome até 1890. Em 11 de novembro daquele ano, o Superintendente Municipal Silva Teles oficializou o projeto que a batizava com o nome de rua Campos Sales. Tratava-se de uma homenagem ao político paulista Manuel Ferraz de Campos Sales (1841-1913), futuro Presidente da República (1898-1902) e, na época, Ministro da Justiça. Seis anos depois, em 1896, nova nomenclatura lhe é dada. A via passa a se chamar rua Afonso de Carvalho, em referência ao Coronel da Guarda Nacional e político Raimundo Afonso de Carvalho (1860-?), que em 1907, após a renúncia de Constantino Nery, assumiu o Governo do Estado. Sua antiga residência, construída entre 1907 e 1908, entre as ruas Ramos Ferreira e Ferreira Pena, existe até os dias de hoje. Já nesse período, seus principais estabelecimentos eram o Colégio Santa Rita, os hotéis Faneca e dos Artistas e a Mercearia Vinagre.

Por volta de 1910, nova denominação, dessa vez lembrando um amazonense. Jorge de Moraes (1878-1947) nasceu em Manaus, indo jovem para a Bahia, onde cursou Medicina. Posteriormente, na França, aprofundou seus estudos, especializando-se como clínico geral e médico cirurgião. De volta a Manaus, atuou como cirurgião da Santa Casa de Misericórdia e da Beneficente Portuguesa, médico do Instituto Benjamin Constant, membro da Comissão de Saneamento e médico legista. Oferecia em jornais os serviços de “curativos para moléstias do útero, operações, partos e syphilis” (JORNAL DO COMÉRCIO, 19/01/1910). Entra na política em 1905, sendo eleito Deputado Federal. Em 1909 é eleito Senador pelo Amazonas, renunciando em 1911 para assumir a Prefeitura de Manaus, posto em que ficou até 1913, sendo o primeiro Prefeito eleito da capital. Anteriormente, em 1910, foi o responsável por fazer os agradecimentos ao Presidente do Conselho de Ministros da França George Clemenceau, em visita a capital federal. Em 1927 é mais uma vez eleito Deputado Federal, ficando no cargo até 1930, quando teve o mandato interrompido pela Revolução de 1930. Jorge de Moraes assumiu a Prefeitura em um período marcado pela crise econômica. O historiador Agnello Bittencourt assim descreve sua administração:

O ex-senador apenas pode realizar pequenos empreendimentos, arrancados ao magro orçamento do município. Terminada sua gestão, o prefeito estava cansado e irritado, coisa costumeira na sua psicologia. […] Quem quiser melhor conhecer as realizações municipais do triênio administrativo do Dr. Jorge de Moraes, procure o excelente “Anuário de Manaus para 1913-1914”, organizado por Heitor de Figueiredo – 1913 – Lisboa” (BITTENCOURT, 1973, p. 293).

Jorge de Moraes morava nessa rua, ao que se sabe, desde os tempos em que era chamada Afonso de Carvalho. Seu palacete, com um belo monograma, localizado no n° 177, quase no fim da rua, resiste às mudanças do entorno, puramente comercial e quase destituído de seu patrimônio histórico edificado, cujos últimos exemplares, em sua maioria, foram transformados em óticas, algumas com várias décadas de atividades naquela artéria.

Antigo palacete do Dr. Jorge de Moraes. FOTO: Ed Lincon, 2018.

Em 1930, essa rua deixava de se chamar Jorge de Moraes para, até os dias de hoje, ser conhecida como Rui Barbosa (1849-1923), uma homenagem ao famoso jurista, escritor e político soteropolitano da República. Tal mudança não foi aceita de imediato, ecoando insatisfações décadas mais tarde. O escritor João Chrysostomo de Oliveira, em artigo publicado no Jornal do Comércio, escreveu que “a homenagem ao ilustre estadista baiano é muito justa mas injustíssima a substituição do nome de Jorge de Moraes pelo da “Águia de Aya”. Ele chegou a pedir que a Câmara Municipal de Manaus restaurasse “[…] o nome de Jorge de Moraes para a rua da sua antiga residência”, batizando com o nome Rui Barbosa a Avenida Tarumã ou “[…] outra via mais conveniente” (JORNAL DO COMÉRCIO, 08/08/1993). De acordo com o historiador Mário Ypiranga Monteiro, em seu Roteiro Histórico de Manaus, a rua Rui Barbosa “foi das poucas ruas que findaram em ser beneficiadas com asfalto, ainda podendo ver-se as paralelas de aço dos trilhos de bondes” (MONTEIRO, 1998, p. 615).


