domingo, 19 de abril de 2020

Boate Verônica, em Manaus

Boate Verônica. FONTE: Jornal do Commercio, 24/01/1974.

A já desaparecida Boate Verônica, também chamada Lupanar Verônica nas crônicas policiais, foi uma das mais famosas de Manaus, funcionando entre as décadas de 1950 e 1970. Em algum momento de nossas vidas já ouvimos algum parente mais velho citar seu nome ou contar alguma história envolvendo o local.

Ela estava localizada na antiga Avenida João Coelho, hoje Avenida Constantino Nery, no bairro de Flores (atualmente a região corresponde ao bairro Chapada, mais especificamente onde fica o Millenium Shopping). Seu nome fazia referência à dona do empreendimento, a senhora Maria Verônica de Oliveira Sena (1902 - ?), de origem maranhense.

Antes da Boate Verônica, Maria Verônica de Oliveira Sena foi dona do Bar Bom Futuro, também localizado no bairro de Flores. Ao que tudo indica, ela comprou o negócio do comerciante Antônio José Teixeira, o reinaugurando em 1950, conforme anúncio publicado no Jornal do Commercio:

"Bar Bom Futuro
(bairro de Flores)
de Maria Veronica de Olliveira

Este notável estabelecimento comercial, com modernas instalações, agora completamente reformado e com nova gerência, acha-se à disposição dos seus fregueses, à qualquer hora do dia e da noite.

Cosinha eficiente - Perfeição - Asseio e esmero

Grande churrascada à gaúcha 

Habilitem-se imediatamente para tomar parte na grande churrascada de domingo próximo, preparada por autêntico gaúchos, com que a nova gerência do bar "BOM FUTURO" comemorará a sua ré-instalação" (1).

No Bar Bom Futuro Verônica realizava grandes bailes, todos embalados pelas músicas de bandas de jazz. Nos fins de semana, além dos famosos churrascos, oferecia à clientela tartarugadas e vatapás. Na noite do dia 21 de outubro de 1950 inaugura o serviço de iluminação elétrica, dando adeus às lamparinas (2). Verônica de Oliveira comandou o bar até 1957, quando o põe a venda, conforme anúncio de 24 de outubro daquele ano:

"Flores
Bar Bom Futuro

Vende-se este conhecido bar com grande terreno e piscina assim como outra grande casa adjunta com 10 quartos e ainda outra menor. Aceitam-se ofertas. A tratar à av. 7 de Setembro n. 1293, ou por telefone com o n. 2499" (3).

Verônica iniciou suas atividades como prostíbulo no final da década de 1950, pois em 1959 já aparece nas páginas policiais. Naquele ano o jornal A Gazeta publicou uma matéria com o título Continuam as cenas de Sangue na "Verônica", na qual discorre sobre uma briga entre duas prostitutas, já bastante embriagadas, por causa de um cliente. Após violento embate, ambas foram levadas para o hospital, e de lá para a Delegacia (4). As brigas nessa boate eram frequentes e extremamente violentas. Em 1961, a jovem prostituta Teresa Gaspar da Silva, de 19 anos, foi "[...] ferida por outra companheira com uma gilete sofrendo ferimento inciso no braço direito" (5).

Um dos atrativos do estabelecimento era o igarapé que o margeava, o Igarapé do Mindú, servindo de banho para seus frequentadores. Estes, aliás, eram de diferentes classes sociais, indo do operário mais humilde ao funcionário público de carreira. De acordo com o pesquisador Ed Lincon Barros da Silva, "Verônica colocava algumas prostitutas vestidas de estudantes normalistas, que ficavam nas praças da Saudade e do Congresso atraindo clientes".

Além da prática do lenocínio e das brigas diárias, a boate também sofria investidas policiais por permitir a entrada de menores de idade, que ingeriam juntamente aos adultos bebidas alcoólicas e entorpecentes. Muitas vezes estes vinham da escola ou fugiam durante a madrugada para frequentar o local. Em 1962 o jornal A Crítica publicava a matéria Lupanar da Verônica é o preferido por menores desajustados. Uma ronda noturna da Vara da Família conseguiu apreender vários deles:

"Os menores foram os seguintes; JMR, de 17 anos, filho de Pascoal Rodrigues Rocha; EAR, de 17 anos, filho de Domicio Rocha; MPG, de 17 anos, filha de João Gomes; RMS, de 19 anos, filha de Francisco Braga de Souza; MIA, de 18 anos, filha de Antonio dos Anjos; MJS, de 17 anos, filho de Francisco Januario e MRPS, de 17 anos, filha de Antonio Romeiro" (6).

Também era palco de confusões envolvendo policiais. Em 1963, o policial Olímpio do Espírito Santo Lobato, lotado com outros colegas para fazer a segurança do local, enquanto tentava dar fim a uma confusão, foi esfaqueado com uma peixeira pelo funcionário público Jonas Castro de Moura, alcoolizado. Olímpio conseguiu, mesmo ferido, desferir dois tiros nas pernas de seu agressor, que foi imediatamente preso (7). Dois anos depois, em 1965, o policial José Aurélio de Oliveira desferiu uma facada no policial Milton Medeiros da Silva (8). 

Entre 1968 e 1970 a boate foi fechada duas vezes. Nesta última ela já funcionava, além de Boate Verônica, como Hotel Madrid (foto). Bastava um relaxamento na fiscalização e ela voltava a abrir. No ano seguinte encontramos a Verônica contratando:

"Empregados

Precisa-se de dois empregados (um homem e uma mulher), na Boite "Verônica". Tratar no mesmo local" (9).

Em dezembro de 1972, a Delegacia de Investigações Gerais e a Polinter (Polícia Interestadual), a par de inúmeras denúncias de moradores do bairro de Flores, fecharam novamente a boate por tempo indeterminado (10). Dois anos mais tarde, em 1974, a Verônica continuava a funcionar como Hotel Madrid. A Secretaria de Segurança Pública fechou o estabelecimento de forma definitiva, pois a prostituição continuava, prendendo Maria Verônica de Oliveira Sena e seu marido, José João Gabriel (11). Tinha fim um dos mais famosos lupanares da Manaus Antiga.


NOTAS:

(1) Jornal do Commercio, 06/01/1950.

(2) Jornal do Commercio, 21/10/1950.

(3) Jornal do Commercio, 24/10/1957.

(4) A Gazeta, 27/02/1959.  Apud FILHO, Raimundo Alves Pereira. Lupanares e Puteiros: Os últimos suspiros do rendez-vous na sociedade manauara (1959/1969). Manaus: UFAM, Dissertação (Mestrado em História), 2014, p. 91.

(5) Jornal do Commercio, 04/01/1961.

(6) A Crítica, 30/11/1962. Apud FILHO, Raimundo Alves Pereira. Lupanares e Puteiros: Os últimos suspiros do rendez-vous na sociedade manauara (1959/1969). Manaus: UFAM, Dissertação (Mestrado em História), 2014, p. 93.

(7) Jornal do Commercio, 05/01/1963.

(8) Jornal do Commercio, 03/08/1965.

(9) Jornal do Commercio, 31/03/1971.

(10) Jornal do Commercio, 21/12/1972.

(11) Jornal do Commercio, 24/01/1974.


quinta-feira, 16 de abril de 2020

Vila Mamão, em Manaus

Vila Mamão, 1987. FOTO: Afrânio Ribeiro. FONTE: Manaus de Antigamente.

A Vila Mamão é uma das mais tradicionais comunidades do bairro de São Francisco, na zona Sul de Manaus. Ela tem origens na década de 1940, quando a região pertencia ao bairro da Cachoeirinha (São Francisco seria fundado pouco mais de uma década depois).

Entre 1948 e 1949 a Vila Mamão esteve no centro de uma acirrada disputa com o Estado. O Governo pretendia dar fim à comunidade para erguer no local o Sanatório de Tuberculosos. As terras onde a Vila estava eram da Prefeitura. Os Deputados Estaduais, em diálogo com a mesma, conseguiram transferir o patrimônio para o Governo do Estado. Foram oferecidas indenizações aos moradores, à época cerca de 400, mas boa parte deles recusou a proposta. Como "solução", uma parte das casas foi demolida para a construção do Sanatório, sendo seus moradores realocados  em outros pontos do bairro (1). O Sanatório, batizado Adriano Jorge, futuro hospital homônimo, foi inaugurado em 30 de junho de 1953 (2).

Entre 1950 e 1954, período em que o político Coronel Alexandre Montoril (1893-1975) organizou o bairro de São Francisco, a Vila Mamão passou a fazer parte deste.

Analisando notas sobre o local publicadas no Jornal do Commercio, percebe-se que uma parte de seus moradores era composta por imigrantes nordestinos, sobretudo cearenses, pernambucanos e alagoanos. A outra era formada por amazonenses oriundos de cidades do interior. Essas pessoas tinham como ocupação trabalhos braçais, atuando como marceneiros, carpinteiros, pedreiros, sapateiros e faxineiros. As casas onde viviam eram simples, conforme anúncios de venda publicados no periódico:

"Vende-se 4 casas de madeira na Vila Mamão, ns. 1571, 140, 225 e 28, bairro São Francisco. Tratar com o proprietário na Rua Dr. Alminio, 45" (3).