FONTES:

Amazonas, 27/07/1881.
Almanach Administrativo, Historico, Estatistico e Mercantil da Provincia do Amazonas, 1884.
Jornal do Comércio, 19/01/1910.
Jornal do Comércio, 17/06/1976.
Jornal do Comércio, 08/08/1993.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


BITTENCOURT, Agnello. Dicionário Amazonense de Biografias: Vultos do Passado. Rio de Janeiro, Conquista, 1973.

MONTEIRO, Mário Ypiranga. Roteiro Histórico de Manaus. Manaus, Editora da Universidade do Amazonas, 1998.


CRÉDITO DAS IMAGENS:


Instituto Durango Duarte.
Ed Lincon.

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Meus agradecimentos aos amigos Eros Augusto Pereira da Silva, pela cessão do livro do historiador Mário Ypiranga Monteiro, e Ed Lincon Barros da Silva, pela foto do palacete do Dr. Jorge de Moraes.








terça-feira, 1 de janeiro de 2019

Museu Botânico do Amazonas (1883-1890)

O antigo prédio do Museu Botânico do Amazonas, posteriormente transformado em Asilo Orfanológico Elisa Souto e Instituto Benjamin Constant. FONTE: The City of Manáos and the country of Rubber Tree, 1893/Instituto Durango Duarte.

O Museu Botânico do Amazonas, primeira instituição científica da Província, foi criado no governo de José Lustosa da Cunha Paranaguá em 18 de junho de 1883 através da Lei Provincial N° 629, sendo efetivamente inaugurado em 16 de fevereiro de 1884 já na administração de Theodoreto Carlos de Faria Souto. Surgiu por iniciativa da Princesa Isabel (1846-1921) e por intermédio do engenheiro, botânico e naturalista mineiro João Barbosa Rodrigues (1842-1909), pesquisador com larga experiência sobre a flora amazônica. No Relatório Provincial de 25 de março de 1883, o Presidente José Paranaguá destacou a proposta de Barbosa Rodrigues (feita em 1882) de ser construído um museu botânico na capital da Província e as bases para o seu funcionamento. Essas bases seriam formadas, dentre outras coisas, pelo estudo de todas as plantas da flora amazonense, de suas propriedades químicas, medicinais e econômicas, a construção de um ervário, um laboratório, a publicação de uma revista de caráter histórico, geográfico e etnográfico sobre a Província, distribuída nos estabelecimentos científicos nacionais e estrangeiros; e a troca de materiais com os museus da Europa mediante a existência de duplicatas no ervário. “Para cabal desempenho terá o museu um botanico, um chimico, quatro ajudantes, dous serventes e um porteiro”. Os ajudantes, quer do botanico, quer do chimico, um servirá tambem de secretario, outro de photographo, outro de desenhista, e outro de preparador.(AMAZONAS, 25/03/1883).

Barbosa Rodrigues também fez o orçamento da construção da sede do museu, da montagem do laboratório, da compra de livros, mobiliário e a manutenção anual com os funcionários, as gratificações e a impressão da revista. Todos os itens somados custariam a Província 120:000$000. A ideia de um museu voltado para a pesquisa botânica, histórica e etnográfica gerou debates na Câmara dos Deputados. O Deputado Passos de Miranda, representante da Província do Amazonas, apresentou um aditivo de 30:000$000 anuais para o estabelecimento do museu botânico durante uma discussão sobre o orçamento para a agricultura, o comércio e as obras públicas realizada em 24 de outubro de 1882, com a justificativa de que as pesquisas sobre as propriedades das plantas amazônicas seriam extremamente vantajosas para o engrandecimento da economia e medicina locais e nacionais. Passos de Miranda questionava-se sobre o estado de abandonado dos recursos naturais e a inexistência de uma entidade voltada para o estudo destes: “Ora, se n’aquella immensa região, n’aquella flora riquissima, pódem-se encontrar tantos recursos para o desenvolvimento das sciencias e das artes, da industria e do commercio, como se deixa completamente abandonada?” (AMAZONAS, 25/03/1883). Passos de Miranda recebeu o apoio do Deputado Adriano Pimentel, também representante do Amazonas, no levantamento do aditivo e na sugestão do nome de Barbosa Rodrigues para a direção da instituição.

O museu foi instalado inicialmente, conforme o Relatório Provincial de 25 de março de 1885, em uma casa alugada localizada na Ilha de Caxangá, onde ocorreu a inauguração em 16 de fevereiro de 1884. Posteriormente foi transferido para uma das propriedades do Barão de São Leonardo, o prédio que futuramente daria origem ao Instituto Benjamin Constant (1894) e que antes foi o hospital de variolosos. Seu último endereço foi o Liceu, o Gymnasio Amazonense Dom Pedro II. Pela Lei N° 749 de 17 de maio de 1887, ficou autorizada a transferência do Asilo Orfanológico para o prédio do Barão de São Leonardo, ocorrida em 6 de julho de 1888, sendo transferido o museu para o Liceu, ficando este reduzido a uma sala.