"Vende-se uma casa na Vila Mamão, coberta de telha. A tratar no abrigo Pensador com o sr. Sebastião Lopes" (4).

Ao longo de sua História a Vila Mamão ficou conhecida por conta das confusões envolvendo os frequentadores de seus bares e "inferninhos". Nestes últimos eram encontradas as "mariposas", nome popular dado às prostitutas. O lugar chegou a ganhar o apelido "Boca do Lixo". Todos os dias os moradores das redondezas e os funcionários do Sanatório faziam denúncias contra essa situação. O Jornal do Commercio descreveu da seguinte forma o cotidiano da Vila Mamão  em 1972:

"Quase todos os dias fatos desagradáveis ali ocorrem. Brigas, cadeiradas, tiroteio e tantos outros distúrbios, como o que ocorreu sexta-feira última, quando um cidadão foi baleado por um desordeiro, dos muitos que para ali convergem com o intuito de provocarem arruaças" (5).

Os points das confusões eram os bares 'Chacrinha', de Manoel Waldemir, e o 'São Francisco', de Francisco Gomes da Silva e Adalberto de Lima Barbosa. Nesse mesmo ano a Secretaria de Segurança Pública, além de retirar as prostitutas do local, baixou uma portaria estabelecendo o funcionamento dos bares até as 18 horas. Tais medidas geraram descontentamento entre os proprietários, que processaram o órgão de segurança pública (6).

Nos anos 1980, tornou-se um reduto eleitoral do Governador Gilberto Mestrinho e de seu sucessor, Amazonino Armando Mendes. A moradora mais empenhada na defesa desses dois políticos era Lucimar Vieira, conhecida como "Lucimar Mamão", que organizava charangas para defendê-los e atacar os opositores (7). É nesse período que surge o Vila Mamão Futebol Clube e o já desaparecido bloco Mocidade Independente da Vila Mamão. No Governo de Amazonino Mendes foi construída a quadra poliesportiva da comunidade, reconstruída e reinaugurada em 1994 no Governo de Gilberto Mestrinho(8).

Por último, sobre as manifestações folclóricas da Vila Mamão, pode-se citar os bumbás Gitano, fundado em março de 1979 (9), e o Guerreiro.

NOTAS:

(1) Jornal do Commercio, edições de 28/04/1948, 21/05/1948, 22/05/1948, 23/05/1948, 25/05/1948,  27/05/1948, 28/05/1948, 29/05/1948, 23/07/1948, 09/09/1948, 10/12/1948, 30/03/1949 e 20/09/1949.

(2) FHAJ. História da Fundação. Disponível em: http://www.fhaj.am.gov.br/institucional-2-2/historia-da-fundacao/. Acesso em 15/04/2020.

(3) Jornal do Commercio, 22/05/1957.

(4) Jornal do Commercio, 19/06/1965.

(5) Jornal do Commercio, 23/04/1972.

(6) Jornal do Commercio, 19/10/1972 e 14/11/1972.

(7) Jornal do Commercio, 22/09/1986.

(8) Jornal do Commercio, 03/03/1994.

(9) PESSOA, Simão. A Vingança do Contrário. Blog do Simão Pessoa, 19 de novembro de 2010. Disponível em: https://simaopessoa.blogspot.com/2010/11/vinganca-do-contrario.html. Acesso em 16/04/2020.

sexta-feira, 10 de abril de 2020

A Gripe Espanhola em Manaus (1918-1919)


Por Aguinaldo Nascimento Figueiredo, professor, escritor e membro do Instituto Geográfico e Histórico do Amazonas (IGHA).

Compartilho novamente meu artigo sobre esse episodio fatídico ocorrido em Manaus em 1918, vitimando um sem número de pessoas, seres humanos que tinham parentes e se amavam ou não, mas que depois da conscientização que só a solidariedade e o amor ao outro podem construir sociedades com dignidade, é que foi possível a debelação da epidemia e a preservação dos vivos. Viva os manauras, viva Manaus, viva os seres humanos, humanos.

A GRIPE ESPANHOLA EM MANAUS

Manchete sobre a Gripe Espanhola em Manaus. FONTE: Jornal do Commercio, 28/10/1918.

A gripe espanhola foi a influenza que se iniciou, provavelmente, nos confins do continente asiático e se propalou pelo mundo a partir da mutação do vírus H1N1, chegando ao Brasil por contágio de marinheiros da Armada brasileira no Senegal, aportando em Manaus, via fluvial, em setembro de 1918. A pandemia levou esse nome em razão de ter sido a imprensa espanhola a primeira a divulgar sua existência, bem como seus perigos e sua letalidade. Durante sua prevalência em todos os lugares que afetou, a gripe matou milhões de pessoas, inclusive no Rio de Janeiro, Recife e Belém.

De acordo com relatos colhidos no livro - História da Medicina e das Doenças no Amazonas, do doutor Antônio José Loureiro, editado em 2004, os primeiros casos da gripe em Manaus foram detectados no início de setembro de 1918, obrigando as autoridades sanitárias a fechar escolas, clubes, suspender diversões e reuniões com muita aglomeração humana. Mesmo a despeito dessas medidas emergenciais, os focos de contaminações se alastraram imediatamente. Em poucos dias a cidade virou um pandemônio, com todas as suas localidades sendo afetadas pela violência da moléstia, cujos sintomas eram: febre alta, dores na fronte e nos músculos, catarro nas vias respiratórias e aéreas, fadiga, sufocamento e morte. Para a infelicidade dos afetados, até aquele momento, não se tinha esperança de cura e nem de profilaxias adequadas para tratar a doença.
Foi criado até um Comitê de Salvação Pública para enfrentar o perigo que ameaçava a população de ter parte de sua gente extinta. Esse órgão encarregou-se de recolher donativos, remédios, roupas e alimentos para distribuir entre os mais necessitados que, em razão das deficiências alimentares, eram as vítimas prediletas do surto malsão. Vários postos de atendimentos desse comitê foram instalados em pontos estratégicos da cidade, sob a supervisão do Exército, por meio do Tiro 10, da Polícia Militar e membros da sociedade civil organizada, que passaram a garantir a segurança dos que podiam ser salvos. A medicação era à base de quinino, da vacina antivariólica, do Allium sativum, da cânfora e do arsênico, todos sem eficácia comprovada, mas era o que se tinha para o tratamento naquele fatídico momento.
Tudo que se fazia não surtia resultados positivos para controlar seus efeitos nocivos e as mortes rapidamente se multiplicaram pelas ruas do centro, dos bairros e nas cercanias. O número de cadáveres era considerável, obrigando as autoridades a requisitar forças militares e voluntários para realizar os sepultamentos dos corpos que entulhavam as estradas e se reconhecia os lugares mais infectados a partir das nuvens de urubus sobrevoando os restos mortais. O bairro da Cachoeirinha, um dos locais mais afetados, se despovoou e os cemitérios ficaram pequenos para tantos expirados, obrigando o poder público a abrir valas comuns em lugares ermos como as margens das Estradas de Flores e do Tarumã, para enterrar os indigentes e mesmo os que eram abandonados pelas famílias, temendo mais contágio.
Calcula-se que mais de 6 mil pessoas ou o equivalente a quase 10% da população de Manaus morreram em consequência do contágio direto dessa gripe, situação que se agravou em função da cidade já viver os primeiros sinais da falência da economia gomífera. Uma situação que é digna de citação, com todos os méritos e louvores nesse episódio, foi à solidariedade do povo, principalmente dos médicos, enfermeiros, membros da Maçonaria e voluntários envolvidos no combate à pestilência perversa, que não se omitiram no chamamento de prestar sua contribuição em mais um momento delicado da cidade, demostrando mais uma vez a altivez, a dignidade e o espírito público dos manauaras.
Não obstante, as atitudes mais recomendadas para a prevenção da doença, incluíam o consumo de limão (que teve seu preço quadruplicando no comércio), uma rigorosa higiene bucal e corporal, além de uma boa alimentação, que funcionavam como as melhores medidas para conter a pandemia maligna. Em janeiro de 1919, a doença já perde força de sua letalidade, sendo paulatinamente extinta do território de Manaus.

quarta-feira, 8 de abril de 2020

Boate Spectron, em Manaus


Público na Spectron. FONTE: Youtube (Som das Pistas com Dj DHEO).

Um dos lugares de Manaus que mais deixou saudades em seus frequentadores foi a Boate Spectron, que hoje estaria completando 33 anos. Nesse texto vamos conhecer um pouco de sua história, do ano em que foi fundada ao fechamento.

A antiga Boate Spectron estava localizada entre as ruas Lobo d’ Almada e 24 de Maio, no Centro. Foi inaugurada no dia 08 de abril de 1987, às 21 horas. A Zona Franca de Manaus já estava com duas décadas de pleno funcionamento, e aumentava na cidade a demanda por novos espaços de divertimento. Foi nesse contexto que os irmãos empresários Alexandre e Afif Baydoun fundaram essa boate.