Em 1885, a notícia da inauguração do quadro do ex-presidente José Paranaguá nas dependências do Museu nos dá uma dimensão de sua organização e acervo. Na sala em que foi colocado o quadro, voltada para a etnografia, ficavam armas de caça, armas de guerra e remos, objetos de madeira e palha. Nela existiam quatro armários divididos em 2 seções alfabeticamente ordenadas. O primeiro era formado por flechas, tangas, maracás, sandálias e colares de diferentes tribos. Tigelas de barro, panelas e alguidares poderiam ser vistos na parte inferior. O armário número dois possuía objetos de pedra do Amazonas e de Minas Gerais. No terceiro armário, vestimentas e máscaras tikunas, uma máscara do jurupary, pequenas panelas cheias de curare e flechas dos campás e mahuxacas (sic). Na parte superior, uma igaçaba vinda de Carvoeiro e um forno do rio Uaupés. No quarto, crânios encontrados no rio Purus e panelas do rio Jutaí. As portas do museu eram encimadas por flechas colocadas em rosetas e o teto era adornado com redes e flechas de várias tribos. A segunda sala era a de Botânica, onde ficavam armazenadas as coleções de diferentes plantas nativas e importadas. Por último, a terceira sala era ocupada pela biblioteca do diretor. Esperava-se que “[…] nossa população seja despertada pelo desejo de ver o que é nosso e que está alli colleccionado cuidadosamente em numero superior a 1000 objectos diversos”. Apesar de todo o entusiasmo, não se deixou de notar como o funcionamento do museu era deficitário, estando “hoje com seu pessoal reduzido a um director e secretario. Nem ao menos ha alli um servente para conservar as salas” (A PROVÍNCIA, 06/08/1885). Através da Lei N° 689, de 10 de junho de 1885, foram extintos os cargos de ajudante de químico, desenhista e porteiro, “[…] que nunca foram preenchidos, e cujos ordenados importavam, por anno, em 9:600$” (AMAZONAS, 21/09/1885). Foi uma constante na trajetória do museu a falta de mão de obra especializada para preencher seu quadro de funcionários. Foi nomeado secretário o jornalista fluminense Joaquim Augusto do Campos Porto (1855-1908). Deve-se esclarecer que boa parte do acervo era composto por coleções pessoais de Barbosa Rodrigues adquiridas na época em que comandou o Ministério da Agricultura e esteve no Vale Amazônico, entre 1872 e 1875.

No relatório de 1886 do museu, o diretor informava que o herbário possuía 1281 espécies vegetais, de 78 famílias e 322 gêneros, sendo classificadas e catalogadas mais de 5000 espécimes. Destes eram novos 56. O acervo botânico seria aumentado com coleções dos Estados Unidos, México e Chile. Do primeiro país viriam 800 espécies ofertadas pelo botânico John Donnell Smith. A seção etnográfica era formada por 1103 artefatos indígenas de 60 tribos do vale amazônico. Foi contratado, para auxiliar na montagem do laboratório de química, o bacharel Joseph Eugenio Aubert, que atuou entre 24 de novembro e 29 de dezembro de 1885. Esperava-se para maio de 1886 a chegada do químico Francisco Pfaff, “muito conhecido na Europa, professor da Universidade de Genebra e 1° ajudante do celebre Graëbe” (AMAZONAS, 25/03/1886). Nesse documento Barbosa Rodrigues expõe as dificuldades enfrentadas pelo museu desde sua fundação:

O museu que até agora tem tido uma existencia anormal, o que impede a sua organisação regular, de modo a satisfazer seus afins, apesar de repetidos pedidos e exigencias como que vai entrar em novo caminho para encetar trabalhos que produzirão os resultados que se tem em vista, com sua creação. Apezar porém, da falta quasi absoluta de meios de prosperidade, tem elle marchado, e, ainda que vagarosamente, dando resultados que vão além da expectativa de nacionaes e estrangeiros que visitam” (AMAZONAS, 25/03/1886).

Com todas as dificuldades, com materiais pagos pelo próprio Barbosa Rodrigues e que muitas vezes chegavam atrasados, o laboratório químico foi inaugurado em 16 de fevereiro de 1886 em comemoração aos dois anos de sua inauguração. Nesse ano o museu participa da Exposição Sul-Americana em Berlim. Em 29 de julho desse mesmo ano é realizada a primeira exposição sobre a História do Amazonas. Sobre esse evento, publicou-se o seguinte na imprensa: “[…] aplaudimos de coração a exposição do museu botanico, ao mesmo tempo que damos parabéns á província, por ter occasião de encontrar reunidos elementos que fallam de sua existencia no decorrer dos annos, elementos que são subsidio forte para historiadores e homens de sciencia” (JORNAL DO AMAZONAS, 29/07/1886). Percebe-se nessa fala que, além de ser um centro de pesquisas na área da botânica, o Museu de Barbosa Rodrigues foi responsável pela constituição de uma história oficial da província, recuperando os elementos materiais que atestariam sua antiguidade.