A Spectron foi construída para ser uma casa noturna de luxo. Seus frequentadores, nos primeiros anos, eram membros das classes média e alta, artistas, políticos e colunistas sociais. A entrada era bastante controlada, devendo as pessoas utilizar sapatos e roupas sociais. Nesse período ela recebeu artistas como Claudia Raia, Alexandre Frota, Xuxa e Dj Malboro. Assim o Jornal do Commercio descreve o local em seu primeiro mês de funcionamento:

A Spectron, uma das mais luxuosas discotecas de Manaus, recentemente inaugurada, vem oferecendo à sociedade amazonense animadíssimas promoções, contando também com a presença da turma jovem” (Jornal do Commercio, 16/05/1987).

Além da presença de artistas, eram realizados eventos como A Noite dos Colunáveis, dedicada exclusivamente aos colunistas sociais da época; a escolha da Garota Spectron; desfiles de moda; bailes de Carnaval; noites de flash back; e, a cada ano, o Réveillon da Spectron. O ponto alto da boate ficava por conta das matinês embaladas por músicas eletrônicas. Os Djs mais famosos foram Alex Marques e Raidi Rebello. Alex Marques promovia todos os sábados o “sabadabadoo” e domingos o “domingal”. Percebendo uma leve queda nos lucros entre fins de 1980 e início de 1990, seus proprietários decidiram popularizar o empreendimento. Um anúncio de 1997 é bastante significativo a esse respeito:

Diversidade de ritmos. Ingressos a R$ 5,00 (preço único). Capacidade para 3.000 pessoas. Funciona 6° e sábado a partir das 21 h, e domingo às 19 h. Rua Lobo d’ Almada, 322, Centro (esquina com rua 24 de maio)” (Jornal do Commercio, 21/11/1997).

Apesar de ter atingido o auge em fins dos anos 1990, nesse mesmo período tem início sua decadência, motivada pela crescente violência urbana e o surgimento de shopping centers, que passaram a oferecer novas formas de divertimento à população. A violência era representada pelas galeras, grupos de jovens da região central ou de bairros distantes que, como “tribos” rivais, transformavam a pista de dança da discoteca em um verdadeiro campo de batalha (OLIVEIRA, 2017). A Spectron, assim como outras casas do gênero, ainda tinha que lidar com a forte presença de jovens, após as 22 hrs, ingerindo bebidas alcoólicas e entorpecentes. Após denúncias de frequentadores e moradores das redondezas, o Juiz da Infância e Adolescência, Rafael Romano, decidiu que:

[…] se algum menor vir a ser apanhado nesses locais após as 22:00 horas, com substâncias tóxicas, será encaminhado à Delegacia de Menores, enquanto os adultos serão levados para a Delegacia de Repressão e Entorpecentes”.

Romano explicou ainda que, ao longo daquele ano, “já fechamos a Danceteria Classe “A”, por quatro meses e o mesmo faremos para que o Cheik, Pagode da Armação e Spectron também deixem de ser o antro de marginalidade que são atualmente, mesmo que, para isso, tenhamos que fechar, de vez, esses locais” (Jornal do Commercio, 10/01/1995). A boate foi brevemente fechada, voltando a funcionar no dia 14 de julho de 1995. Sobre a reabertura, o Jornal do Commercio teceu o seguinte comentário:

Sugerimos que o Juizado da Infância e da Adolescência bem como as polícias Civil e Militar, façam uma ação conjunta com os donos do estabelecimento e consigam, dessa forma, evitar que a violência existente nas proximidades das boates que reúnem jovens, venha a continuar acontecendo. Não basta reprimir, tem que prevenir” (Jornal do Commercio, 14/07/1995).

Os proprietários da Spectron, ao longo dos anos, fizeram de tudo para que o negócio não falisse. Novas reformas, novas formas de atrair o público etc. Ocorre uma grandiosa reinauguração em 06 de junho de 1998, comandada pelo Dj Raidi Rebello e a Equipe Dance Mix. Apesar de todos os esforços, a discoteca encerrou suas atividades após pouco mais de uma década em funcionamento, nos anos 2000.

Prédio onde funcionou a Spectron, no Centro de Manaus. FOTO: Marcio Melo, 2019.


FONTES:

Jornal do Commercio, 16/05/1987.

Jornal do Commercio, 10/01/1995.

Jornal do Commercio, 14/07/1995.

Jornal do Commercio, 21/11/1997.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:


OLIVEIRA, Marcos Roberto Russo. Amizades, porradas, facadas e caseiras fumegantes: uma história das galeras de Manaus (1985-2000). UFAM, Dissertação (Mestrado em História), 2017.






domingo, 22 de março de 2020

Dias de Peste: O poema de Álvaro Maia sobre a Gripe Espanhola em Manaus

À esquerda, Álvaro Botelho Maia (1893-1969). À direita, pacientes acometidos pela gripe em Iowa, nos Estados Unidos, em 1918. FONTES: Senado Federal/The Gazette, 2020.


Álvaro Botelho Maia (1893-1969), advogado, professor, escritor e político amazonense, publicou em 1918 no jornal Imparcial, por ocasião da epidemia de Gripe Espanhola em Manaus, o poema Dias de Peste, no qual discorre sobre os impactos da doença no cotidiano da cidade.


DIAS DE PESTE

PARA AFFONSO CUNHA.

I

A risada cortante, o olhar frio, a fronte alta,
marcando a destruição dos destinos humanos,
com o percurso veloz dos grandes aeroplanos,
alada Proserpina, aos volteios resalta...

Decepa, num segundo, o esforço de cem annos...
Cerca-se de anjos máos, o morticinio exalta,
e entorna sobre o mundo a purulenta malta
de venenos subtis, de pestiferos damnos...

Quem, porventura, a enfrenta á alegria não volta...
Segue-lhe o passo errante uma funebre escolta
de microbios lethaes e de invisiveis dardos...

E vae, como quem vae por um bosque em tormenta,
vendo atravez da sombra a alcateia sanguenta
de serpentes e leões, de tigres e leopardos...

II

Os mil deuses da Peste, horrendos semeadores,
exhibindo com furia o agigantado porte,
deslisam pela terra em barbara cohorte
e atiram rudemente as miserias e as dores...

A scena inspira á tela uma pintura forte...
Vê-se ao fundo, ao luzir de fulvos reflectores,
a ferrea picareta á mão dos cavadores,
que abrem vallas triumphaes nos canteiros da morte...

Vão os defunctos, como os bois para os mercados,
em tardos caminhões, ás duzias carregados,
- homens negros de pó, virgens de seios rentes...

E, vendo-os caminhar para o eterno horisonte,
- dantesca procissão nas aguas do Acheronte - 
Todos sentem no corpo o furor dos tridentes...


III

A luz rola em tumulto. O brando luar parece
feito para cobrir um campo de batalha...
O sol, que se despenha em redoirada messe,
jorra no ouro em fusão violencias de metralha...

Neste cyclo de dor, que os nervos atassalha,
quanta belleza extrema os olhos enardece...
Vêde! A renda do luar é uma tenue mortalha;
o sol é um cirio ardente, é a cor ardendo em prece...

Que importa á natureza o nosso amargor triste?
e sossobre a ventura? e corações enviuvem?
e enfraqueça o que vibra? e morra tudo o que ama?

Ah! regresse ao silencio o ideal que ainda existe!
Lua, occulta o esplendor nas dobras de uma nuvem!
Sol, teu deslumbramento é uma ironia em chamma!


IV

Está morta a energia. A ansiedade está morta.
As longas ruas são rios por onde passa,
gemendo em vagalhões, toda a immensa desgraça
de um colosso asphyxiado em fulminea retorta...

Rompendo o isolamento, entreabre-se uma porta...
O quadro é impressionante: á luz tremula e baça, surge a putrefacção nojosa de uma raça,
que em sua formidanda angustia se conforta.

Rondam germens no espaço... Esplendem, céus em fóra,
fogueiras de alcatrão... Buscando um desafogo,
tomba a fronte em vigilia até o alvor da aurora...

E á noite, vista de ao longe, a febrenta cidade
resuscita á lembrança, aos livores do fogo,
a historica visão de uma longinqua idade...


V

Nessas ruas, que são para a embriaguez e o orgulho,
vultos magros se vêm em graves roupas pretas...
- São vencidos e heróes, mendigos e calcetas, 
manas que attingiu o virulento esbulho...

Erguem vozes de dor, como um fundo marulho
de golfos em resáca e enseadas em maretas,
misturando ao rolar fanhoso das carretas
um clamor de penuria, um pungente barulho...

Chegam, ferindo o ouvido, uns rumores soturnos...
Será a alma de Chopin compondo outros nocturnos?
Serão phrases da Biblia ecoando pelo vento?

Não! São os varios sons de soluços e escarros,
o rouquento ranger dos funerarios carros
e as patas dos corceis batendo o calçamento...


VI

Vós, que vistes um dia entregues ao abysmo,
victimas do flagello, almas que foram de ouro,
deixai-as descançar no encanto immorredouro,
ou viver na piedosa uncção do transformismo...

Parai dentro do peito as blasphemias do egoismo,
as torrentes da queixa, as cachoeiras do agouro...
Mudai o soffrimento em radioso thesouro,
em sonhos de trabalho, em hosannas de altruismo...

Fugí, de enxada ao hombro, aos desertos e ás brumas.
Espalhai pelo solo as sementes e as hastes
de orchideas e jasmins, de cedros e sumaúmas...