O surgimento do Museu Botânico do Amazonas está inserido no contexto da expansão do positivismo e do cientificismo evolucionista na segunda metade do século XIX. Institutos Históricos, Academias de Belas Artes e Museus surgem nas províncias brasileiras, ao molde das instituições europeias, formadas por membros vindos da elite intelectual, como núcleos de consolidação da soberania nacional, de debates da formação do Império, de seus elementos sociais e naturais e de propagação dos ideais de progresso e civilização. Como pôde ser visto em alguns pontos destacados por Barbosa Rodrigues, o museu manteria fortes relações com pesquisadores e instituições europeias. De acordo com a historiadora Lilia Moritz Schwarcz, quando surgem, “[…] os estabelecimentos locais se constituem em espécies de home lands para viajantes financiados por instituições estrangeiras, e principalmente para a Antropologia que se iniciava enquanto disciplina no Brasil” (SCHWARCZ, 1989, p. 38).

De 1885 a 1891 Barbosa Rodrigues publicou os seguintes trabalhos: A Pacificação dos Krichanas (1885), Relação dos productos enviados enviados para a Exposição de Berlin (1886, folheto), O Tamakuaré (1887), O Muirakaty (1889) e Poranduba Amazonense (1891). “Juntem-se a essa relação pequenos folhetos sobre plantas novas, artigos de jornaes sobre historia natural e um vocabulario completo da língua tupy e mais de 20 de differentes dialectos (inedito) e ver-se-ha que, em sete annos de trabalho, o resultado é realmente suprehendente” (CAMPOS PORTO, 1891, p. 76).

A revista, Vellosia, só veio a luz nos anos finais, sendo publicado um único número dividido em dois volumes, entre 1888 e 1891, este último reeditado no Rio de Janeiro pelo ex-secretário Campos Porto, período em que a instituição já havia sido desativada. Ela trazia descrições de plantas descobertas no Amazonas, estudos de Paleontologia, Arqueologia e Etnografia. Sua aparição tardia, sem atingir a meta pretendida (uma revista trimensal), explica-se pelas dificuldades financeiras em garantir sua impressão. No Relatório de 1888 do museu, Barbosa Rodrigues escreveu que o “[…] volume de Revista, relativo ao anno passado está no prelo desde julho do mesmo anno, não tendo sido possível, apesar de todos os exforços fazel-o apparecer” (AMAZONAS, 05/09/1888).

Os anos finais do museu foram os mais críticos. O orçamento de 1887, que era de 28:700$, foi para 13:400$000. O de 1889 não foi sancionado, mas, mesmo assim, reduzido novamente para 24:900$000. Na administração de Joaquim de Oliveira Machado a verba foi reduzida para 22:500$000. O então secretário Joaquim Campos Porto, em histórico traçado em 1891, expressa seu descontentamento: “Ao passo que se regateavam verbas minimas, as leis orçamentarias vinham cheias de gratificações, licenças por dous annos com vencimentos integraes, subscripções, concertos de escolas, igrejas, etc., tudo de uma imoralidade revoltante” (CAMPOS PORTO, 1891, p. 73). Quando da instalação da República em 15 de novembro de 1889, Barbosa Rodrigues foi nomeado pelo Governo Federal para assumir o cargo de Diretor do Jardim Botânico do Rio de Janeiro, posição que a muito almejava, em 25 de março de 1890. Perdia o Museu Botânico do Amazonas a única pessoa especializada na flora amazônica capaz de dirigi-lo. Dessa forma, o Governador Augusto Ximeno Villeroy, em 25 de abril de 1890, declarou extinto o Museu Botânico do Amazonas:

O Governador do Estado do Amazonas, tendo em vista o decreto n. 42 desta data, que extinguiu o Museu Botanico, resolve dispensar o cidadão João Barboza Rodrigues de director e o cidadão Philadelpho Camillo Pessôa de porteiro do mesmo museu.

O Governador aproveita esta occasião para agradecer ao cidadão João Barboza Rodrigues os eminentes serviços que prestou á Patria enriquecendo a sciencia com colossaes trabalhos sobre a flora indigena. Seus vastos trabalhos sobre as Orchideas attestam que este judicioso investigador é o legitimo herdeiro do laborioso Martius.

O Governador lembra ainda as interessantes pesquizas sobre os habitantes primitivos da America, e especialmente do Brazil, como um dos titulos de benemerencia do infatigavel Brazileiro; e ao desperdi-se de tão digno cidadão felicita-o pela elevada prova de apreço com que o distinguiu o Governo Provisorio (CAMPOS PORTO, 1891, p. 74).

Enfrentando problemas financeiros e técnicos desde sua criação, e agora sem um diretor especializado, terminava assim a trajetória de 7 anos do Museu Botânico do Amazonas, a primeira grande instituição científica do Amazonas. Nesses 7 anos, em meio a dificuldades as mais diversas, foram catalogadas plantas, fósseis, artefatos indígenas, realizados estudos históricos, etnográficos e antropológicos e produzidos folhetos, tratados e realizadas exposições que foram de extrema importância para os primeiros passos das atividades científicas genuinamente amazonenses.



FONTES (RELATÓRIOS E EXPOSIÇÕES):


Relatorio apresentado á Assemblea Legislativa Provincial do Amazonas na abertura da segunda sessão da decima sexta legislatura em 25 de março de 1883 pelo presidente, José Lustosa da Cunha Paranaguá.

Exposição com que o ex-presidente do Amazonas exm. sr. dr. José Jansen Ferreira Júnior passou a administração da Província ao 1° vice-presidente exm. sr. Tenente Coronel Clementino José Pereira Guimarães, em 21 de setembro de 1885.

Relatorio com que o exm. sr. dr. Ernesto Adolpho Vasconcellos Chaves, presidente da Província do Amazonas, installou a 1° sessão da legislatura da Assemblea Legislativa Provincial no dia 25 de março de 1886.

Relatorio com que o exm. sr. dr. Joaquim Cardoso de Andrade abrio a 1° sessão da 19° legislatura da Assemblea Provincial do Amazonas em 5 de setembro de 1888.


PERIÓDICOS:

A Província, 06/08/1885.
Jornal do Amazonas, 29/07/1886.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


CAMPOS PORTO, Joaquim. Histórico do Museu Botânico do Amazonas. In: Vellosia. Rio de Janeiro, 1891, p. 61-80.

SCHWARCZ, Lilia Moritz. O nascimento dos museus brasileiros, 1870-1910. In: MICELI, Sérgio. História das Ciências Sociais no Brasil. São Paulo: Vértice/IDESP, 1989.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Instituto Durango Duarte.

quarta-feira, 26 de dezembro de 2018

História da Criminalidade em Manaus: Caso Rebeca (1981)

Carmem Rebeca Miguel Lobo Carvalho. FONTE: Jornal do Comércio, 03/05/1981.

 “Requintes de barbarismo
Foi que a desgraça pintou
Crimes dos mais horrendos
Manaus aqui registrou
Carlos Lobo o desalmado
Sua filha trucidou”.

(SOARES, Claudio. Rebeca, a estudante mártir vítima do próprio pai. Manaus, 05/05/1981)

No dia 30/04/1981, uma quinta-feira, o tradicional bairro Praça 14 de Janeiro ficou tumultuado por conta de um crime que por várias décadas ecoaria na memória de seus moradores: A jovem Carmem Rebeca Miguel Lobo Carvalho, mais conhecida como Rebeca, de 13 anos, foi encontrada morta em sua residência, na rua Emílio Moreira, n° 1248, com várias perfurações de faca pelo corpo. Fazia pouco mais de 5 anos que a cidade tentava se recuperar das lembranças sombrias do ‘Monstro da Colina’, de São Raimundo. Mais uma vez um jovem era trucidado, constatando como esse tipo de crime, desde a década de 1960, estava se tornando mais frequente.

Carmem Rebeca Miguel Lobo Carvalho tinha 13 anos e era aluna do Colégio Nossa Senhora Auxiliadora, na rua Silva Ramos. Nessa instituição gostava de praticar vários esportes, com destaque para o basquete. Apesar de ser jovem, se sobressaía sobre os demais estudantes por sua altura, 1,78 metros. Seus pais eram Carlos Lobo Carvalho, ex-secretário de Comunicação no Acre e comerciante proprietário de um escritório de representações comerciais, e Carmem Miguel Lobo, funcionária pública da SEMIC (Serviço de Medicina, Indústria e Comércio). A família Lobo Carvalho era conhecida no bairro Praça 14 de Janeiro, onde ficava o escritório de Carlos, por sua dedicação ao trabalho e cuidados dispensados aos filhos. Ninguém imaginava que um membro da própria família trucidaria Rebeca…

Carlos Lobo Carvalho. FONTE: Jornal do Comércio, 05/05/1981.