Que os mortos pagarão, entre bençans celestes, 
pelos brancos pendões o luto que ostentastes,
pelos galhos cantando as dores que tivestes...

Alvaro Maia



FONTE:

Imparcial, 28/11/1918.




domingo, 8 de março de 2020

O gênero das cidades

Desenho de Victoria Katarina. 2019.

Artigo de autoria de Victoria Katarina, acadêmica do 3° período do curso de História na Universidade Federal do Amazonas (UFAM).

O espaço urbano reflete a sociedade. Se as cidades brasileiras possuíssem características sociais como etnia, poder aquisitivo, gênero e orientação sexual, certamente seriam homens brancos de classe média e heterossexuais. Isso por que muitas experiências urbanas são desconsideradas no planejamento citadino, sobretudo as das mulheres. A cidade se faz através de uma lógica masculina, sem a ótica ou participação do gênero feminino em seu planejamento.

Gênero pode ser tido como um conjunto de regras sociais que implica em normas a partir de diferenças biológicas entre homens e mulheres. Como categoria analítica da realidade social se identifica a partir dos espaços onde se constrói: nas ruas, em casa, no mercado de trabalho. O gênero das cidades aqui é algo metafórico. Pois, de acordo com Calió (1), "As estruturas de dominação racial, sexual e de classe afetam explicitamente a cidade, que não é neutra, que exprime relações sociais e reproduz, espacialmente, as divisões da sociedade na forma de segregação, organizando o espaço e o tempo dos indivíduos.".

Assim, as urbes são locais de produção capitalista e de reprodução cultural. Nesse espaço o homem é agente de todas as mudanças geográficas. Ainda que mulheres sejam maioria da população nas cidades brasileiras, é como se não existissem. À mulher fica reservado o privado, o lar. A casa, posto originalmente feminino, não faz parte das relações sociais de poder.

Além disso, segundo o IBGE, em 2010 cerca de 38% dos domicílios tinham mulheres como responsáveis. Ao longo das últimas décadas as mulheres vêm ganhando lugar no mercado de trabalho, ou seja, saíram do privado para o público. Porém, as cidades não acompanharam essa mudança. A mulher enfrenta um urbano que não lhe pertence nem lhe representa.

Isso ocorre porque o planejamento urbano não leva em conta a perspectiva feminina. A precariedade dos serviços públicos, por exemplo, afeta mais às mulheres do que aos homens. As mulheres despendem 73% a mais de horas no cuidado de outras pessoas e afazeres domésticos do que os homens. É a mulher que está em contato direto com serviços de saúde, transporte e educação.

Em virtude disso, essa multidão invisível precisa conseguir ter acesso à cidade, mas não o faz plenamente por receio, para manter sua integridade física e por barreiras atitudinais que se manifestam de diversas formas: pelo assédio no transporte público, pela falta de iluminação das vias públicas, por não poder amamentar em público. O corpo da mulher é regulado a todo momento.

Portanto, para garantir o livre transitar da mulher nos centros urbanos, é preciso que estas participem das decisões que permeiam a cidade. Por outro lado, em 2017 apenas 10,5% dos assentos na câmara dos deputados eram ocupados por mulheres. O feminino não tem acesso ao poder estatal, posto que as relações de poder envolvem elementos culturais, como gênero e etnia.

Enfim, o debate sobre essa “não-representatividade” envolve dimensões políticas, simbólicas e materiais. Além disso, para que se possa, verdadeiramente, garantir um Estado democrático com igualdade para qualquer gênero, as pluralidades devem ser consideradas ao se pensar políticas públicas.


Referências

(1) CALIÓ, S. A. Incorporando a Questão de Gênero nos Estudos e no Planejamento Urbano. In: Anais... 6o ENCONTRO DE GEÓGRAFOS DE AMÉRICA LATINA, 1997. <http://observatoriogeograficoamericalatina.org.mx/egal6/Geografiasocioeconomica/Geografiacultural/737.pdf> Acesso em 27/03/2019.

IBGE – Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. Estatísticas de Gênero Indicadores sociais das mulheres no Brasil. Estudos e Pesquisas - Informação Demográfica e Socioeconômica, n.38, 2018. <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101551_informativo.pdf> Acesso em 03/04/2019.

LEIVA, Tatiana Rojas. Como 'fazer' cidade considerando as diferenças de gênero? ArchDaily, 2017. <https://www.archdaily.com.br/br/867552/como-fazer-cidade-considerando-as-diferencas-degenero>. Acesso em 02/04/2019.

NABOZNY, Almir. Uma discussão sobre gênero e acesso ao espaço urbano: o paradoxo da participação política cívica e da participação no Estado. Revista de História Regional 11(1): 7-28, Verão, 2006.