Carlos Lobo Carvalho, o comerciante que era visto como um pai e trabalhador exemplar, matara a filha com cerca de 40 facadas (15 em algumas versões). De acordo com os depoimentos prestados por seu motorista e seu cunhado, todas as ações foram premeditadas. Pela manhã, horas antes de cometer o crime, Carlos encheu uma mala, duas bolsas e uma pasta com roupas e documentos, avisando a esposa que poderia “viajar a qualquer momento”. Feitas as malas, foi ao banco, onde sacou a quantia de 250 mil cruzeiros, deixando apenas 100 cruzeiros para trás. De tarde, por volta das 15:00 horas, quando seu cunhado e o motorista saíram de casa em direção ao Centro da cidade, trancou-se em seu quarto com Rebeca, onde a jovem foi encontrada morta. O depoimento de Carlos Lobo, prestado em uma segunda-feira, 04/05/1981, de pouco mais de uma página, é mais rico em informações, permitindo uma reconstituição precisa das horas que antecederam o assassinato de Rebeca; e confuso em algumas partes.

A mãe de Rebeca segurando a arma do crime, uma faca de caça. FONTE: Jornal do Comércio, 03/05/1981.

Carlos passou toda a manhã do dia 30/04/1981 trabalhando em seu escritório, que ficava ao lado de sua casa. 12:00 horas se reuniu com a família para almoçar. Terminada a refeição, levou a filha Raquel Miguel Lobo Carvalho para o Colégio Nossa Senhora Auxiliadora e a esposa para a SEMIC e, posteriormente, retornou ao escritório. Às 15 horas foi para casa fazer um lanche. Encontrou sua filha, Rebeca, assistindo televisão na sala. Disse algumas palavras e foi para a cozinha. Encontrando a empregada no local, deu dinheiro para que ela comprasse pão, café e leite. Depois de comer, foi até o quarto onde pegou uma pasta com documentos que utilizaria para comprar uma passagem para Macapá, seu destino no sábado. Enquanto arrumava os documentos, Rebeca entrou no quarto e sentou-se na cama. Perguntou se o pai viajaria mesmo e, com ele afirmando positivamente, pediu que trouxesse de Macapá um macacão. A partir deste ponto seu depoimento fica um tanto confuso: “Depois fui possuído pelo demônio”, disse ao delegado. “Sabia que empunhava uma faca e atingia alguém. Só parei quando me vi refletido no espelho como uma figura monstruosa. Então me recolhi no chão, com a cabeça entre as pernas e fiquei ali, não sei por quanto tempo, até que ouvi a empregada batendo na porta da frente”. Carlos não lembrava se tentou esconder o corpo, mas antes de abrir a porta para a empregada, trocou a roupa, que estava toda ensanguentada. Ao abrir a porta, pediu que a empregada não abrisse a porta do quarto pois “Rebeca estava dormindo e não poderia ser incomodada”. Quando o motorista Carlos Henrique e seu cunhado Andenor Saraiva de Oliveira voltaram do Centro, Carlos Lobo pediu que o primeiro colocasse a bagagem arrumada pela manhã no carro e o levasse até a casa de seu irmão, Cleber, no bairro Japiim. Enquanto rodavam pelo bairro em busca da casa de Cleber, o motorista notou que Carlos estava estranho, inquieto e falando sozinho que “estava desgraçado”. E continuou: “Não tenho para onde ir. O único lugar seguro seria a casa do meu irmão e não sei mais onde é. Para o sítio eu não vou”. Encontrando a casa do irmão, saiu do carro chorando e foi ao encontro deste, com quem ficou conversando e pediu ajuda. Cleber pediu o carro do motorista, que ficou ao lado de Carlos sem entender aquela situação. O irmão de Carlos voltou acompanhado de uma filha e pediu que o motorista fosse embora. Ele, no entanto, disse que ficaria ao lado de seu patrão que, no entanto, disse que não seria preciso e o liberou dos afazeres naquele dia. Dispensado o motorista, Cleber e Carlos foram para um varadouro na AM-010, onde passaram a noite de quinta-feira e a manhã de sexta-feira. Voltando para Manaus, pararam em um bar à beira da estrada e viram um grupo de jovens jogando bola em um terreno. Perguntando de quem era a propriedade, descobriram que era do advogado Armando Freitas. Carlos decidiu procurá-lo e disse que sabia apenas que tinha matado a filha Rebeca. De alguma forma a polícia foi avisada de que ele procurou um advogado, e esta, prontamente, fechou todas as saídas da cidade.

Carmem Miguel Lobo. FONTE: Jornal do Comércio, 05/05/1981.

No dia em que prestava o depoimento, cerca de 1000 pessoas se dirigiram para o distrito de polícia em que ele estava, aos gritos de “lincha o monstro que matou a filha”. Pedras foram arremessadas na janela do distrito, sendo necessária a transferência de Carlos para outro local. Um policial, para dispersar as pessoas, fez disparos para o alto, sendo necessário reforços da Companhia de Choque da Polícia Militar para controlar a situação.

Mas o que levou Carlos Lobo a assassinar a própria filha, utilizando como arma uma faca de caça? O que teria ocorrido para que um homem de sua posição social, benquisto pela vizinhança e sem antecedentes criminais, cometesse um dos crimes mais conhecidos da cidade? Deve-se interrogar as fontes, os depoimentos, para tentar penetrar no psicológico de Carlos Lobo.

Quando Carmem Miguel Lobo, a mãe de Rebeca, encontrou o corpo da jovem enrolado em um lençol na noite de 30/04/1981, ela, de acordo com as informações colhidas nos depoimentos e nas matérias de jornal, afirmava não ter dúvidas de que o assassino era seu marido. Mas por que Carmen tinha tanta certeza, mesmo antes das primeiras investigações que confirmariam tal assertiva? Carmen, por várias vezes, afirmou que Carlos sempre foi um marido e pai exemplar, não fumava e não bebia, sendo desconhecidos quaisquer vícios. Era bastante protetor em relação aos filhos, mas com Rebeca era diferente. Com a jovem ele era protetor ao extremo, beirando a possessão. Os outros filhos sentiam ciúmes dessa atenção especial dispensada a Rebeca, pois todas as vezes que saia, Carlos a levava junto. Um ano antes do crime, em 1980, Rebeca começou a namorar um jovem chamado Valber José Santana Feitosa, morador da rua Nhamundá, no mesmo bairro. Carlos descobriu o namoro e ficou extremamente irritado, chegando mesmo a procurar o padrasto de Valber para proibir o namoro. Em depoimento, o padrasto de Valber, Francisco Augusto da Cruz, sub-tenente reformado da Polícia Militar, confirmou que foi procurado por Carlos, que pediu que ele tomasse providências pois Rebeca era muito jovem para se relacionar amorosamente. Meses depois, Carlos foi novamente a residência de Francisco Augusto, ameaçando “aplicar um corretivo em Valber” caso os dois não rompessem relações, quando lhe foi mostrada uma carta de Rebeca insistindo no namoro.

Acreditava-se que, além das facadas, Carlos tinha deflorado a filha. Correram boatos pela cidade e pela imprensa. Carmem Lobo também acreditava que isso tinha ocorrido. No entanto, o legista do Instituto Médico Legal não encontrou nenhum indício de violência sexual contra Rebeca no exame de necrópsia. Em seu próprio depoimento Carlos afirmava que em nenhum momento passou por sua cabeça o desejo de violá-la e, mais de uma vez, que estava possuído por um Demônio ou entidade semelhante. Questionado mais de uma vez por repórteres se Rebeca era sua filha legítima, sempre afirmou que sim. Sem antecedentes criminais, sem ato sexual durante o crime… O que aconteceu com Carlos Lobo naquele dia? Será que premeditara o crime algumas horas antes do dia 30/04/1981 ou já o tinha em mente desde 1980, quando Rebeca conheceu Valber? De alguma forma, utilizando aqui um pouco de Psicologia, o filicida Carlos Lobo ao matar a filha, tentava atingir a esposa Carmem? Se sim, por quais motivos? São muitas perguntas cujas respostas ficam no campo das suposições.

Após o tumulto no distrito policial, Carlos foi levado a um cartório para concluir seu depoimento. Sua esposa, a pedido do delegado, disse que queria vê-lo. Ficando frente a frente com o assassino de Rebeca, com quem constituiu família, enfureceu-se. Aos gritos, perguntava: “Carlos, o que é que você fez seu desgraçado? Porque mataste tua filha, rasgando-lhe o ventre? Não pensastes nos planos que fizemos juntos pensando no futuro dela? Minha vontade é matar-te pouco a pouco e engolir todo o teu sangue”. Carmem foi levada do cartório e Carlos Lobo enviado à Penitenciária Central do Estado, sendo condenado em 04/05/1981 a 25 anos de prisão.

A residência da família Miguel Lobo de Carvalho foi transformada na casa de drinks Anacondas, inaugurada seis meses depois do crime. De acordo com frequentadores, o ambiente desse bar era bastante pesado.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

SOARES, Claudio. Rebeca, a estudante mártir vítima do próprio pai. Manaus, 05/05/1981 (Cordel).

ZYLBERKAN, Mariana. Mortes em família: quando o assassino está dentro de casa. Revista VEJA, 21/09/2013.