TORRÃO FILHO, Amílcar. Uma questão de gênero: onde o masculino e o feminino se cruzam. Cadernos pagu (24), janeiro-junho de 2005, pp.127-152.

Maria de Miranda Leão (1887-1976)

Maria de Miranda Leão. Foto de 1935. FONTE: Arquivo Nacional.

Nas breves linhas abaixo pretendi, de forma concisa e mediante pesquisa em fontes jornalísticas, deixar registrada uma pequena biografia de Maria de Miranda Leão (1887-1976), a primeira mulher eleita Deputada Estadual pelo Amazonas.

Maria de Miranda Leão (1887-1976) foi professora, enfermeira, assistente social e a primeira mulher eleita Deputada Estadual no Amazonas (1935-37). Maria iniciou sua carreira em 1922 como funcionária pública do Serviço Federal de Profilaxia Rural do Amazonas. Nesse mesmo ano, em 19 de dezembro, criou a Sociedade de Amparo a Maternidade e Infância, núcleo que deu origem ao Hospital Infantil Casa Dr. Fajardo, do qual foi Presidente Perpétua. Coube a ela, com apoio do Serviço de Profilaxia Rural do Amazonas e do Governo do Estado do Amazonas, na administração de Ephigênio Ferreira Salles, a criação do primeiro preventório do Brasil, voltado para o cuidado dos filhos dos portadores de hanseníase. 

Eleita em 1934, pela Liga Católica, tomou posse como Deputada Estadual em 3 de junho de 1935. Era conhecida como ‘Mãezinha’ por causa dos serviços que prestava em favor de crianças e adolescentes. Em 1940, com apoio do Bispo D. Basílio Manoel Olímpio Pereira, foi para o Rio de Janeiro, onde realizou os cursos de “Ação Católica e Serviço Social” (JORNAL DO COMÉRCIO, 07/06/1970). De volta a Manaus, sugeriu ao Dr. André Vidal de Araújo, Juiz e sociólogo, a criação da Escola de Serviço Social de Manaus, fundada em 1940 e subordinada ao Juízo Tutelar de Menores. Foi, nessa ocasião, nomeada Professora de Assistência Social. Dirigiu, nesse período, o Abrigo Menino Jesus. 

Como Secretária-Geral e Enfermeira Chefe da Cruz Vermelha no Amazonas, ficou encarregada da entrega de correspondências aos prisioneiros de Guerra (japoneses, italianos e alemães). Pelos serviços prestados, foi condecorada por essa instituição. Nas Interventorias de Siseno Sarmento (1946-47), Júlio Nery (1946-46) e no Governo de Leopoldo Neves (1947-1951) foi Diretora do Instituto Benjamin Constant, criando nele a primeira Escola Normal Rural do Amazonas. A Prefeitura de Manaus, em 1957, lhe concedeu o título de Cidadã Benemérita de Manaus.

Além dos trabalhos voltados para a assistência aos menos favorecidos, principalmente para crianças e mulheres, destacou-se no Movimento Feminista, sendo membro da Federação Feminista Amazonense e uma das fundadoras da Federação Brasileira pelo Progresso Feminino. Foi oradora e delegada no 3° Congresso Nacional Feminino, realizado em 1936 no Rio de Janeiro (REVISTA BEIRA-MAR, 31-10-1936). Sobre sua atuação, transcrevo um trecho de seu discurso: “A mulher do Brasil, hoje como ontem, corajosa e destemida, saberá firmar, diante dos povos cultos, as suas prerrogativas de patriotismo sadio, fé pura e robusta. Nessa hora decisiva de nossa Patria, de nossa civilização, seremos a atalaia vigilantes das tradições, fé e costumes da nacionalidade. Em defesa de nossos ideais, tomaremos uma atitude clara e definida, no lar, na sociedade, onde quer que o dever nos leve” (JORNAL DO BRASIL, RJ, 18/10/1936). Tentou a reeleição, pelo Partido Social Democrático (PSD), em 1947, não obtendo êxito. 

Em 1969, com 82 anos de idade, dos quais 47 foram dedicados aos cuidados dos mais pobres, recebeu da Prefeitura de Manaus a ‘Medalha Cidade de Manaus’. Faleceu em 16 de fevereiro de 1976 aos 89 anos. Um de seus registros mais nítidos foi feito em 20/06/1935, sendo endereçado a líder feminista e bióloga Berta Lutz (1894-1976). Um estudo mais apurado, monográfico, de sua trajetória política, seria de grande valor para a reconstituição do movimento feminista no Amazonas.


FONTES:

Jornal do Comércio, 07/06/1970.

Jornal do Brasil, RJ, 18/10/1936.

Beira-Mar, RJ, 31/10/1936.