FONTES:

JORNAL DO COMÉRCIO, 03/05/81, 05/05/81, 06/05/1981, 07/05/1981, 17/10/81.






quinta-feira, 6 de dezembro de 2018

Ruas de Manaus: Tabelião Lessa


Travessa Tabelião Lessa, 1985. FONTE: Manaus Sorriso/Acervo da PMM.

Localizada entre as ruas dos Barés e Barão de São Domingos, do lado do Mercado Municipal Adolpho Lisboa, na zona portuária do Centro da cidade, a Travessa Tabelião Lessa passa quase que despercebida pelos milhares de transeuntes que todos os dias frequentam aquela área. Não fosse uma placa com letras brancas e fundo azul, já teriam esquecido por completo que aquela pequena via possui nome.

Sua história começa em 1918. Em 19 de março daquele ano, em sessão no Conselho Municipal, o Intendente Dr. Fulgêncio Martins Vidal apresentou um projeto de lei que dava o nome de “[…] Tabelião Lessa á rua que fica ao lado leste do Mercado Público, até hoje sem nome” (IMPARCIAL, 19/03/1918). Até aquele momento, o pequeno trecho ao lado do Mercado Público não possuía nome, sendo um mero caminho de acesso à praia que se formava com a vazante do rio. O projeto foi aprovado e transformado em “Lei N° 923 de 20 de março de 1918” (IMPARCIAL, 20/03/1918).

Um mês antes, em fevereiro de 1918, falecera o homenageado, Coronel Manoel Antonio Lessa, popularmente conhecido como Tabelião Lessa. Maiores informações nos são apresentadas em seu necrológio (elogio fúnebre): Manoel Antonio Lessa nasceu em 16 de fevereiro de 1845 na Província do Ceará, sendo seus pais José Antonio Lessa e Lauredana Corrêa Lessa. Veio jovem para a região amazônica, indo primeiramente para a cidade de Óbidos, no Grão-Pará, matriculando-se no Colégio S. Luiz de Gonzaga. Desempenhou, em 1863, então com 18 anos, os cargos de porteiro do Inspetor da Tesouraria da Fazenda e de escrivão da Coletoria de Rendas Federais. Um ano depois foi nomeado auxiliar de expediente do Selo. De 1867 a 1868, atuou naquela cidade como escrivão interino da Mesa de Rendas. Em 1868, mais uma vez através de nomeação, atuou como escriturário. Em 1869 foi nomeado praticante de Tesouraria da Fazenda e auxiliar do 2° escriturário Euphrasio Paes de Azevedo, na Flotilha do Amazonas. Serviu no Correio Geral e, em 7 de julho de 1870, foi nomeado Tabelião de Notas de Manaus, cargo no qual construiu sua carreira. Faleceu em 16 de fevereiro de 1918 aos 73 anos, “[…] na mesma data de seu nascimento, com a diferença de 1 hora e 20 minutos” (A CAPITAL, 17/02/1918).

Antiga mercearia 'Porta Larga'. FOTO: Robson Franco, 2014.

Alguns anos depois da nomeação daquela pequena via, já aparecem estabelecimentos comerciais endereçados com o nome de rua, posteriormente travessa, Tabelião Lessa: “Hotel Popular”, do espanhol José Rodriguez González (EL HISPANO AMAZONENSE, 29/07/1922), “Mercearia Sempre Viva (JORNAL DO COMÉRCIO, 03/02/1923), eTabacaria Nova Estrela”, de M. Pinto (JORNAL DO COMÉRCIO, 07/09/1944). O mais conhecido, sem dúvida, é o prédio da antiga mercearia Porta Larga, que chama a atenção por sua arquitetura. O prédio, pouco largo, possui uma entrada consideravelmente grande se comparada com o resto da obra.

A Travessa Tabelião Lessa recebeu, em 1956, o serviço de “pavimentação com alvenaria poliédrica e revestimento de asfalto” (MENSAGEM À ASSEMBLEIA LEGISLATIVA APRESENTADA PELO GOVERNADOR DO ESTADO DO AMAZONAS POR OCASIÃO DA ABERTURA DA SESSÃO LEGISLATIVA DE 1956). Mais recentemente, em 2014, a Prefeitura instalou um portão de ferro na travessa para impedir a comercialização irregular de pescados e o trânsito de moradores de ruas e usuários de entorpecentes.


FONTES:

Imparcial, 19/03/1918.
Imparcial, 20/03/1918.
A Capital, 17/02/1918.
Mensagem à Assembleia Legislativa apresentada pelo Governador do Estado do Amazonas, Plínio Ramos Coelho, por ocasião da abertura da Sessão Legislativa de 1956.


CRÉDITO DA IMAGEM:

Manaus Sorriso/Acervo da PMM.
Robinson Franco.